domingo, 23 de abril de 2017

Os Vivos e os Mortos

Estava atrasado!

Quando cheguei ao velório, o primeiro fato que me chamou a atenção dizia respeito a presença de Helena, sentada e prostrada ao abandono no canto mais discreto da capela. Levei algum tempo até perceber que ela encontrava-se alheia ao que ocorria ao seu redor. A falta de percepção para aceitar o óbvio se constituía em uma das duas perspectivas sempre presentes naquelas ocasiões especialmente fúnebres: havia os que encontravam-se mortos, e sabiam disso, mas recusavam a partida derradeira por pendências pessoais mal resolvidas. Havia os que estando mortos, não se davam conta desta condição.

Helena, infelizmente, encontrava-se na segunda perspectiva: ela não sabia que estava morta!


No velório havia dois caixões: o dela e do marido. O acidente de carro que vitimara os dois acontecera bem próximo da casa deles naquela noite chuvosa. Ninguém soube exatamente como aconteceu a tragédia, mas por conta de um celular ligado dentro do veículo dizia-se, a boca pequena, que Vanderlei, o marido, estava transtornado com ela. Descobrira que Helena o estava traindo há bastante tempo. O casal discutiu muito. Trocaram xingamentos e acusações, que resvalaram inevitavelmente para a agressão física. Ele perdeu o volante na tentativa de aplicar uns bons sopapos nela. E deu no que deu: o carro saiu da estrada e acabou se chocando com um enorme muro de pedras maciças que ficava a um quarteirão dali.

De minha parte, acreditava piamente na hipótese da discussão no carro porque Vanderlei, o marido de Helena, era meu primo. Já o conhecia há muito para saber que ele tinha um temperamento instável. Tratava-se de uma pessoa violenta e arredia. Não entendia como Helena, uma mulher tão distinta, tão educada, fora contrair matrimônio com um troglodita daqueles. Custava-me crer que fosse apenas o dinheiro.

Minha família encontrava-se naquele pequeno santuário para o último adeus ao casal. Minhas tias, primos, sobrinhos, meus pais e todos os amigos de Vanderlei rodeavam os caixões. E Helena, a pobrezinha, sentada no canto da capela ainda não havia se dado conta por que ninguém, até então, viera-lhe oferecer as condolências. Talvez achasse que apenas Vanderlei tivesse morrido, ela não.

O dom de ver e falar com os mortos já se manifestava em mim desde pequeno. No início foi muito difícil lidar com a situação. Passei por dificuldades psicológicas extremamente estressantes que, creiam-me, quase me levaram à loucura. Não tive uma infância decente. Nem eu mesmo, às vezes, consigo acreditar como superei tudo sozinho. Mal saído da adolescência já havia perdido as contas do número de defuntos encontrados vagando nas ruas sem saber que tinham morrido. Adquiri o hábito de ajudá-los a realizar, como gostava de dizer, o “passamento derradeiro”. Confortava-me saber que, ao menos, esta qualidade inata tinha lá a sua serventia.

E, naquele momento, precisava ajudar Helena, a mulher com quem vivi uma relação amorosa intensa. Um relacionamento secreto que, descoberto, causara-lhe o infortúnio de morrer tão jovem. Um desperdício.

Apesar de morta, e não sabê-lo, a criatura continuava linda. Fui até ela decidido a não deixá-la mais acorrentada ao limbo incerto dos que ficam entre os vivos. Cheguei de manso e de fala baixa.

— Helena, minha querida.

— Oh, Alberto – disse ela levantando-se da cadeira assustada – o que está acontecendo? Ninguém quer falar comigo. Eles estão me ignorando. Não respeitam a minha dor! O que está acontecendo?

— Você já foi ver o Vanderlei?

— Claro que não! Eu... bem... não tenho coragem de olhar. Alberto, ele descobriu tudo sobre nós. Tudo! – Ela disse baixinho, como se alguém na igrejinha lhe pudesse ouvir.

— Helena, minha querida. – Disse-lhe sem me aproximar apontando o queixo para os caixões. - Você precisa ser forte e ir até lá.

— Oh, Alberto, eu não tenho coragem de olhar.

— Amor – falei no tom mais suave que me foi possível – você ainda não percebeu que há dois caixões sendo velados aqui na capela?

Ela olhou na direção do amontoado de pessoas em torno dos caixões, levantou as sobrancelhas levemente em tom de curiosidade, e voltou-se novamente para mim.

— Pode ser qualquer um – deu de ombros – afinal esta capela é para isso mesmo: velar os mortos.

Ia ser mais difícil do que eu pensei. Pobre Helena.

— Querida, observe que todos os membros da nossa família estão ao redor dos “dois” caixões! – Disse enfaticamente.

Ela se voltou, novamente, na direção do amontoado de parentes aflitos. Os olhos se inflaram de surpresa. As linhas da testa se contraíram rapidamente. O interesse tornou-se evidente. Deus três passos à frente ficando ao meu lado.

— Alberto, quem morreu, além do Vanderlei? – ela perguntou sem rodeios.

— Helena, meu amor.

— Quem?

Não tive outra opção.

— Você.

Ela se virou e me encarou buscando a verdade nos meus olhos. Não os desviei um centímetro sequer para não lhe oferecer falsas esperanças. No fundo, no fundo, talvez já soubesse. Sei lá. Não tive coragem de dizer mais nada. A conversa foi rápida. A conversa foi seca. Não esperava que fosse assim. Ela tomou a decisão. Passou por mim, na verdade, sua áurea perfeita me transpassou e seguiu na direção dos caixões. A única coisa que pude dizer enquanto ela ia para o seu destino foi “adeus”. Eu sabia o que ia acontecer. Já presenciara o fenômeno centenas de vezes. Quando Helena visse o seu próprio corpo dentro do esquife envernizado, aí sim, o “passamento derradeiro” fecharia o ciclo de vez e a sua presença seria levada à eternidade.

Helena, ao chegar diante de seu próprio caixão, levou as duas mãos à boca. Não gritou. Não fez escândalo. Virou-se, de súbito, para mim. Pude ver, pela última vez, o seu rosto assustado, irradiando aquele brilho intenso que, eu sabia, iria tomar-lhe o corpo todo. Ela flutuou por alguns centímetros. Foi a cena mais bela que já vi. Parecia um anjo sem asas! Como era de costume, aos que iniciam a passagem final, olhou para as próprias mãos. Eu nunca soube bem a razão, mas era a partir das mãos que o processo começava. E foi a partir das mãos de Helena que o brilho lhe tomou conta, ofuscando tudo ao seu redor, como uma janela em quarto escuro que se abre para os raios do sol a pino. Não se podia mais divisar o seu belo corpo. A luz se intensificou no seu máximo e sumiu abruptamente levando-a para sempre. Simples assim.

— Adeus, meu amor – disse não conseguindo deter uma lágrima que me escorreu pelo rosto.

Estava exausto. Então, sentei-me na cadeira.

Deixe-me ficar, naquele assento duro, a ruminar pensamentos de quando nos amávamos intensamente. Um riso fraco me escapou dos lábios ao lembrar-me dela. As raras oportunidades que tínhamos, investíamos sempre em um amor urgente. Um querer apressado. Tínhamos fome um do outro. Nunca a esquecerei. Helena. Nunca! Você sempre será...

— Alberto, seu desgraçado, traidor. Vou matá-lo com as minhas próprias mãos.

Pulei da cadeira feito uma mola. Havia esquecido completamente do Vanderlei! De fato, não o vira perambulando por ali. Outra pobre criatura que, decerto, desconhecia sua condição de falecimento. Não sei qual a razão, mas algo me dizia que Vanderlei sabia, sim, que estava morto, porém recusava-se a ir embora. Tinha uma pendência ainda por resolver e tal pendência era comigo! Os mortos que exigem vingança são os mais complicados de realizar a passagem derradeira. Podem ficar anos vagando dentro das casas, fazendo barulho, arrastando objetos, atrasando as vidas dos que considera culpados de sua desgraça. São muito mais difíceis de convencer a seguir o seu destino.

Fiquei de pé num piscar de olhos, resignado, em enfrentar a vergonha de ser escorraçado por um defunto, porque fisicamente, ele nada podia fazer contra mim.

Tudo aconteceu muito rápido. Vanderlei entrara atabalhoadamente dentro da capela. Ele estava com o braço esquerdo inteiramente enfaixado com gases. O rosto, bem machucado, trazia os minúsculos cortes dos vidros estilhaçados do para-brisa e mancava exageradamente em uma das pernas. Preparei-me para o confronto.

No entanto, ele não veio em minha direção!

Vanderlei partiu como uma fera acuada direto para os caixões, empurrando as pessoas que lhe queriam confortar a dor de sua perda e, usando o ombro ileso, num ímpeto de fúria, empurrou os dois ataúdes fúnebres com toda a força que lhe permitia o seu estado debilitado. Os dois esquifes caíram de lado e espatifaram-se no piso de mármore. Deu-se um barulho estrondoso de madeira rachando que vibrou até os candelabros de velas dependurados no teto da capela. Meus tios horrorizados caíram-lhe em cima para dominá-lo. Minhas tias gritavam e choravam histericamente. Mamãe, coitada, desmaiou caindo por cima de toda aquela bagunça. Um verdadeiro escândalo. Num dos caixões notei o cabelo de Helena aparecer na sua lateral, no outro, o impacto da queda havia expelido o seu conteúdo para fora: Aí, eu vi o outro morto estatelado no chão!

Pasmem, era eu.

Sim, era eu mesmo.

Morto! Eu estava morto!

A imagem do meu corpo me atingiu em cheio. Estremeci dos pés à cabeça. Pisquei diversas vezes, não porque quisesse enxergar melhor, mas porque fora acometido, de súbito, por um fluxo intenso de lembranças. Flashes de imagens entrecortavam-se me trazendo à memória as últimas oito horas de esquecimento. Algo como um filme passou em frente de mim em rotação acelerada. Helena chorando ao telefone. Helena me dizendo que Vanderlei descobrira toda a verdade. Helena dizendo que ele ia matá-la. Eu saindo de casa, bem apavorado, armado de revólver, em meio à noite chuvosa. Eu correndo pela rua em direção à casa deles. O carro deles aparecendo na curva em desabalada carreira. O carro deles vindo em minha direção. O rosto de Vanderlei retorcido de ódio atrás do para-brisa. Helena tentando tomar o volante do lunático. Levantei a arma e atirei. Acertei na cabeça dela, sem querer! Os faróis do carro me engolindo foi a última coisa que vi no mundo terreno.

O fim!

— Os desgraçados eram amantes! Eles eram amantes! Eles eram...

Os gritos de Vanderlei, aos poucos, iam ficando cada vez mais distantes. Estranhamente a paz me invadiu. Senti uma leveza em mim que nunca havia sentido antes. Olhei para as minhas mãos porque eram através delas que se iniciava o “passamento derradeiro”.

E elas começaram a brilhar!

Fonte:http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/10/os-vivos-e-os-mortos.html