terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

O Apartamento 73

Era uma tarde normal de quinta-feira quando estávamos nos preparando para encerrar nosso expediente naquela repartição pública. Eu e mais duas funcionárias conversávamos, aguardando a saída da diretora que ainda estava na sua sala salvado arquivos e desligando o computador. Com um assunto bem corriqueiro, eu e a outras duas servidoras conversávamos sobre a crescente violência na cidade:

– Vale a pena pagar mais para morar num prédio, justamente pela presença de um porteiro e das câmeras.

– É apenas uma sensação de conforto, porque os bandidos também são atraídos pela facilidade e acumulo de bens nos condomínios.

– Isso é verdade, porém eu acho que residir em casa e bem pior.

– Eu sempre residi em casa e só entraram no meu quintal uma vez, para roubar minha bicicleta. Também vão roubar mais o quê na casa de um favelado como eu?

– Foi por isso que mandei fazer um muro bem alto, além do cachorro que avisa quando alguém está próximo. – neste instante surge a nossa chefe já tirando da bolsa a chave do seu carro, quando eu perguntei – A senhora mora em apartamento, não é Dona Josefa? Já teve problemas com a segurança?

A elegante diretora arregalou os olhos verdes esculpidos em um rosto orgulhoso, meditou por dois segundos e se posicionando à nossa frente dando início a este testemunho:



A experiência que eu tenho de apartamentos é apenas uma, já que fui morar nesse que estou assim que me casei. Até os últimos anos jamais tive do que me queixar. O prédio é da década de 1960, época em que meu computador era uma máquina de escrever que cheirava óleo Singer; porém agora eu estou querendo vender meu lar. Sabe aquele lugar onde você passou boa parte dos seus momentos felizes, vi meus filhos crescerem brincado, as visitas das pessoas que tenho afeto, cada recinto e cada parte tem uma recordação agradável. Tudo isso agora já está se apagando. Sendo substituído por uma insatisfação, além da vontade de mudar daquele prédio o quanto antes.

Vai completar um ano das minhas ultimas férias, no primeiro dia eu estava jantando com meu marido na sala de estar, a TV ligada passava o último telejornal. Sabe as habitações projetadas naquela época? Ela tem áreas bem amplas, justamente para satisfazer os anseios de conforto através do espaço. Então, eu comia de costa para a televisão e de frente para o Roberto quando ouvi os sarilhos pela primeira vez. Eram barulhos que viam do teto, como o de uma bola pesada rolando no piso de cima ou, quem sabe, uma criança correndo. Sarilhos, sim, um som igual a alguma coisa rolando bem acelerada. Depois que eu fui deitar escutei novamente os sons do apartamento de cima. Foi no silencio da noite que passei a distinguir tais barulhos, uma vez que não conseguia dormir sob aquela indecifrável intriga. O problema é que não vinham as minhas lembranças nenhum nome dos prováveis moradores lá de cima, meu tempo era muito corrido e quando chagava em casa tinha tantos afazeres que não sobrava nenhum momento para o convívio social com meus vizinhos. Com certeza teriam estes novos moradores um cachorro pequeno. Não, o som assemelhava-se ao de crianças brincado. Mas brincando madrugada adentro?

Nos meus primeiros meses de casada, quando fui morar ali no condomínio, quem residia naquele andar era Dona Margô. Sim, agora lembrei, Dona Margô do 73. Ela sempre estava nas reuniões de condomínio com sua cadeira de rodas, exigindo que colocassem uma rampa no lugar das escadarias na entrada. “O prédio foi construído em 1960, não dava para mudar mais sua arquitetura. – dizia o sindico da época”. Dona Margô quase nunca saía, graças às duas escadarias que o empreendimento possuía, a primeira no hall após o elevadores e a segunda que dava para a rua. Dona Margô era uma senhora sozinha e rabugenta, com suas razões, sempre gritando nas áreas comuns, pedindo ajuda porque queria descer as escadas... Uma vez ela até caiu da cadeira de rodas e arrastou-se pelos degraus gritando palavrões aos moradores que passavam. Esta foi a última vez que ela apareceu em público. Na mesma época que fiquei grávida do meu primeiro filho, soube que Dona Margô tinha morrido dentro de seu apartamento, este que fica em cima do meu, o 73. Depois disso passei anos sem ouvir ruídos lá de cima.

Conforme descansava nas minhas férias, os barulhos das crianças do apartamento 73 tornaram-se algo corriqueiro, que não incomodava muito e nem me espantava mais. Na quarta-feira, quando eu retornava do mercado, encontrei no elevador a minha vizinha do lado. Tivemos aquela conversa básica de vizinhos até chegar ao assunto que também aborrecia a senhora Vera: “As crianças do andar de cima ficam brincado de bola até de madrugada, você consegue dormir?” Respondi que também ouvia mas não me atrapalhavam muito, conclui a conversa já com a minha porta aberta e disse que iria alertar o zelador. Assim que entre interfonei para a portaria quando veio à surpresa, o porteiro confirmou convictamente que não morava ninguém no apartamento 73. Como assim, e os sarilhos que a vizinha e eu ouvíamos?

Bati na porta da senhora Vera para relatar o que tinha me dito o porteiro, ela também ficou pasmada. Resolvemos subir discretamente as escadarias até o andar de cima e tentar distinguir se os sarilhos realmente vinham lá de dentro. Nos aproximamos da porta do apartamento quando sentimos um cheiro forte de coisa suja, como roupas suadas que estavam um bom tempo sem lavar. Assim tivemos a constatação que colocou Dona Vera e eu em alarde, os barulhos vinham lá de dentro! Não pode ser possível, depois de anos o espírito daquela bruaca deficiente retornou para assombrar nosso prédio!

Eu contei sobre o caso para meu marido no mesmo instante que ele chegou em casa, mas a notícia do fantasma do apartamento 73 já estava sendo comentada até pelas crianças na área de recreação. A fofoqueira da Dona Vera tinha propago para todos os moradores sobre os barulhos que vinham lá de cima, isto porque ela queria uma solução imediata. Meu marido Roberto tentou me tranquilizar dizendo que iria ligar para o sindico depois que tomasse um banho, e assim fez. Como resposta o sindico afirmou que talvez fosse algum casal de adolescentes que entrava naquele apartamento para momentos de intimidade, porém aquela farra iria acabar porque no dia seguinte ele iria chamar a administradora do condomínio para entrar no apartamento 73.

O stress que tive naquele dia me fez desabar na cama sem ouvir mais nada, eu acreditava que meu sono viesse junto com a situação resolvida, antes mesmo da reação do sindico. A última coisa que refleti acordada foi em qual das duas coisas era pior: ser assombrada por um encosto senil com rodinhas ou saber que tinha um antro de orgia sobre meu teto?

Enquanto eu tentava levar uma vida de dona de casa, colocando as roupas na máquina e dando um jeito na cozinha, minha campainha tocou. A Dona Vera estava acompanhada do sindico para trazer a noticia de que o condomínio do apartamento 73 esta em dia, no entanto ligaram para o proprietário e este disse que não iria vir para o litoral abrir o apartamento; que contratasse um chaveiro e colocasse a conta no boleto para ele pagar; soube também que o dono do apartamento tinha muitas outras habitações desabitadas, ele era uma pessoa de posses. Assim ambos estavam aguardando a chegada do chaveiro para forçar a tranca daquela intrigante morada.

Me arrepio toda só de lembrar o que vi naquele apartamento aberto! Seria melhor eu ter visto a face do próprio diabo do que aquilo, pelo menos eu não teria a repulsa para ajoelhar-me e pedir perdão a Jesus por minha alma. Eu não pretendia nem estar pisando naquele chão imundo, quanto menos ficar de joelhos para uma prece. A imundice ali dentro era colossal. Tivemos dificuldade em abrir a porta devido a uma pequena crosta de sujeira no piso, desta camada sórdida que cobria o carpete brotava uma rala vegetação devido ao grande tempo de clausura. A madeira da entrada, paredes, estofados, mesa de centro e o móvel do bar estavam imundos e arranhados; igual a alguém que rastejasse há décadas por toda aquela moradia no intuito de levantar-se. Foi quando nós vimos o primeiro, caminhando devagar da cozinha, guinando várias vezes o focinho para cima, tentando farejar-nos... e depois vimos outro, mais outro, e logo eram dezenas! Estávamos paralisados, como um momento de transe antes do acidente, transe que foi interrompido pelo clamor ao Cristo ressuscitado saído dos lábios da Dona Vera; corremos para fora do apartamento quando eles estavam a uns dez metros da gente, selando novamente a porta para talvez nunca mais abrir.

Sabe aquela porra toda? A maior pestilência do mundo bem perto de onde eu durmo! O cheiro, eu ainda sinto o cheiro de ratos podre quando estou concentrada nos meus afazeres domésticos. É o pior odor que já senti. Uma sensação contaminante que se espalha por toda a casa num fedor e causa repúdio; igual uma moléstia que contamina para depois matar... Como exterminar aquela contaminação de roedores?

A primeira equipe de controle de pragas fez uma visita ao local e recusou o serviço, não quiseram indicar nenhuma outra empresa e saíram do prédio assustadíssimos. A segunda empresa também não quis o trabalho, porém nos orientou a chamarmos algum biólogo ou alguém da prefeitura porque aquilo era algo a ser analisado. Foi assim que vieram os técnicos da universidade, convocados pelo controle de zoonoses da cidade. Depois de dois dias de estudos descobriram que aquela era uma colônia de ratos diferente, uma que não sentia medo do ser humano porque nunca tiveram contato conosco. Como indicação pediram que fosse jogada uma isca especial que matasse depois de cinco dias, algo jogado pela janela por pessoas que descessem em cordas para eliminar toda a ninhada sem serem incomodados. Assim foi feito, com um grupo vindo da capital. O prédio todo permaneceu na expectativa, esperando o veneno fazer efeito de maneira eficiente. Agora, o cheiro que eu tinha sentido apenas lá dentro daquela habitação era também percebido por todos os condôminos. Odor que nos fez perceber que o inevitável estava próximo, a morte deteriorada, o consumo da carne adoente. Eu deveria esta satisfeita com a mortandade dos roedores, só que sentia o oposto e tudo aquilo me fez refletir muito sobre minha existência como um ser frágil também. Eu sou alguém que está no topo porém posso sumir num instante, como uma bolha flutuante de sabão. Graças a meu marido que, ao retornar do trabalho à noite, me tirou daquele purgatório de odor reflexivo e doentio, levando-me para passar uns dias no hotel.

Assim eu percebi que o maligno não surge das trevas e nem de qualquer umbral, mas está nesta própria terra.


Eu fiz uma pesquisa detalhada e descobri que este tipo de praga expõe os ratos mais vulneráveis para fazer a coleta dos alimentos que encontram, além de deixarem os ratos mais frágeis comerem primeiro, assim caso a comida esteja contaminada será o elo fraco da colônia que vai morrer. Agora me responda: Quem me garante que aquela grande ninhada de roedores foi completamente exterminada? Nesta consulta eu encontrei uma teoria de um tal Bulwer Lytton – acho que é este o nome – onde diz que "os instintos das criaturas irracionais detectam ameaças letais à sua existência". Provavelmente os membros mais fortes devem ter fugidos da mesma forma que chegaram. Os bichos pestilentos ficaram mais astutos quando depararam com a necessidade de manterem-se vivos e reproduzindo-se.


Nesses últimos dias eu não consigo mais descansar direito, qualquer barulho que escuto já imagino que são aqueles bichos famintos e ordinários. O pior é que os ruídos vêm dos lugares mais ocultos da minha casa, como atrás do guarda roupa, na parte interna das portas ou até dentro dos ralos; algo que só escuto durante o silencio da noite. Sinto que uma coisa de ruim está oculta dentro do meu lar, alguma influência coagida, presente e indiferente ao ser humano. Apesar de ninguém do prédio me dar crédito eu acredito que estão escondidos dentro da minha casa. Já coloquei o apartamento a venda, enquanto isso permaneço numa vigília constante em minhas madrugadas.

Nós assistíamos aquele depoimento hipnotizante da diretora, olhávamos o mover de sua boca, juntamente com os gestos eufóricos das suas mãos e seus olhos verdes mareados. Para quebrar toda tensão gélida, eu concluí dizendo:

– Ah, tá bom! Boa desculpa para chegar atrasada, só que comigo não funciona.

Todos ali riram de forma pesada, Dona Josefa ergueu a cabeça, retornando a ser a discreta e ajuizada senhora de sempre. Assim cada um partiu daquela repartição pública para suas vidas privadas. No dia seguinte a diretora entrou com um pedido de afastamento médico, permanecendo ausente até aposentar-se.

Fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/11/o-apartamento-73.html