segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

A flor de U'zltrilix


    Uma chance.  Um único risco.  Mas não recuarei. Desde a grande viagem o perigo a que me sujeito é o de viver. Devo imergir na névoa e encontrar a Flor de U’zltrilix. Nela reside uma resposta. Um recomeço. Um fim.  No entanto, a areia liquefez-se em vários pontos, perscruto e não vejo a passagem. Muitas vezes me questiono se existo ainda, que vontade é essa que me anima e me fez seguir até aqui?

    Parada sobre a planície rochosa, tenho consciência de ser. Existo ao aço frio das armas que empunho. Existo ao veneno corroendo meu sangue, minha morte e vida. No entanto, a força que me faz prosseguir para por alguns instantes quando revejo a Cidadela dos Antigos em escombros. Um universo de imagens e lembranças inunda meus olhos.


   A pirâmide de Zh’olquyz permanece ainda, o triste ápice de uma civilização extinta. Banhada à luz de uma estrela dourada em seus últimos lamentos a cada volta insana do planeta L’zuli. Meus olhos reviram a paisagem e ao longo do caminho, voltam-se mais uma vez ao pináculo de outras eras. Tão próxima a pirâmide, a nave de meu pai. Ziurtiw enlouquecera antes da partida e tentara destruir a pirâmide onde os antigos repousavam. Sua punição com a morte foi um sinal de que a paz findara, apenas a nave permaneceu. Forjada nas longas viagens pelo mar de rocha líquida, paira sobre o deserto de areia, parecendo flutuar neste oceano de grãos, enquanto poucas torres escoram-se uma nas outras, resistindo ainda. Meus sensores brilham iridescentes: há vida na base de Zh’olquyz, um murmúrio animado oculto sob a nuvem de areia.  Aspiro em busca de coragem para descer e enfrentar meu destino. A mesma coragem de meu pai quando se negara a me deixar aqui.

    Enquanto meus pés se movem e mergulho na estranha porosidade, não deixo de pensar no mar que nunca vi, o mar de rochas liquidas de L’zuli que brilharia sob a luz como a cidadela morta aos raios que a cobrem. Estende-se em meu caminho um mar de areia, posso sentir a densidade pérfida a me espreitar, oculta sob as brumas amareladas, todavia, persisto. Os fragmentos de areia que se contraem e se movem sinuosos em torno das ruínas me envolvem numa recepção horrenda. Outrora, quando apenas uma garota frente ao inexorável, talvez meus instintos me fizessem desistir, mas a dúvida me intriga.  Serei de fato a última? Percebo em mim a vontade intrínseca de não estar só, de ser apenas uma em meio à multidão, um rosto na muralha espiando a vida passar. Entanto, esse direito não é o meu. A multidão já não existe, os resquícios da última viagem permanecem nas brumas de L’zuli, um som atemporal e terrível em sua beleza, a música do adeus me atormenta. Todos os outros desapareceram quando os zh’olquynez nos deixaram.

    Depois que se foram, fiz muitas pesquisas sobre lendas e seres desconhecidos em busca de uma explicação para a chegada dos antigos. Éramos então selvagens em guerras constantes, matéria bruta lentamente dilapidada em direção a suprema tecnologia para enfim, termos a paz.

    A tecnologia dos antigos consistia em juntar cada átomo e dessa misteriosa condensação construir o inimaginável. Este poder unificou as tribos e os zh’olquynez propiciaram o surgir de uma era iluminada, de cada mínima partícula os mestres criaram maravilhas. Elementos nunca vistos antes construíram nosso mundo, ampliaram o poder de nossa estrela já em decadência.

    Caminho entre as ruínas e a areia entranha-se em mim, mas meus olhos estão protegidos dos grãos cortantes, feitos por esses mesmos elementos que outrora nos maravilharam. Sou uma filha dos antigos. Há algo sob a minha pele que me salva a cada dia, cura meus ferimentos e impede que o tempo me leve. A regeneração molecular foi um presente para poucos, para escolhidos. Para os que seriam deixados para trás. Por que fiquei? Eis a resposta que busco na Flor de U’zltrilix. Cresci sob as muralhas de Zh’olquyz, quando os dias eram promissores e iluminados. Alguns rumores me despertam dos devaneios. Sinto uma força que deseja me deter e os grãos investem contra mim. Fustigam-me mas não podem me atingir.

    A cidade fantasma parece me espreitar. Os resquícios do antigo esplendor são grãos que se espalham como uma imensa epidemia enquanto a vida se esvai do planeta. Dilatam-se por toda parte. Nossa estrela se derrama sobre as ruínas e seu calor me traz vontade de chorar. Não lembro qual o gosto de uma lágrima. Não se pode chorar em L’zuli. As noites estão cada vez mais curtas e o planeta gira veloz, vazio da vida que nos corrompia, num eixo que altera-se inesperadamente. Ocasionalmente, as línguas de fogo emergem do céu e atravessam a névoa de areia e, assim, vejo os destroços de minha cidade natal e sombras de animais mutilados e acovardados que se ocultam num ultimo ranço de vida. Insetos minúsculos passeiam pela carcaça de arqysfs gigantesco. Onde ele chorou, acumularam diamantóides raros.  Guardo minhas armas e penso mais uma vez no mar desenhado na voz de meu pai. Eu nunca vi o mar. Apenas areia sobrevive em meus olhos e procuro por ela.

    Por muito tempo, a Flor de U’zltrilix foi uma lenda, um mito entre os que ficaram, mas eu estava presente quando o portal foi construído, vi quando exalou pela ultima vez seu perfume. O portal aumentava em uma junção de minúsculas partículas, cada fragmento de L’zuli se movimentava - alguns invisíveis para nós – unindo-se na construção da passagem e finalmente o caminho para as estrelas apresentava-se. Aquele fora um grande dia para todos, os antigos despertaram do seu longo sono e estavam cada vez mais próximos de nós. Deuses e servos unidos em um bem comum.

    Com o tempo, meus estudos revelaram que a mágica dos antigos possuía um nome, eram nossos deuses nanotecnólogos. Um conhecimento superior que nos parecia magia, pois quando ordenavam, toda matéria se reorganizava e maravilhas surgiam. Os senhores das miudezas eram na verdade uma etnia de cientistas colonizando o universo. Exploradores. Colonizadores. Nômades. Os zh’olquynez eram um povo pacifico, mas ávidos pelo novo, pela modernidade e principalmente, pela eternidade. Usavam a sabedoria e o conhecimento em busca da paz e quando a conseguiam, dormiam por longos anos, assim, eternizavam-se por eras e eras, no entanto, seu legado foi-nos terrível. Quando as caravanas deixaram Zh’olquyz, eu era ainda uma criança. Uma criança escolhida, bendita e amaldiçoada.

    No dia da grande viagem, por cima da muralha, espiávamos a passagem dos antigos. Seguiam lentamente enquanto os sons dos bambus cortavam o ar e ricocheteavam no silêncio que trazíamos. Pela primeira vez eu vi os grandes arqysfs, quando eles erguiam os olhos e suas longas presas cinza para nós, seus gritos ecoavam pelo deserto e uma dor que jamais esqueceríamos nascia-nos. Os arqyfs eram o mais antigo símbolo de L’zuli. Podíamos ouvir ainda os murmúrios dos anciãos e o grito das mães que ficavam. O sopro do chamado ultrapassava então as planícies e eles continuaram chegando por muitos sóis. Tribos de todos os lugares e os imensos arqyfs, animais tão grandes e sábios que apenas sua presença trazia-nos amor e a certeza de que nada mudaria. No entanto, eles emitiam seus lamentos junto ao som das flautas e tudo se impregnava de melancolia. Sob essa orquestra víamos o fim de nosso lar. Os zh’olquynez levariam uma grande parte da população com eles em busca de um novo mundo, mas muitos ficariam. Eu fiquei na cidade vítrea, que ainda resplandecia.

    As grandes pirâmides, os navios, as naves e todo o centro de L’zuli estremeciam, um mundo abandonado e fustigado pelo tempo até transformar-se nesse mar dourado por onde caminho ainda hoje. Os poucos que ficaram pereceram, outros se foram para lugares distantes em busca de novos portais. Raros tornaram-se insanos em meio a solidão.

    Não sei quanto tempo se passou, mas finalmente eu a vejo. Sob a base da pirâmide de cristal, a flor se revela. Um gosto amargo confirma o que suspeitei desde o inicio de minha jornada. A flor de U’zltrilix é um montador universal. O centro da tecnologia dos zh’olquynez. Uma máquina capaz de construir infinitamente o que se desejar, programada para não replicar-se. No entanto, na busca por novos elementos, os resíduos de tanta evolução viajaram pela atmosfera do planeta, não havia distancia para impedir que espalhassem. Muitos morreram. E foi o fim de L’zuli. A vegetação morria aos poucos, logo as pessoas adoeceram. A vitalidade fora absorvida por aqueles seres imortais e somente a rosa pérfida permaneceria...

    Quando o deserto ameaçou o planeta, os antigos despertaram e a construção do portal começou. Houve então muita tristeza que jamais os lamentos do povo poderão deixar essa atmosfera. Um novo mundo, em outra galáxia, foi o escolhido.  Olho as estrelas e penso nos antigos. E por isso ficamos, a flor deve ser preservada para que o portal permaneça. Eis a minha função para que um dia, talvez, eles possam voltar em busca de novos mundos.

    E por isso devo destruí-la.

    O planeta azul não é desprovido de vida. Viviam lá humanóides em estado de selvageria. Um dia, as pirâmides irão se espalhar e mais uma vez alcançarão níveis inimagináveis de paz a um preço insano. Desconheço o destino dos que outrora chamei de meu povo. Se dormem com os deuses, ocultos em pirâmides de cristal tampouco, sei apenas que se foram e seu destino era o terceiro planeta em direção a uma estrela média, um sol menino. Neste planeta chamado Terra eles recomeçariam.

    E girarão vorazes mais uma vez, roubando a energia vital ou terão a chance de um novo mundo? Talvez outro portal me dê a resposta, este já não me permite a passagem, mas envio ainda assim a nossa saga, a história de um planeta que, outrora coberto por pirâmides e luz, adormece sob uma névoa de areia e murmúrios de outras eras.

    Um planeta por onde vago em busca de outras flores. Flores que devo destruir até que somente a areia cubra-nos e nunca mais o solo de L’zuli seja profanado. Pois sou apenas uma guardiã do infinito. 

Fonte: http://contosdelitfan.blogspot.com.br