terça-feira, 14 de março de 2017

O Homicídio Perfeito

A  deformidade  de  meu  caráter  jamais  me  envergonhou. Espírito astuto e dissimulado, nunca me expunha a quem quer que seja.   A minha  alma  exsudava  humores  peçonhentos,  malgrado imperceptíveis, mas eu bem sabia como, sorrateiramente, inocular o meu veneno. Era eu um predador cauteloso. Como uma serpente astuta e  insidiosa, mergulhava e recolhia, num átimo de um único segundo, as  presas precisas – profundas e aguçadas –, sem que a vítima o  percebesse.  Isto mesmo: só ensaiava o meu bote certeiro quando se menos esperava.


Sempre fui assim. As memórias mais distantes e profundas de minha  infância conduzem a cenas incrivelmente nítidas em minha mente,  que  se  movimentam  com  agilidade  e  perfeição,  como  se tivessem vida própria. Nelas, eu me ponho a furtar as guloseimas de um  colega  abastado somente   para  enfiá-las  na  mochila  de  um  menino  pobretão, com o único escopo de denunciá-lo e vê-lo espancado furiosamente pelo senhor diretor.

É evidente que nunca fui apanhado. Em toda a minha vida, sempre  gozei  de  excelente  reputação.  A  reiterada  prática  de  atos impunes,  em  vez  de  me  infundir  o  excesso  de  segurança  que irremediável e ordinariamente conduz à negligência e ao relaxamento, fez-me  cada  vez  mais  cauteloso.  Eu  era  um  gênio  na  arte  do malefício.  Mas  creio que foi o excesso de reflexão e cautela –  a propensão inata  a  um risco calculado – a origem de toda a minha desgraça.

Nós,  os  criminosos  inteligentes,  temos  também  as  nossas teorias.  Sempre  cri  que  o crime  perfeito  é  aquele  que  não  deixa vestígios. Não é exato supor que é perfeito o crime que não permite revelar a autoria. Este é um efeito reflexo, que pressupõe a verdade contida no primeiro postulado. Mas havia os que diziam que perfeito não  é  o  crime  em  si  mesmo  realizado,  mas  algo  exterior  a  ele.  Perfeito,  segundo  alguns,  é  o  crime  que  não  pode  ser,  física  ou legalmente, punido.

Certa feita,   apresentaram-me         ao  novo   inquilino do apartamento térreo. Chamava-se Houdry e consta que viera de Poitiers. Dizia-se dele que era um brilhante químico, membro da Academia de Ciências, hoje aposentado e definitivamente abandonado pela família. Mas, a mim, antes me parecia um demônio expulso dos infernos. A repulsa que senti por aquele homem foi imediata. O toque de sua mão pareceu-me tão asqueroso quanto a sensação táctil que se deve experimentar quando se acaricia uma víbora fria e sudorosa. Naquele momento, pude sentir, a subir-me pelo braço, um fluxo regelado e aterrador,  como  se  toda  potência  malévola,  que  emanava  do indivíduo, me inundasse até a exaustão, e me conduzisse quase à asfixia. Confesso que cheguei a cambalear. Ele me sorriu, exibindo os dentes afiados, os dentes de hiena. Então entendi que encontrara um inimigo à minha altura. Um inimigo traiçoeiro e letal. Imediatamente, pus-me  em  alerta.  E,  desde então,  fiquei  à  espreita, esperando  o momento  adequado  de cravar-lhe as minhas presas e inocular-lhe toda a minha irremissível peçonha.

Certo  dia  –  era  domingo  –,  acordei   muito  cedo  para  o costumeiro  passeio  nos  Champs-Élysées.  Desci  as          escadas  com grande disposição. Sorvi – como sempre – o aroma da rosa branca que  mantinha  na  lapela.  E  mergulhei   no andar  térreo  com  certa displicência, pois sentia o espírito leve como uma pluma. Mesmo assim,  não deixei de perceber que o Hiena esquecera a chave do apartamento no lado de fora, negligentemente enfiada na ranhura da fechadura.  Não  me  foi  nada  difícil,  em  pouco  menos  de  quinze minutos, obter uma  réplica da chave e repor a original onde eu a encontrara. O primeiro passo fora dado. Tudo seria uma questão de tempo e oportunidade. E esta não custou a chegar.

Na mesma semana, talvez na quarta-feira, soube, pela senhoria, que o senhor Houdry fora chamado às pressas a Poitiers para sepultar um parente próximo. Na noite em que o velho Hiena abandonou a toca,   entrei    sorrateiramente   em   seu   minúsculo   apartamento, empregando a chave forjada. Compunha-se de um único cômodo e de um banheiro acanhado.  Havia apenas uma janela, guarnecida de uma leve cortina de cetim vermelho, cujas fraldas aveludadas desciam pachorrentamente  sobre  o  espelho  da cama.  Ao  lado  ficava  uma mesinha-de-cabeceira  e,  sobre  ela,  descansava  um  velho  relógio despertador, irremediavelmente  quebrado. O antro era escuro. As paredes, as cortinas, o velho baú... tudo. Tudo estava impregnado da hediondez daquele homem. E eu podia sentir que todo o ambiente retinha  e  exalava  as  excrescências  de  um  caráter  tão  deformado quanto o meu!

A luz de minha lanterna percorreu as paredes até se deparar com um baú de madeira anciã, cravejada de botões dourados, onde o velho   guardava  o  vestuário.  As  roupas  cheiravam  a  naftalina. Exalavam o olor insuportável da velhice e da decrepitude. Examinei as vestimentas com cuidado. Nada havia nelas que despertasse o meu interesse, exceto um  cravo  ainda fresco, quase orvalhante, que se insinuava a partir do bolso  de um paletó antigo, mas muito bem conservado. Um terno que calharia  bem ao cadáver de um velho chacal. Levei o cravo ao nariz e sorvi, de  chofre, o aroma. Aspirei uma fragrância acre, que me fez recuar imediatamente, com o esgar estampado na face.

Mas  a grande surpresa foi encontrar um   pequeno refrigerador ao lado da porta do banheiro. Ora, aquilo estava longe de ser usual. Não foi necessário um exame minucioso para que eu encontrasse o que queria: a geladeira estava vazia, exceto por uma caixa de papelão contendo diversas ampolas. Era evidente que o velho padecia de um mal crônico e que o medicamento deveria ser conservado em baixa     temperatura. A primeira ideia que me ocorreu foi a de desligar o refrigerador e religá-lo antes do retorno do ancião. Mas abandonei esse  plano  imediatamente.  Era  uma  concepção  pueril,  e  eu  me admoestei energicamente. Como a viagem não deveria ser demorada, talvez não  houvesse tempo para que o remédio experimentasse o pretendido efeito  deletério. E havia a possibilidade de um retorno precoce. Se o Hiena  enxergasse a tomada desconectada, certamente tomaria sérias precauções, comprometendo seriamente o meu intento de matá-lo.

Subi ao meu quarto e retornei com uma seringa na mão. Ao acaso,  escolhi  uma  das  ampolas  e,  perfurando  com  a  agulha  a tampinha de borracha, injetei uma solução de cianeto de potássio, que há  algum tempo obtivera de um farmacêutico, a quem conduzira à ruína: eu era um mestre na chantagem e na extorsão.

Aquele empreendimento me rendeu um deleite extraordinário. Quando  o  velho  escolheria  a  ampola  fatal?  Ninguém  sabia.  A expectativa me fascinava. E a obra do acaso, de entremeio a uma ação homicida calculada, conduzia-me ao êxtase absoluto. Morrerá hoje? Morrerá amanhã? Deliciosa expectativa era esta. Havia um quê de sensualidade naquilo tudo.

O velho retornou dois dias depois de minha   visita sorrateira aos  seus  aposentos.  A  partir  de então,  passei  a  evitá-lo.  Quando casualmente nos encontrávamos, eu o tratava com extrema cortesia. E com atenção devotada, quase subserviente. Não poderia despertar suspeitas, mínimas que fossem.

Duas semanas após a corrupção da ampola, o velho Hiena desceu aos infernos. Exultei, consciente de que havia cometido um crime perfeito. Uma obra-prima no extenso rosário de delitos jamais descobertos.

Compareci ao funeral, respirei com satisfação o aroma dos cravos-de-defunto  e  protestei  por  segurar-lhe  uma  das  alças  do ataúde, no que fui prontamente atendido por meia dúzia de parentes entediados.

Foi no retorno do sepultamento que  apareceram os primeiros sintomas. De meu nariz fluiu um sangue espesso, pegajoso como catarro, em golfadas tão caudalosas quanto perenes. O Hiena não era tão leve quanto eu supunha; assim, atribuí a estranha hemorragia ao inútil esforço que fizera ao sustentar-lhe o caixão de madeira de lei.  Mas   eu   estava   completamente   equivocado.   Quando   veio   o diagnóstico, eu já definhava:

– Contaminação por metal pesado. Lamento, senhor, mas não há o que a Medicina possa fazer.

Como era ladino o Hiena, a quem imaginei proporcionar um fim rápido e indolor! Como foi sagaz, pondo a chave do apartamento praticamente em minhas mãos, instigando-me à incursão noturna. E como  foi arguto ao simular uma viagem a  Poitiers.  Ele me atraiu à ratoeira, depois de examinar atentamente os meus hábitos. Não foi à toa que o velho deixou ao meu alcance o cravo fresco, ainda úmido, mas impregnado de humores cancerígenos... Não foi sem propósito que me atirou aos terrores de uma morte lenta, dolorosa e cruel.

Mas o que me consome e exaspera é saber, nos dias de hoje, que  fracassei.  Que  minha  argúcia  fora  o  fio  condutor  da  minha própria ruína. Eu não sou o ás. Sou um homem a quem a humilhação pesa mais que um sudário.                Sim, o velho não padecia de mal crônico algum, nem dependia de remédios para sobreviver. Somente agora percebo o que era evidente. A geladeira e os medicamentos eram uma farsa. Pura mise-en-scène.

A morte do Hiena, para o meu horror, fora absolutamente natural...

fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/10/o-homicidio-perfeito.html