terça-feira, 7 de março de 2017

5 Dias fora


Essa não é nenhuma história, se fosse seria uma sem graça e repetitiva.
Pois eu vou viajar, e ficar mais um tempo fora, só que dessa vez eu deixei, logo abaixo, 5 novas creepys para cada dia que eu estiver fora (com foco nas duas do Stephen King, de quem eu sou fã); saboreiem com calma, por que conteúdo novo vindo de mim só daqui a 5 ou 6 dias. Peço desculpas, mas desejo tudo de bom pra vocês.

O Homem Que Adorava Flores - Stephen King



No início de uma noite de maio de 1963, um jovem com a mão no bolso subia energicamente a Terceira Avenida em Nova York. O ar era suave e lindo, o céu escurecia gradativamente de azul para o belo e tranqüilo violeta do crepúsculo. Existem pessoas que amam a metrópole e aquela era das noites que motivavam esse amor. Todos os que estavam parados às portas das confeitarias, lavanderias e restaurantes pareciam sorrir. Uma velha empurrando dois sacos de verduras num velho carrinho de bebê sorriu para o jovem e o cumprimentou 

― Oi, lindo! O jovem retribuiu com um leve sorriso e ergueu a mão num aceno. Ela seguiu caminho, pensando: Ele está apaixonado. 

O jovem tinha aquela aparência. Usava um terno cinza-claro, a gravata estreita ligeiramente frouxa no colarinho, cujo botão estava desabotoado. Tinha cabelo escuro, cortado curto. Pele clara, olhos azuis-claros. Não era um rosto marcante, mas naquela suave noite de primavera, naquela avenida, em maio de 1963, ele era lindo e a velha refletiu com instantânea e doce nostalgia que na primavera qualquer pessoa pode ser linda... se estiver indo às pressas encontrar-se com a pessoa de seus sonhos para jantar e, talvez, depois dançar. A primavera é a única estação em que a nostalgia parece nunca tornar-se amarga e a velha seguiu seu caminho satisfeita por haver cumprimentado o rapaz e alegre por ele haver retribuído o cumprimento erguendo a mão num aceno. 





O jovem atravessou a Rua 66 andando a passos ágeis e com o mesmo leve sorriso nos lábios. Na metade do quarteirão estava um velho junto a um surrado carrinho de mão cheio de flores ― cuja cor predominante era o amarelo; uma festa amarela de junquilhos e crocos. O velho também tinha cravos e algumas rosas de estufa, na maioria amarelas e brancas. Comia um doce e escutava um volumoso rádio transistorizado equilibrado de través no canto do carrinho. 

O rádio difundia notícias ruins que ninguém escutava: um assassino que abatia as vítimas a martelo ainda estava à solta; John Fitzgerald Kennedy declarava que a situação num pequeno país asiático chamado Vietnã (que o locutor pronunciava "Vaitenum"), merecia ser observada com atenção; o cadáver de uma mulher não identificada fora retirado do East River; um júri de cidadãos deixara de pronunciar um manda-chuva do crime, na campanha movida pelas autoridades municipais contra o tráfico de tóxicos; os soviéticos tinham explodido uma bomba nuclear. Nada daquilo parecia real, nada daquilo parecia importante. O ar era suave e gostoso. Dois homens com barrigas de bebedores de cerveja estavam à porta de uma padaria, jogando níqueis e gozando-se mutuamente. A primavera estremecia na orla do verão e, na metrópole, o verão é a estação dos sonhos. 

O jovem passou pelo carrinho de flores e o som das notícias ruins ficou para trás. Ele hesitou, olhou por cima do ombro, parou para pensar um momento. Enfiou a mão no bolso do paletó e apalpou mais uma vez algo que estava lá dentro. Por um instante, seu rosto pareceu intrigado, solitário, quase acossado. Então, ao retirar a mão do bolso, reassumiu a expressão anterior de entusiástica expectativa. 

Retornou ao carrinho de flores, sorrindo. Levaria algumas flores para ela, que gostaria. 

Ele adorava ver os olhos dela faiscarem de surpresa e prazer quando lhe levava algum presente ― coisinhas simples, porque estava longe de ser rico. Uma caixa de bombons. 

Uma pulseira. Certa vez, só uma dúzia de laranjas de Valência, pois sabia que eram as preferidas por Norma. 

― Meu jovem amigo ― saudou o vendedor de flores ao ver o homem de terno cinzento voltar, correndo os olhos pelo estoque exposto no carrinho. 

O vendedor devia ter sessenta e oito anos; usava um surrado suéter cinzento de tricô e um boné macio a despeito da noite morna. Seu rosto era um mapa de rugas, os olhos empapuçados. Um cigarro lhe tremia entre os dedos. Contudo, ele também se lembrava de como era ser jovem na primavera ― jovem e tão apaixonado que corria para todos os lados. Normalmente, a expressão no rosto do vendedor de flores era azeda, mas agora ele sorriu um pouco, assim como sorrira a velha que empurrava as compras no carrinho de bebê, porque aquele rapaz era deveras um caso óbvio. Limpando farelos de doce do peito da suéter larga, pensou: Se esse rapaz estivesse doente, certamente o manteriam no CTI. 

― Quanto custam as flores? ― indagou o jovem. 

― Preparo-lhe um belo buquê por um dólar. Aquelas rosas são de estufa, por isso um pouco mais caras. Setenta centavos cada uma. Vendo-lhe meia dúzia por três dólares e melo. 

― Caras ― comentou o rapaz. ― Nada sai barato, meu jovem amigo. Sua mãe nunca lhe ensinou isso? 

O jovem sorriu. 

― Talvez tenha mencionado algo a respeito. 

― Claro. Claro que ela ensinou. Dou-lhe meia dúzia de rosas: duas vermelhas, duas amarelas e duas brancas. Não possa fazer melhor que isso, posso? Colocarei uns raminhos de cipreste e umas folhas de avenca ― elas adoram. Ótimo. Ou prefere o buquê por um dólar? 

― Elas? ― perguntou o rapaz, ainda sorrindo. 

― Meu jovem amigo ― disse o vendedor de flores, jogando o cigarro na sarjeta e retribuindo o sorriso ―, em maio, ninguém compra flores para si mesmo. É uma lei nacional, entende o que quero dizer? 

O rapaz pensou em Norma, em seus olhos felizes e surpresos, em seu doce sorriso, e meneou ligeiramente a cabeça. 

― Creio que entendo, por sinal. 

― Claro que entende. O que me diz, então? 

― Bem, o que você acha? 

― Vou-lhe dizer o que acho. Ora! Conselhos ainda são gratuitos, não são? 

O rapaz tornou a sorrir e disse: 

― Creio que é a única coisa gratuita que resta no mundo. 

― Pode ter absoluta certeza disso ― declarou o vendedor de flores. Muito bem, meu jovem amigo. Se as flores forem para sua mãe, leve para ela o buquê. Alguns junquilhos, alguns crocos, alguns lírios-do-vale. Ela não estragará tudo, dizendo: "Oh, meu filho, adorei as flores, mas quanto custaram? Oh, é muito caro. Será que ainda não sabe que não deve desperdiçar seu dinheiro? " 

O jovem jogou a cabeça para trás e riu. 

O vendedor de flores continuou: 

― Mas se forem para sua pequena, é muito diferente, meu filho, e você sabe muito bem. 

Leve-lhe rosas e ela não se transformará num guarda-livros, entende? Ora! Ela vai abraçar você pelo pescoço e... 

― Levarei as rosas ― disse o rapaz. 

Então, foi a vez de o vendedor de flores rir. Os dois homens que jogavam níqueis olharam para ele e sorriram. 

― Ei, garoto! ― chamou um deles. ― Quer comprar barato uma aliança de casamento? Venderei a minha... não a quero mais. 

O jovem sorriu, corando até as raízes dos cabelos escuros. 

O vendedor de flores escolheu seis rosas de estufa, aparou os talos, borrifou-as com água e embrulhou-as num comprido pacote cônico. 

― Hoje à noite o tempo será exatamente como você quer ― anunciou o rádio. ― Tempo bom e agradável, temperatura por volta dos vinte e um graus, perfeito para subir ao terraço e olhar as estrelas, se você for do tipo romântico. Aproveite, Grande Nova York, aproveite! 

O vendedor de flores prendeu as bordas do papel com fita gomada e aconselhou o rapaz a dizer à namorada que um pouco de açúcar adicionado à água na jarra das rosas serviria para conservá-las frescas por mais tempo. 

― Direi a ela ― prometeu o jovem entregando ao vendedor de flores uma nota de cinco dólares. ― Obrigado. 

― É o meu serviço, meu jovem amigo ― respondeu o vendedor de flores, entregando ao rapaz o troco de um dólar e meio. Seu sorriso se tornou um pouco tristonho: ― Beije-a por mim. 

No rádio, os Four Seasons começaram a cantar "Sherry". O rapaz continuou a subir a avenida, os olhos abertos e entusiasmados, bem alertas, olhando não tanto ao seu redor para a vida que fluía pela Terceira Avenida, mas para o interior e o futuro, na expectativa. Entretanto, determinadas coisas lhe causavam impressão: uma jovem mãe empurrando um bebê num carrinho, o rosto da criança comicamente lambuzado de sorvete; uma garotinha pulando corda e cantarolando: "Betty e Henry em cima da árvore, SE BEIJANDO! Primeiro vem o amor, depois o casamento e lá vem Henry com o bebê no carrinho, empurrando!" Duas mulheres conversavam em frente a uma lavanderia, trocando informações sobre a gravidez enquanto fumavam. Um grupo de homens olhava pela vitrina de uma loja de ferragens para uma imensa TV a cores com uma etiqueta de preço de quatro algarismos ― o aparelho mostrava um jogo de beisebol e os jogadores pareciam verdes. Um deles tinha cor de morango e os New York Mets estavam vencendo os Phillies pela contagem de seis a um no último tempo. 

O rapaz prosseguiu, carregando as flores, sem perceber que as duas mulheres grávidas em frente à lavanderia tinham parado momentaneamente de conversar e o fitavam com olhos sonhadores quando ele passou com o embrulho; o tempo de receberem flores já terminara há muito para elas. Também não percebeu o jovem guarda de trânsito que parou os carros na esquina da Terceira Avenida com a Rua 69 para deixá-lo atravessar; o guarda era noivo e reconheceu a expressão sonhadora na fisionomia do rapaz por causa da imagem que via no espelho ao fazer a barba, onde vinha observando aquela mesma expressão ultimamente. Não percebeu as duas adolescentes que cruzaram com ele em sentido contrário e depois soltaram risadinhas. 

Parou na esquina da Rua 73 e virou à direita. A rua era um pouco mais escura que as outras, ladeada por casas transformadas em prédios de apartamentos, com restaurantes italianos nos porões. Três quarteirões adiante, um jogo de beisebol de rua continuava animado à luz do anoitecer. O jovem não chegou até lá; depois de andar meio quarteirão, entrou numa travessa estreita. 

Agora as estrelas tinham surgido no céu, cintilando levemente; a travessa era escura e cheia de sombras, com vagas silhuetas de latas de lixo. O jovem estava sozinho, agora... não, não totalmente. Um berro ondulante soou na penumbra avermelhada e ele franziu a testa. Era a canção de amor de um gato e isso nada tinha de lindo. 

Andou mais devagar e consultou o relógio. Faltavam quinze para as oito e a qualquer momento Norma... 

Então, avistou-a, vindo pelo quintal em direção a ele, usando calça comprida azulmarinho e uma blusa de marinheiro que fizeram o coração do rapaz doer. Era sempre uma surpresa avistá-la pela primeira vez, sempre um choque delicioso ― ela parecia tão jovem. 

Agora, o sorriso dele brilhou ― radiante. Caminhou mais depressa. 

― Norma! ― chamou ele. 

Ela ergueu os olhos e sorriu, mas... quando se aproximou o sorriso murchou. 

O sorriso do rapaz também tremeu um pouco e ele ficou momentaneamente inquieto. O rosto acima da blusa de marinheiro lhe pareceu subitamente difuso. Estava ficando escuro... estaria ele enganado? Certamente que não. Era Norma. 

― Eu trouxe flores para você ― disse ele, feliz e aliviado, entregando-lhe o embrulho. 

Ela o encarou por um momento, sorriu ― e devolveu as flores. 

― Muito obrigada, mas está enganado ― declarou. ― Meu nome é... 

― Norma ― sussurrou ele. 

E tirou o martelo de cabo curto do bolso do paletó, onde o guardara durante todo o tempo. 

― Elas são para você, Norma... sempre foi para você... tudo para você. 

Ela recuou, o rosto um círculo branco difuso, a boca uma abertura negra, um O de pavor ― e não era Norma, pois Norma morrera há dez anos. E não fazia diferença. Porque ela ia gritar e ele golpeou com o martelo para conter o grito, para matar o grito. E quando desferiu a martelada, o embrulho de flores caiu-lhe da outra mão, abrindo-se e espalhando rosas vermelhas, amarelas e brancas perto das amassadas latas de lixo onde os gatos faziam um amor alienado no escuro, gritando de amor, gritando, gritando. 

Ele golpeou com o martelo e ela não gritou, mas poderia ter gritado porque não era Norma, nenhuma delas era Norma, e ele golpeou, golpeou, golpeou com o martelo. Ela não era Norma e por isso ele golpeava com o martelo, como fizera cinco vezes anteriormente. 

Sem saber quanto tempo depois, ele guardou o martelo de volta no bolso do paletó e recuou para longe da sombra escura estendida nas pedras do calçamento, para longe das rosas espalhadas perto das latas de lixo. Deu meia-volta e saiu da travessa estreita. Era noite fechada, agora. Os jogadores de beisebol tinham voltado para casa. Se existissem manchas de sangue em seu terno, elas não apareceriam por causa do escuro. Não no escuro daquela noite de final de primavera. O nome dela não era Norma mas ele sabia como era seu próprio nome. Era... era... Amor. 

Chamava-se amor e perambulava pelas ruas escuras porque Norma o esperava. E ele a encontraria. Algum dia, em breve. 

Começou a sorrir. A agilidade voltou-lhe ao andar quando ele desceu a Rua 73. Um casal de meia-idade sentado nos degraus do prédio onde morava observou-o passar de cabeça tombada para um lado, olhar distante, um leve sorriso nos lábios. Depois que ele passou, a mulher perguntou: 

― Por que você nunca mais tem aquela aparência? 

― Hem? 

― Nada ― disse ela. 

Mas observou o jovem de terno cinza desaparecer na escuridão da noite e refletiu que se existia algo mais lindo que a primavera, era o amor dos jovens.

O Homem que Queria Matar o Diabo



Tudo começou nos idos de 1896, lá pras bandas de Juazeiro, uma cidadezinha encalacrada nas caatingas do interior da Bahia. Eu trabalhava nos roçados de café na fazenda do coronel João Evangelista Pereira e Melo, homem de posses e de respeito reconhecido por aquelas terras de fim de mundo. Pedro Henrique, o filho estudado do velho João Pereira, estava muito doente, mais pra lá do que pra cá, tísico, botando sangue pela boca, e tossindo uma tosse seca, catarrenta, coisa feia que só vendo:


O diabo existe. Pode escrevinhá aí. É um fato. É uma criatura futriqueira, traiçoeira, e costura os seus desmandos no destino dos homens assim como quem não quer nada, na surdina. E estas costuras que faz, de tão bem feitas, não deixam linhas soltas de sua passagem não. As desgraças que ocorrem na vida dos homens, acredite, é coisa do Tinhoso. Foi bem assim a desgraceira que se deu com o beato Antônio Conselheiro e o povo do Arraial de Canudos.


Tudo começou nos idos de 1896, lá pras bandas de Juazeiro, uma cidadezinha encalacrada nas caatingas do interior da Bahia. Eu trabalhava nos roçados de café na fazenda do coronel João Evangelista Pereira e Melo, homem de posses e de respeito reconhecido por aquelas terras de fim de mundo. Pedro Henrique, o filho estudado do velho João Pereira, estava muito doente, mais pra lá do que pra cá, tísico, botando sangue pela boca, e tossindo uma tosse seca, catarrenta, coisa feia que só vendo. O coronel, coitado, era um desespero só, porque se fazia nas carreiras pra mode de trazer todo tipo de médico e rezadeira à frente do filho, mas qual o quê! Quando Deus quer levar, não tem jeito não!


E num dia quente como o inferno deve de ser, lá longe, na trilha empoeirada que fazia rota pra fazenda do velho João Pereira, vinha um cabra com uma parecença de caixeiro-viajante, de a pé, trazendo um burrico de companhia cheio de tralhas no lombo. Olha, inté hoje eu não me esqueço a figura magra, meio esturricada de carnes, vestindo calça e paletó branco, de chapéu de abas largas, também branco, que lhe caía por riba das fuças. De longe, vosmecê não dava um vintém pela criatura, pois se afigurava homem mofino, sem calibre pra se fazer no punhal e defender-se por conta.


Mas a parecença de fraqueza durou um tico de nada, viu? Foi a coisa mais esquisita que já vi nesta vida, porque eu lhe digo uma coisa curta e certa, moço, pode escrevinhá aí: aquilo não era procedimento sério de um vivente deste mundo. Vinha ele a passos lentos, calmo, de uma calmaria tal que dava nos nervos da gente, as alpercatas mal tocavam o chão e, por onde passava, a calmaria também se aboletava em torno dele. Os ventos não lhe bolinavam as roupas, os bichos e insetos calavam-se, nervosos, inquietos, as flores, na sua passagem, murchavam a olhos vistos e até o calor não lhe fazia frente. Sem mais, Larguei a enxada e corri pra fazenda pra avisar o coronel da esquisitice do cabra que tava chegando. O velho, arriado de tristeza na cadeira de balanço no copiar da casa grande, ruminava lá em pensamentos o que haveria de fazer para ajudar o filho doente.


“Coronel, coronel, tem gente estranha vindo pra cá e não parece ser boa figura”, disse esbaforido quando dei no quintal, botando as galinhas pra correr. O velho levantou, estirou o olhar na direção da estradinha, torceu a cara de leve, se virou pra mim e disse: “Bento, Chama o mestre Germano e o negro Idalino, ali perto do açude, e venha com eles. Quero os três armados. Quero os três de prontidão aí em qualquer canto pra passar fogo se houver perrengue”.


Saí de carreira batida pra cumprir as ordens do velho.


Quando chegamos, de armas em punho, o tal de branco já se botava de presença no meio do terreiro, de frente para o copiar da casa grande, e dava “boa tarde” pro coronel, que lá do jeito valente dele segurava o relho que, de vez em quando, lascava nas costas de algum negro alforriado metido a se mandar por conta.


“Diga lá pra que veio, moço. Se é pra me vender quinquilharia sem valia, pode dar meia volta e tomar rumo pra outro destino”.


O de branco, se ofendido ficou, não deu sinal, esticou o pescoço à frente e levantou um pouquinho a aba do chapéu: “Não venho lhe vender quinquilharias não, seu Coronel. Trago-lhe boas novas. Ouvi dizer por aí que o senhor tem um filho jogado na cama por causa de doença séria, coisa braba, quase moribundo. Não é verdade não?”


O velho João Pereira só fez baixar a cabeça de leve e confirmou a boataria.


“Pois eu lhe digo, coronel, que posso curar o teu filho com as beberagens que trago comigo”.


Na face enrugada e curtida de sol do coronel, num repente, formou-se um sopro de esperança, deixando-o inté meio abobalhado das ideias, pois o pobre não tomou tento do despotismo de esquisitices em torno daquele maldito de branco.


Aquele fio de esperança agarrado na cara do velho João Pereira me encafifou um tanto, num sabe? Do mesmo modo que me deixou encafifado o procedimento dos meus dois companheiros de armas. O mestre Germano e o negro Idalino pareciam não se dar conta da quietude estranha que caiu por sobre toda a fazenda. Não perceberam a falta da brisa forte que foi embora assim que o “De Branco” botou os pés no terreiro, não perceberam o estranho comportamento das galinhas que ficaram quietinhas no seu canto, sem ciscar nem cacarejar, ou o cachorro brabo do Nego Nereu, sempre tão barulhento com estranhos, botar o rabo entre as pernas e enfiar o focinho na terra.


Eles não viam o que eu via!


E, moço, pode escrevinhá aí: o desgraçado do diabo sabia que eu era o único ali que sentia a verdade da sua natureza maldosa e podre. O porqueira chegou a me lançar um olhar meio enviesado, enquanto o velho João Pereira avaliava a força das palavras dele. Vixe, os olhos do Medonho chisparam e enegreceram como carvão e uma língua de cobra lhe escorreu do canto da boca pra decorar o sorriso mais cheio de maldade que jamais vi em qualquer outro vivente neste mundo de meu Deus. Era uma visão de apavorar!


“E qual é o preço do remédio, seu moço?”, perguntou o coronel numa gastura que se via nos olhos.


O excomungado encalacrado naquela figura mofina pegou uma garrafa verde de um aió preso no lombo do jumento e falou bem assim: “Coronel, isto aqui não boto preço em dinheiro não. É coisa preciosa e vai devolver a vida pro teu filho. Dou a garrafa em troca de um préstimo de vosmecê.”


Rapaz, logo vi que aquilo não era coisa de cabra sério. O velho pensou um pouco, espremeu a cara matutando onde aquela criatura queria chegar e saiu com essa pra cima do Enfezado: ”E quem lhe garante que, no desespero, não posso tomar esta garrafa de vosmecê à força?”


O Coisa-ruim, na posse daquele caboclo mirrado, espichou o pescoço, estufou o peito de cutelinho e devolveu o desaforo na bucha: “Tome tento coronel, vosmecê não se atreveria de mexer comigo”.


Isto mesmo, foi bem isso que ele disse ao velho João Pereira, mas não pense que foi na mesma voz que tava conduzindo a conversa não. O desafio saiu da boca da criatura molambenta por uma outra, decidida, rancorosa, firme, de quem tem comando da situação, viu? Fiquei apavorado porque pensei que o coronel ia mandar passar fogo no desaforado, mas não deu a ordem não. E, olha, o coronel era homem valente, não era homem de engolir desaforo daquela marca. Graças a Deus ele teve o juízo de atinar com as ideias de que, com aquele cabra ali, o buraco era mais embaixo.


“O que é que vosmecê quer em troca da garrafa?”.


O De Branco devolveu o remédio pro aió e esfregou as mãos.


“Muito bem, vou direto ao assunto. Vosmecê é dono da madeireira de Juazeiro, não é não? Então eu quero que o senhor não entregue a partida de madeira que Antônio conselheiro encomendou pra fazer a igreja lá no Arraial de Canudos.”


O coronel achou aquilo um despautério, “Mas o beato já pagou a madeira adiantado!” O De branco não se deu por vencido e botou intimação: “Coronel, vosmecê é quem sabe. Se vosmecê quer o teu filho vivo até amanhã à noite, então faz o que eu tô dizendo”.


Aí o velho respirou fundo e disse: “Olha, moço, não gosto de me meter em política e tenho certeza que isso vai dar confusão. O prefeito só tá esperando o beato se arreliar e botar gente de armas nas estradas.”


O Enfezado só se fez em sorriso, sorriso de malícia das grandes, num sabe?, e disse: “Que se dane Antônio Conselheiro e aquele bando de esfomeados sem serventia”.


O velho João Pereira olhou pra dentro da casa, escutou a tosse catarrenta do filho vazando pelas janelas, escutou o lamento triste de Dona Mariquinha, outra criatura de Deus mais desesperada ainda, junto do filho, olhou pra nós com uma cara de quem pedia desculpa porque sabia que ia fechar negócio com o excomungado dos infernos.


“Tá bom, eu aceito, deixe a garrafa e se vá. Vosmecê tem a minha palavra”.


O Tinhoso pegou a garrafa de remédio e jogou pro coronel. E, antes de ir, puxando o burrico com ele, ainda me lançou um olhar que me atravessou a alma, deu uma puxadinha na aba do chapéu em cumprimento e com aquele sorriso maligno na cara, de língua de cobra no canto da boca, me jogou essa: “Nos vemos por aí nessas veredas, moço.” Vixe, dizem que fiquei branco igual papel e perdi a fala e, de fato, foi assim mesmo. Não tive tento pra dá resposta àquela criatura.


Bom, daí pra frente, como vosmecê bem sabe, a coisa começou a feder pro lado de Antônio Conselheiro. Alguém espalhou notícia de que o beato ia invadir Juazeiro com um bando de jagunços armados até os dentes pra tomar a madeira encomendada à força. Foi um Deus nos acuda e muita gente fugiu da cidade. Tenho certeza que a boataria que se espalhou foi obra do tinhoso também. O juiz Arlindo Leoni enviou carta pro governador da Bahia contando o sucedido e pediu providência urgente no caso.


Mas deixa eu te contar o que aconteceu no outro dia, na fazenda do velho João Pereira. O capeta cumpriu o prometido. A garrafada, de sei lá o que, endireitou o espinhaço do rapaz e botou ele de pé novamente, só que eu não fiquei muito contente não. Sou cabra religioso e aquela cura não procedia de boa coisa. Fiquei, na verdade, bem arreliado com o coronel de ter afrouxado o juízo e ter caído na lábia do Maldito. Meu pai sempre me ensinou que não se deve cair nas artimanhas do diabo. Ele não podia ter feito acordo com o Tinhoso bem em frente das nossas fuças, num sabe? Parece inté que nós tava de acordo também. Falamos umas besteiras de boca pra fora um pro outro e decidi pegar as minhas tralhas pra cair no mundo. Não queria mais viver num lugar onde o dono era coiteiro do Diabo.


Pois então, joguei pernas naquelas estradas à procura de outra fazenda pra trabalhar. E vai pra cá, e vai pra lá, e come poeira aqui e toma chuva lá e nada de conseguir pouso em troca dos meus serviços. Passei fome, viu? Foi um sofrimento só. Rapaz, me arrependi demais da conta, mas não voltei pra fazenda do coronel por orgulho, pra não dar o braço a torcer porque sou cabra de opinião também. Sei que o velho me aceitaria de volta, mas o que ele tinha feito não tava certo não. Meu pai sempre me ensinou que não se dever cair nas artimanhas do diabo, sim senhor.


E nessa aí de passar necessidade, sem rumo certo, é que fui bater com as fuças no Arraial de Canudos pra pedir ajuda. Antônio Conselheiro, com aquela enorme barba até quase a bater na cintura, um homem santo enviado por Deus pra tirar o sertanejo daquela miséria, me deu um teto pra morar e trabalho pra fazer.


Quando lá cheguei, o beato já tava brigado com o governo da Bahia e tinha inté quebrado a espinha de duas tropas de soldados enviado pra acabar com as obras dele em Canudos. Olha, moço, era um mundaréu de gente que se fazia na fé e nas armas em defesa do Santo, e lhe disse que eu também sabia usar arma e podia ajudar. Foi nesta época que conheci os grandes chefes jagunços de ação militar como Pajeú, Pedrão, Joaquim Macambira e João Abade, braço direito do Mestre Antônio.


Porém, nunca dei muita sorte nesta minha vida, num sabe? No 3º ataque da soldadesca, um grupo muito maior, coisa pra mais de 1.300 homens, enviado pelo governo do Brasil, veja só como a coisa tava tomando vulto, levei um tiro na perna que me deixou arriado por uns tempos, coxo, sem muita serventia pra mode de cair na briga.


Depois de uns três meses, me deu uma gastura sem tamanho quando fiquei sabendo que se tava armando coisa maior ainda pra cima do povo de Canudos, coisa de sustância pra arroxear cabra valente. Corriam boatos que estavam vindo pra Bahia soldados de 17 estados, formando duas colunas militares do exército brasileiro com 8 mil soldados pra mode de dar um 4º e derradeiro ataque contra o Santo. Fiquei num estado de nervos, pois eles precisavam de mim e eu tava naquela situação, inválido, sem muito o que fazer pra ajudar na luta que se aproximava.


Em 27 de julho de 1897, depois de um arranca-rabo medonho com a armada do general Cláudio Amaral Savaget, em Cocorobó, uma leva de uns tantos mil soldados, não dava nem pra contar porque nunca vi tantos na minha vida, fizeram um cerco nas proximidades de Canudos, montaram base e iniciaram os ataques. O cerco, que durou por mais de dois meses, também impedia a entrada de mais gente querendo ajudar o Santo, assim como água e comida pros resistentes conselheiristas.


Rapaz, a coisa ficou feia e mais feia ficou quando no meio daquele desespero de bala de canhão e gente morta pra todos os lados, o Santo veio a morrer por causa de uma disenteria braba que lhe golpeou o corpo fraco de sede e fome, um pecado, viu?


Com a morte do Mestre de Belo Monte caiu um abatimento por riba do povo de Canudos, mas ninguém queria se entregar. A gente tinha que honrar as calças que tava vestindo em nome do Santo e defender o que ainda restava de dignidade daquele povo sofrido. Os chefes Jagunços, então, decidiram resistir até o último homem, mas acharam por bem poupar a vida dos velhos, das mulheres, alguns feridos, e das crianças. Por isso pediram a Antônio Beatinho que intercedesse uma rendição por aquela gente que não teria como lutar e nem se defender.


Depois que o governo prometeu garantir a vida de todos, muito do contra, fui enviado como peso morto, juntamente com os velhos, mulheres e crianças pra rendição, coisa de umas trezentas pessoas. Os soldados nos colocaram num cercado grande, todos amontoados que nem porcos na lama, e ficamos ali alguns dias sob mira da soldadesca, com pouca água e sem comida, enquanto ainda se podia ouvir os barulhos do combate lá pro meio da praça central de Canudos. Não gosto de me alembrar das mortes de uns quantos que vi, caídos naquele chão empoeirado e sempre de boca aberta rezando pra nosso senhor Jesus Cristo e Antônio Conselheiro. Vixe, foi desperdício de gente dos dois lados.


Mas o pior ainda estou pra te contar, seu moço, escrevinha aí no teu caderninho porque essa é coisa muito da séria. No terceiro ou quarto dia, nem me alembro mais, eu tava matutando um jeito de fugir daquele cercado, mas não tinha jeito não. Ficava observando o movimento das tropas no acampamento, um pouco mais retirado, até que, de repente, minhas vistas deram como uma figura já conhecida vagando no meio da soldadesca. Vosmecê não vai nem acreditar. Pois sim, era o maldito enfezado de branco, puxando o jumento naquela calmaria enervante. Ô meu pai, o que é que aquela criatura tava fazendo ali, pensei cá comigo. Coisa boa é que não devia de ser. O desgraçado parecia sentir a minha presença também porque, acredite, ele ficou cheirando o ar, assim como fazem os bichos pra procurar comida, num sabe? E cheira daqui e cheira dali, foi virando aquela cara maligna até botar os olhos de carvão por riba de mim. Daí, levou a mão no chapéu, botou a língua de cobra no canto da boca e me cumprimentou. Ôxe, eu ficava danado comigo mesmo porque não conseguia desviar os olhos do maldito.


Foi, então, que se deu a maior desgraceira naquela guerra maldita. Escute só o que o Excomungado fez. Ele começou a puxar conversa com o general Artur Oscar. E eu só de olho neles, lá longe. Conversa vai, conversa vem, até que os dois entraram na tenda do oficial, o burrico ficou fazendo cena pros soldados que brincavam com ele. De repente, de dentro da tenda saiu apenas o general. E cadê o Enfezado? Cadê? Rapaz, quando vi o general vindo na nossa direção é que percebi que ele não era ele não! Era o demônio encalacrado no corpo dele!


O endemoniado general Arthur Oscar chamou pra mais de 100 soldados virem pra perto do cercado dos rendidos indefesos de Canudos e gritou assim pra todo mundo ouvir:


“Soldados, não vamos deixar nenhum monarquista vivo nesta terra. Nós vamos fazer aqui como se costuma fazer com gente revoltosa lá no sul, quero a degola de todos estes porcos. Seja velho, seja mulher ou criança, passa o facão nestes monarquistas dos infernos”.


Ai, ai, meu Deus, foi um massacre. Vixe, me dá até um engasgo no falar e o meu peito bate mais acelerado. Moço, eles foram arrastando os desesperados pra um canto e... meu Deus... meu Deus... só se via grito lamentoso da mãe de um lado e a cabeça do filho pequeno saltando na terra do outro. Os velhos apenas se ajoelhavam, nem precisava forçá-los, levavam os olhos pro céu e o facão jogava a cabeça dos pobres por sobre a terra encharcada de um vermelho vivo. Foi um desespero sem tamanho que nunca vi igual. Não tem uma noite que eu não acorde encharcado de suor com a imagem daquele desespero.


Quando chegou a minha vez, não resisti, fui mancando pro canto que eles faziam o serviço e, pra surpresa de todos, o Enfezado, encalacrado no corpo do general Arthur Oscar, disse:


“Este aleijado aí deixa vivo. Quero pelo menos uma testemunha pra contar a história. É pra meter medo em qualquer monarquista metido a besta que se criar por este sertão. Tenente Mourão, você bota este merda naquele jumento ali e manda-o pra bem longe, mas antes disso, quero falar a sós com o infeliz”.


Ele me arrastou pra fora do cercado do desespero. Não sabia o que fazer, só conseguia olhar pro chão de tanta vergonha. O desgraçado me levantou o queixo, e encarei com raiva aqueles olhos de carvão e aquela língua de cobra nojenta e me falou uma verdade que não gostei nem um pouco de ouvir:


”Eu fiquei sabendo que tu abandonou o Coronel João Pereira porque ele fez um trato comigo e que tu vive por aí arrotando que teu pai lhe ensinou que não se deve cair nas artimanhas do Diabo. Pois fique então sabendo que se eu te deixo viver hoje é porque fiz um trato com teu pai. Trato é trato. Quando tu era miúdo, também caiu doente. Dei uma garrafa a ele pra tu viver. Se algum dia tu abrir a boca sobre o que aconteceu aqui, vou quebrar o trato e venho acertar as nossas contas”.


Pronto. É isso que eu tinha pra te contar. Vá embora escrevinhá esta estória no teu jornal. O Enfezado logo vai bater as fuças por aqui porque lhe contei o que se passou no massacre dos rendidos de Canudos, mas quando ele aparecer, eu vou matar ele. Ah, se não vou! Eu vou matar o diabo! Agora, o moço me dê licença que eu tenho mais o que fazer, boa noite.


* * * * *


Bilhete do Coronel Ernesto Emerenciano da Fonseca ao Coronel João Pereira


João, vosmecê se alembra do Bento Eleutério de Zulmira? Aquele que era teu empregado aí na tua fazenda? Fiquei sabendo que ele endoideceu de vez depois de matar um cabra que vendia garrafadas. Esse tal foi vender remédio na casa dele e dizem que o Bento furou o cabra de punhal dos pés à cabeça, picou o pobre todo e se escafedeu no mundo. Dizem que ele, agora, anda fugido lá pras bandas de Pernambuco, seco igual um pau de virá tripa, todo vestido de branco, puxando um jumento e vendendo garrafadas também. Tornou-se figura conhecida e temida pra’quelas bandas. Há quem afirme que já viram ele jogando sorrisos de malícia, com língua de cobra no canto da boca, pros sertanejos que vagam sem rumo pela caatinga. Vosmecê acredita nisso?

Fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/10/o-homem-que-queria-matar-o-diabo.html

O Homem de Preto

Seu nome era Samuel. Ele estava em apuros. Naquela noite escura, alguém o perseguia e desejava matá-lo. Sua vida corria risco, o tempo corria contra ele. Qualquer movimento em falso e seu destino seria irreversível. O desespero tomava conta de seus sentidos.

E agora, o que fazer? Para onde ir? Ele, simplesmente, não sabia nem ao menos se estaria vivo no minuto seguinte. Tudo o que queria era que seu coração se acalmasse.

O tempo estava passando e o cansaço começou a dominá-lo. Suas pernas já não reagiam mais da mesma forma. E, pouco a pouco, ele foi diminuindo o ritmo. Teria chegado seu fim? A morte o levaria naquela noite? Não, Samuel não queria pensar no pior. Ele ainda poderia fugir. Queria que o pesadelo acabasse. Já não tinha mais forças para correr.


Foi quando o avistou. Saiu do meio da escuridão e escondeu-se entre as sombras. Samuel gritou. Entretanto, quem ouviria seus gritos naquele inferno? Não havia para onde fugir. Eram apenas eles dois.

Lembrou-se, então, do revólver que portava na cintura. Não tinha mais balas, mas se conseguisse dar-lhe uma coronhada, ele o deixaria inconsciente e conseguiria escapar. Virou-se e não viu ninguém. Para onde teria ido? Como desaparecera?

O medo se apoderava de Samuel. A morte estava cada vez mais perto. Ele não tinha mais fôlego para continuar correndo. Tentava encontrar um lugar seguro, mas seria em vão, não havia nenhum daquele lado da cidade. Não tinha ninguém para ajudá-lo. Sua vida dependeria apenas dele mesmo.

Continuou correndo e, finalmente, aproximou-se de um prédio abandonado. Agora, poderia refletir sobre o que estava acontecendo. Nada fazia sentido. Por que aquela estranha figura sob um manto preto o perseguia? O que queria? Quem era ele?

Pela janela do corredor, avistava-se o mar. No entanto, não era mais azul. Estava tingido de sangue. Samuel viu centenas de corpos boiando. Mortos. Seria o Dia do Juízo Final?

...e foi lançado no mar, como um grande monte ardendo em fogo, e se tornou em sangue a terça parte do mar. E a terça parte das criaturas que viviam no mar morreu...

A Bíblia mencionava o Apocalipse. Não, não poderia ser verdade. Ele não queria acreditar. Por que tudo aquilo estaria acontecendo? E qual a relação entre o mar e aquele estranho homem que o perseguia?

Ouviu um barulho – havia alguém ali. Ele poderia estar errado. Melhor não se descuidar. Caminhou em direção ao som, abriu rapidamente a porta e viu um rato correr. Avistou mais um corpo. Mas não apenas um. Havia outros em volta. O lugar cheirava à carne podre. Cada vez tudo parecia fazer menos sentido.

O mar. Os mortos. O estranho sob um manto negro. A cidade destruída. Teria chegado a hora que o Homem pagaria por tanta insensatez? Afinal, estávamos nos destruindo uns aos outros, acabando com o planeta. Os humanos haviam se esquecido de amar.

Um novo barulho chamou sua atenção. Seria aquele homem de preto? Sim, era ele. Podia vê-lo escondido em meio às sombras. O homem sob o manto preto começou a caminhar em sua direção. Agora, ele não iria conseguir escapar. Mais alguns metros e ele o alcançaria. Seu coração acelerou. Sentiu um frio no estômago. Ele foi tomado pelo medo. Agora não poderia mais correr. Foi então que o vulto saiu das sombras e se revelou. Ele estava agora bem à sua frente. O homem sob o manto preto tinha um rosto desfigurado. Não havia qualquer expressão nele. Seus olhos eram os de um psicopata que não hesitaria matar, se precisasse. Ele se aproximou, tirando um facão ensangüentado que trazia preso à perna. Samuel, por sua vez, tirou a arma do coldre, e apontou-a em direção a ele, que erguera o braço para desferir o golpe final. E o inesperado aconteceu.

O estranho seguiu em frente e deu um talho em um dos corpos entre as centenas de mortos à sua volta. Fazendo um corte longitudinal, o homem tirou um pedaço de carne e começou a devorá-lo.

Samuel sentiu uma sensação de alívio mesclada a um forte enjôo provocado por aquela cena grotesca. Tudo agora fazia mais sentido – era apenas um homem tentando sobreviver em meio àquele caos:
A voz ouvida do pássaro insólito,
sobre a chaminé da lareira:
tão alto subirão os alqueires de trigo,
que o homem devorará o homem.

Ele recordou essa quadra de Nostradamus, escrita há muitos séculos, que dizia que a fome no mundo chegaria a tal ponto que os homens se devorariam uns aos outros. Samuel agora compreendera tudo. A destruição não viria dos céus, mas dos homens. O Homem concretizara seu legado de morte, dando fim à própria raça.

Durante a explosão, dois dias antes, Samuel batera a cabeça contra uma parede e ficara desacordado por algum tempo. Na véspera, ouvira boatos sobre o início da Terceira Guerra Mundial. Não eram boatos. Todos haviam morrido por causa disso. Tudo aconteceu tão rápido que não percebera. Ao acordar, não conseguia se lembrar de nada. Foi quando o pesadelo começou. Um pesadelo real e assustador que ele preferia jamais tivesse começado. Queria ter morrido naquele instante para não assistir à tamanha desgraça. Não havia o que fazer a não ser fugir e rezar para não ser devorado pelo homem de preto ou, até mesmo, por outro sobrevivente.

Fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/11/o-homem-de-preto.html

O Guardião



Sempre tivera uma impressão errada do serviço de guardião noturno. Principalmente por conta da imagem impregnada no consciente coletivo, formada por anos e anos de bombardeio de filmes americanos. A visão era clara: um uniforme parecido com o da policia, um cassetete e uma lanterna para iluminar um labirinto de corredores.

Realidade e expectativa são separadas por um abismo. Nada de uniforme. O cassetete é um pedaço de madeira arranjado por ele mesmo e que lhe enche a mão de farpas. Não tinha lanterna, pois todas as luzes posam acesas. Não precisa percorrer todos os corredores, pois do pátio central tem uma visão de quase todos os cantos da escola. Onde a visão não alcança, ele julga ser sem importância. Na verdade lhe falta um pouco de coragem para chegar mais perto e verificar todos os cantos.


Poucas pessoas tem a noção do quão sinistro fica um prédio escolar durante a noite. Qualquer ruído se torna incomodo. O som dos próprios passos ecoando pelas paredes se torna aterrorizante. Ainda mais se tratando de um prédio antigo como aquele.

Ele estava sentado na escadaria do pátio, que levava até a quadra de esportes. Decidira não ficar dentro da cozinha – lugar onde costumeiramente passava as noites – pois nos dois canais que pegavam em seu pequeno aparelho de TV, a programação não era ideal pra quem ia passar a noite sozinho num lugar assustador. Em um dos canais, um pastor expulsava aos berros uma entidade que não deixava a fiel ter prosperidade financeira e no outro, um filme sobre possessão demoníaca. Definitivamente, aquele tipo de assunto deveria ser evitado para um trabalhador noturno. Passar a noite sozinho numa escola já era uma situação tensa o suficiente.

A escadaria fica de frente para o pátio, na extremidade oposta, uma outra escada de cinco degraus conduz à porta de entrada da escola. O pátio é um ambiente coberto e ladeado por dois corredores nas suas laterais. A passagem para a quadra de esportes é a céu aberto. O céu está bem iluminado pela Lua e pela quantidade incomum de estrelas. Uma paisagem digna das ilustrações sobre o espaço feitas pela NASA. Naquela noite porém, tamanha beleza não era sequer percebida.

Sentado com os braços retos apoiados nos joelhos, ele olhava fixamente para o chão do pátio. Infelizmente, as poucas imagens que ele viu na TV ficariam assombrando sua mente a noite toda.

A noite de primavera estava extremamente quente. O abafamento era quase asfixiante. As paredes dos corredores laterais ao pátio eram cobertas com trabalhos dos alunos. Cartazes sobre os mais diversos temas. Em um deles, um gráfico de barra mostrava como a população do planeta ia morrer por falta de alimentos dali a poucos anos. Em outro, recortes com fotos de celebridades negras. Gravuras de animais, certamente por conta de algum trabalho de arte. Mas, de todos os cartazes, aquele com o desenho de um velho escravo era o qual mais o incomodava. A figura parecia olhar diretamente para ele o tempo todo. Não importava onde ele se colocasse naquele pátio, a figura parece acompanhá-lo com os olhos. Seja sentado na escadaria, na entrada dos banheiros, nas mesas do refeitório, mesmo na cozinha, através da janela que dava para o pátio, a imagem melancólica do escravo parecia o seguir.

Por isso olhava fixamente para o chão. Para fugir dos olhos do escravo, para fugir de qualquer tipo de pensamento que fizesse aquela noite parecer ainda mais longa. Era inútil. A todo o momento vinham a sua mente a imagem do pastor exorcizando em um canal e a mulher precisando ser exorcizada no outro.

Tentando retomar o controle da situação, pensa consigo mesmo : “Estou pior que uma criança assustada. Estou com todas as luzes acessas, não tem mais ninguém aqui, já trabalho nesta escola há seis meses e nunca ouvi barulho suspeito nenhum. Agora cá estou eu, sentado na escada, só por que lugares abertos passam sensação de segurança. Só porque vi assuntos sobrenaturais na TV e por causa desse maldito cartaz! Estou com medo de ficar sozinho em um lugar fechado.”

Num súbito ímpeto de coragem decidiu: “Vou olhar esse cartaz nos olhos, mostrar quem manda e depois vou até a cozinha fazer um lanche.” Para ele, naquela noite, esses dois atos seriam o ápice da coragem.

Foi subindo a visão aos poucos, com a dramaticidade de uma novela mexicana. Elevando a visão para aquele desenho que já estava o incomodando há duas noites.

Conforme ia erguendo os olhos, sentia o chão sumindo sob seus pés. O sangue correndo em turbilhões por suas veias. O coração martelando forme seu peito. Ondas de choque por todo seu corpo. Sentia como se lhe enfiassem milhares de agulhas nos pés, mãos e pela coluna. Na boca, um gosto amargo, nas narinas um forte odor de velas queimando. Sentiu vontade de gritar, mas a voz não saiu pois em seus pulmões não tinha ar suficiente para emitir qualquer som. Correr estava fora de cogitação, pois seus membros não obedeciam. Sequer se moviam. Estava completamente paralisado.

Na porta de entrada, ao lado do cartaz com a figura melancólica do escravo, estava ela parada. Quem é? O que é? Como entrou? É uma mulher? É uma criança? Com certeza parece uma pessoa...está de vestido...está de frente ou de costas? A porta está trancada, tenho certeza que sim. Que horas são? Estou sonhando? Perguntas e afirmações desencontradas percorriam sua mente.

Apesar das três lâmpadas que iluminavam a entrada da escola, não conseguia enxergar com clareza. Era como se uma sombra confundisse sua visão. Sabia que era uma mulher ou uma menina e que estava de vestido branco. Não conseguia perceber se a aparição estava de frente ou de costas. Os cabelos negros lhe caiam até a cintura. Estava a aproximadamente vinte metros de distância, mas ele não conseguia distinguir bem o que via. Tentava olhar para os pés, para as mãos mas não percebia se estava de frente ou de costas. A única certeza que tinha era de que aquilo não devia estar ali.

Em meio aquela cabeleira negra, percebeu um par de olhos o fitando. Olhos extremamente vivos e expressivos e um leve sorriso sarcástico no canto da boca. Agora tinha certeza, aquilo estava de frente e olhando direto para ele.

Era uma figura estranha, parecia uma jovem...parecia uma criança...parecia assustadora...parecia inofensiva... Não, inofensiva não! definitivamente era assustadora. O guardião estava em absoluto estado de choque! Não conseguia se mexer, parecia estar sendo hipnotizado por aquela aparição.

Ele não conseguia organizar seus pensamentos, não conseguia fixar seus sentidos. Por trás daquela aparição, perecia ter mais alguma coisa, como se alguém estivesse a acompanhando, mas era tudo muito confuso. Ao mesmo tempo que parecia estar acompanhada, também parecia estar sozinha. Ao mesmo tempo que parecia estar de costas, também parecia estar de frente. O guardião sentiu seu pavor aumentar quando não conseguiu perceber se aquilo estava parada ou avançando em sua direção. Apenas conseguiu perceber o movimento quanto ela já estava no pátio, na metade do caminho entre a porta de entrada e ele.

A cada passo que a criatura dava em sua direção, seu pavor aumentava exponencialmente. Não conseguia sequer piscar os olhos. Quando se deu conta, ela já estava subindo a escada, a menos de dois metros de distância.

Já quase podia sentir as mãos daquela menina ou mulher ou seja lá o que fosse, em volta do seu pescoço o estrangulando. Mãos frias e ásperas! Já quase podia sentir o hálito fétido e podre daquilo bem na sua frente, pronta para lhe dilacerar a face com mordidas.

Mas a coisa passou direto por ele. No ar pairava o cheiro de velas queimando, de flores velhas e de alguma coisa que ele não conseguia identificar... alguma coisa sombria, triste... era o cheiro da morte! O ar ficou ainda mais abafado, o clima ainda mais quente.

Quando o guardião se deu conta, a moça já estava no alto da escada e continuava sua marcha pelo corredor. Estava indo na direção da porta do banheiro feminino. Ao chegar na frente da porta estacou.

A confusão dos sentidos voltou! Ele Já não conseguia perceber se ela estava parada ou em movimento, de frente ou de costas... não conseguia identificar sequer se ela ainda estava ali. Foi como se ela estivesse novamente envolta pelas sombras, pela escuridão, embora o corredor estivesse bem iluminado.

A coisa começou a emitir um grunhido gutural de forma leve e contínua. Um grunhido que rapidamente se tornou um grito ensurdecedor. Era um som angustiante, sofrido, sobrenatural, um grito de dor que fez até o chão tremer!

Quando se deu conta, o guardião já estava de pé perto da porta de entrada, ou no caso dele, de saída da escola. Estava de costas para a porta e de frente para o pátio. De onde estava via no final do corredor a porta do banheiro feminino onde há poucos instantes a coisa tinha acabado de desaparecer diante seus olhos.

Não sabia o que foi aquilo. Não sabia nem como saiu da escadaria e foi parar perto da saída. Sabia apenas que tudo havia sido real, sabia que o grito da criatura ainda estava ecoando pelos corredores e sabia que tinha que sair dali o mais rápido possível.

Ainda sem o pleno domínio do seu corpo, deu meia volta na direção da saída, mas deu de cara com aqueles mesmos pares de olhos negros o olhando de baixo para cima.

Agora era nítido! A criatura estava ali, parada entre ele e a saída, a menos de dez centímetros de seu rosto, o olhando com um ar sombrio e um riso demoníaco.

- Nunca Mais! Sussurrou ela abrindo lentamente a boca e inclinando a cabeça para o lado.

Então um novo grito, ainda mais estarrecedor que o primeiro se ouviu e a aparição avançou sobre o vigia.

Testemunhando a cena, estava o desenho do velho escravo, com os olhos vidrados e melancólicos.

Fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/12/o-guardiao.html