quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

O Trem de Carne da Meia-Noite - Clive Barker (Parte 4)


O instinto dirigiu sua ação. Kaufman afundou-se mais sob o banco, o corpo transformado numa bola minúscula, o rosto pálido virado para a parede. Depois cobriu a cabeça com as mãos e fechou os olhos com força, como um garoto com medo do bicho-papão. A porta deslizou, abrindo-se. Clique. Suash. Uma lufada de ar veio dos trilhos. Um cheiro diferente de todos que Kaufman já havia sentido, e mais frio. O ar em suas narinas era algo primitivo, hostil e indescritível. Kaufman estremeceu.

A porta se fechou. Clique.

O Açougueiro estava perto, Kaufman sabia. Devia estar em pé, a poucos centímetros dele. Estaria olhando para as costas de Kaufman? Inclinando-se, a faca na mão, para tirar Kaufman do esconderijo, como um caramujo arrancado da concha? Nada aconteceu. Não sentiu qualquer bafo no pescoço. Sua espinha não foi aberta de alto a baixo. Apenas o som de passos perto da cabeça de Kaufman, depois o mesmo som afastando-se.

O ar preso nos seus pulmões, que estavam a ponto de estourar, foi expelído asperamente entre os dentes. Mahogany ficou quase desapontado ao ver que o homem adormecido tinha
desembarcado na Rua 4. Esperava ter mais uma tarefa a realizar naquela noite, que o mantivesse ocupado até o fim da linha. Mas não. O homem se fora. A vítima em potencial não parecia mesmo muito saudável, pensou. Provavelmente um anêmico contador judeu. A carne não devia ser de primeira qualidade. Mahogany atravessou o carro na direção da cabine do maquinista. Passaria o resto da viagem ali.

Cristo, pensou Kaufman, ele vai matar o maquinista.
A porta da cabine se abriu. Então ouviu a voz do Açougueiro baixa e rouca:

— Oi

— Oi.

Eles se conheciam.

— Tudo feito?

— Tudo feito.

Kaufman ficou chocado com o que havia de rotineiro naquela troca de palavras. Tudo feito? O que queria dizer tudo frito? Não ouviu as palavras seguintes, porque o trem passou por uma parte muito barulhenta dos trilhos. Kaufman não resistiu mais. Cuidadosamente desvirou o corpo e olhou por sobre o ombro para a porta do carro. Só podia ver as pernas do Açougueiro e a parte de baixo da porta da cabine aberta. Diabo! Queria ver outra vez o rosto do monstro.

Ouvia risadas agora.

Kaufman calculou os riscos da sua situação; a matemática do pânico. Se ficasse onde estava, mais cedo ou mais tarde o Açougueiro o veria, e ele seria transformado em picadinho. Por outro lado, se saísse do esconderijo, arriscava-se a ser visto e perseguido. O que seria pior, a imobilidade e depois a morte, encurralado num buraco, ou tentar a fuga e enfrentar o Juízo Final no meio do carro?

Kaufman surpreendeu-se com a própria coragem: escolheu sair dali. Com lentidão infinita arrastou-se de sob o banco, os olhos pregados nas costas do Açougueiro. Uma vez fora, começou a se arrastar para a porta. Cada palmo era um tormento, mas o Açougueiro parecia muito entretido com a conversa.

Kaufman chegou a porta. Começou a se levantar, tentando se preparar para o que ia ver no Carro Dois. Segurou a maçaneta, e a porta se abriu mansamente. O barulho das rodas aumentou, e uma onda de ar viciado e úmido, um fedor que não existia na terra o envolveu. Será que o Açougueiro iria ouvir algum ruído, ou sentir o cheiro? Será que se voltaria? Mas não. Kaufman passou pela pequena abertura da porta para a câmara ensangüentada.

O alívio fez com que se descuidasse. Não fechou a porta ao passar, e ela começou a se abrir com os movimentos do trem. Mahogany enfiou a cabeça para fora da cabine e olhou para a porta.

— Que diabo é isso? — disse o maquinista.

— Não fechei bem a porta. Nada mais.

Kaufman ouviu os passos do Açougueiro na direção da porta. Agachou-se, uma bola de pânico, contra a parede entre os dois carros, percebendo de repente que seus intestinos estavam cheios. A porta foi puxada do outro lado, e os passos se afastaram. Salvo, pelo menos por mais alguns minutos. Kaufman abriu os olhos, preparando-se para a carnificina que ia ver. Não podia evitá-lo.

Apossou-se de todos os seus sentidos: o cheiro das entranhas abertas, a visão dos corpos, a sensação do líquido no chão sob seus dedos, o som das alças de couro estalando ao peso dos corpos, até o ar com o gosto salgado de sangue. Estava naquele cubículo diante da morte absoluta, correndo velozmente, cortando as trevas.

Mas não sentiu náusea agora. Nenhuma sensação sobrou a não ser uma leve repugnância. Chegou a examinar os corpos com curiosidade. A carcaça mais próxima era o que restava do jovem espinhento do Carro Um. O corpo estava de cabeça para baixo, balançando para a frente e para trás ao ritmo do trem, em uníssono com os três companheiros; uma obscena dança macabra. Os braços pendiam molemente dos ombros, onde dois cortes com dois centímetros mais ou menos de profundidade tinham sido feitos, para que os corpos ficassem mais em ordem assim dependurados.

Cada parte da anatomia do garoto ondulava, acompanhando o ritmo do trem. A língua pendia da boca aberta. A cabeça balançava no pescoço cortado. Até o pênis sacudia de um lado para o outro na virilha pelada. Do ferimento na cabeça e do corte da jugular o sangue pingava ainda no balde preto. Havia uma certa elegância em tudo aquilo, a marca de um trabalho bem-feito. Ao lado do primeiro estavam os corpos de duas mulheres brancas e outro de um rapaz de pele morena. Kaufman inclinou a cabeça para olhar os rostos deles. Não tinham qualquer expressão. Uma das jovens era muito bonita. Achou que o homem devia ser porto-riquenho. Todos sem cabelo e sem pêlos. Na verdade, o ar estava repleto do cheiro pungente da tosa. Kaufman ergueu-se, encostado na parede do carro, e o corpo de uma das mulheres girou, mostrando as costas para ele.

Não estava preparado para aquele horror final. A carne das costas estava aberta do pescoço até as nádegas, e o músculo fora retirado para expor as vértebras brilhantes. O triunfo final da arte do Açougueiro. Ali estavam dependurados aqueles pedaços retalhados, tosados, sangrados de humanidade, abertos como peixes, prontos para serem devorados... Kaufman quase sorriu ante a perfeição daquele horror. Sentiu a sugestão de insanidade fazendo cócegas na base do seu crânio, tentando-o para o vazio, prometendo uma indiferença total para com o mundo. Começou a tremer incontrolavelmente. Suas cordas vocais tentavam formar um grito. Era intolerável; porém, gritar seria ver-se transformado numa das criaturas ali dependuradas.

— Foda-se — ele disse, em voz mais alta do que pretendia; depois, desencostando-se da parede começou a andar pelo carro entre os corpos balouçantes, observando as pilhas de roupas cuidadosamente dobradas ao lado dos outros objetos, nos bancos, ao lado dos donos. Sob seus pés o chão estava pegajoso, coberto de bile quase seca. 

Mesmo com os olhos quase fechados, via o sangue nos baldes com extrema clareza; era grosso e embriagador, com pontos de poeira girando dentro dele. Passou pelo jovem e viu a porta do Carro Três. Tudo o que tinha a fazer era percorrer a aterrorizante fileira de atrocidades. Obrigou-se a seguir em frente, tentando ignorar os horrores, concentrando-se na porta que o levaria de volta a sanidade. Passou pela primeira mulher. Mais alguns metros, disse para si mesmo, dez passos no máximo; menos, se caminhasse confiantemente.

Então as luzes se apagaram.

— Jesus Cristo — disse ele.

O trem inclinou-se para um lado, e Kaufman perdeu o equilíbrio.Na escuridão completa procurou apoio e os braços frenéticos abraçaram ocorpo mais próximo. Antes que pudesse evitar, sentiu as mãos mergulharem nacarne macia e os dedos agarrando a borda aberta do músculo das costas da mulhermorta, as pontas tocando o osso da espinha. Seu rosto estava encostado na carne sem pêlos da virilha.

Ele gritou e estava gritando ainda quando as luzes se acenderam. E quando as luzes voltaram, piscando, e o grito morreu na sua garganta, ouviu o ruído dos passos do Açougueiro atravessando o Carro Um em direção à porta. Largou o corpo que abraçava. Seu rosto estava sujo do sangue da perna da mulher morta. Kaufman o sentia como se fosse uma pintura de guerra dos índios. O grito havia desanuviado sua mente, e sentiu de repente uma espécie de
força. Não ia haver perseguição por todo o trem, ele sabia; não ia haver covardia, não agora. Ia haver um confronto primitivo, dois seres humanos, face a face. E não haveria truque — qualquer truque — que ele não estivesse disposto a usar para derrotar o inimigo. Era uma questão de sobrevivência, pura e simples.

A maçaneta da porta girou.

Kaufman olhou em volta, procurando uma arma, os olhos firmes e calculadores. Viu a pilha de roupas ao lado do corpo do porto-riquenho. Havia uma faca entre os anéis de pedras falsas e cordões imitando ouro. Uma arma limpa e imaculada de lâmina longa, orgulho e alegria de um homem. Estendendo o braço para além do corpo jovem e musculoso, Kaufman apanhou-a. Era uma sensação agradável, segurá-la; na verdade, extremamente excitante. A porta estava sendo aberta, e o rosto do Açougueiro apareceu.

Kaufman olhou para Mahogany através do matadouro. Não era terrivelmente assustador; apenas outro homem cinqüentão, gordo, meio calvo. Rosto pesado, olhos fundos. A boca, pequena para o rosto e lábios delicados. Na verdade, uma boca feminina. Mahogany não podia entender de onde tinha surgido aquele intruso, mas sabia que era outro dos seus descuidos, outro sinal de incompetência crescente. Precisava despachar aquela criatura imperfeita imediatamente. Afinal, não deviam estar a mais de dois ou três quilômetros do fim da linha. Precisava retalhar o homenzinho e dependurá-lo pelos tornozelos antes de chegar ao seu destino.

Entrou no Carro Dois.

— Você estava dormindo — disse, reconhecendo Kaufman. — Eu o vi.

Kaufman não disse nada.

— Devia ter saído do trem. O que estava tentando fazer? Queria se esconder de mim?

Kaufman continuou em silêncio.

Mahogany segurou o cabo do cutelo que pendia do cinto de couro muito usado. Estava sujo de sangue, bem como o avental de cota de malha, o martelo e a serra.

— Agora — disse ele — tenho de liquidar você também.

Kaufman ergueu a faca. Parecia pequena comparada as armas do Açougueiro.

— Foda-se — ele disse.

Mahogany sorriu das pretensões de defesa do homenzinho.

— Não devia ter visto isto; não é para gente como você — disse ele, dando outro passo para Kaufman. — E um segredo.

Oh, ele se julga um tipo inspirado por Deus, certo? — pensou Kaufman. Isso explica muita coisa.

— Foda-se — repetiu.

O Açougueiro franziu a testa. Não gostava da indiferença do homenzinho por seu trabalho, por sua reputação.

— Todos nós temos de morrer um dia — ele disse. —Você devia estar satisfeito, não vai ser liquidado como a maioria deles. Posso usar você. Para alimentar os Patriarcas.

A única resposta de Kaufman foi um sorriso. Não estava mais aterrorizado com aquele monstro grosseiro e desajeitado.

O Açougueiro tirou o cutelo do cinto e o brandiu no ar.

— Um judeuzinho imundo como você — disse ele —devia agradecer por poder ser útil; ser carne é o melhor que pode desejar.

Sem nenhum aviso, o Açougueiro atacou. O cutelo dividiu o ar com velocidade, mas Kaufman recuou para longe do alcance da arma. O cutelo raspou a manga do seu paletó, cortando-a e foi se enterrar na nádega do porto-riquenho. O impacto quase decepou a perna, e o peso do corpo abriu mais o talho. A carne exposta da coxa era como carne da melhor qualidade, suculenta e apetitosa. O Açougueiro começou a retirar o cutelo do corpo e nesse momento Kaufman atacou. A faca moveu-se velozmente para o olho de Mahogany, mas por um erro de cálculo atingiu o pescoço. Atravessou a coluna e apareceu do outro lado, com uma pequena gota de sangue. O pescoço atravessado. Com um único golpe. De um lado ao outro.

Mahogany sentiu a lâmina no pescoço como uma sensação sufocante, quase como se tivesse um osso de galinha atravessado na garganta. Emitiu um som ridículo de tosse. O sangue escorreu dos seus lábios, pintando-os como batom numa boca de mulher. O cutelo caiu no chão. Kaufman retirou a faca. Dos dois ferimentos o sangue jorrou, em arco. Mahogany caiu de joelhos, olhando para a faca que o havia matado. O homenzinho o observava passivamente. Dizia alguma coisa, mas Mahogany estava surdo para as palavras, como se estivesse embaixo d’água.

De repente Mahogany ficou cego. Sabia, com uma nostalgia dos sentidos, que jamais ia ver ou ouvir outra vez. Isto era a morte. Estava com ele, sem dúvida. Porém a mão sentia ainda o pano da calça, e os borrifos quentes na sua pele. A vida parecia andar na ponta dos pés, enquanto os dedos agarravam-se aos últimos sentidos... e então o corpo desmoronou, e as mãos, a sua vida e seu dever sagrado desapareceram sob o peso da carne cinzenta.

O Açougueiro estava morto.

Kaufman respirou profundamente o ar viciado e segurou uma das alças de couro para se equilibrar. Lágrimas obscureciam a visão da cena que o rodeava. Passou-se algum tempo; não sabia dizer quanto se demorou perdido num sonho de vitória. Então o trem começou a diminuir a velocidade. Sentiu e ouviu os freios sendo acionados. Os corpos dependurados foram lançados para a frente quando o trem deslizou, diminuindo a marcha, as rodas guinchando nos trilhos suados e pegajosos.

Kaufman foi dominado pela curiosidade.

O trem ia desviar-se agora para o abatedouro subterrâneo do Açougueiro, decorado com as carnes que ele havia colecionado em toda a sua carreira. E o maquinista risonho, tão indiferente ao massacre, o que faria quando o trem chegasse ao seu destino? O que quer que acontecesse agora era acadêmico. Kaufman podia enfrentar qualquer coisa; olhar e ver.

O alto-falante estalou. A voz do maquinista:

— Fim da linha, cara. Melhor ir para o seu lugar, hein?

Ir para o seu lugar? O que significava isso? O trem estava quase parando agora. Lá fora tudo estava escuro, como sempre. As luzes piscaram, depois se apagaram. Dessa vez não acenderam novamente.

Kaufman estava em completa escuridão.

(Continua)