segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Desculpas
Gente, queria pedir desculpas e dizer que vou voltar a postar logo, mas só posso pedir desculpas. A Internet aqui onde eu vivo está uma porcaria e não tem perspectiva de voltar por um tempo razoável, só peço paciência e desejo tudo de bom pra vocês, gente linda.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Armadilha

Por alguns instantes, apenas as batidas do meu coração rompem o silêncio enervante e ameaçador. Frio. O escuro ao meu redor. Lentamente respiro e procuro ouvir a respiração dos outros. E mais uma vez a voz suave, perigosamente suave, me indaga, quase implora:
— Conte, o que você fez?
No entanto, meus pensamentos estão confusos e não consigo pensar em algo coerente. Nem mover os dedos dos pés. Ficaram adormecidos pelas pancadas com a barra de ferro das últimas horas. Devem estar fraturados e abençoadamente não sinto a dor. Mas sinto o gosto acre do meu próprio sangue nos lábios rachados pelos socos. Tenho sede, muita sede e a desidratação me enfraquece. Ainda assim, consigo balbuciar:


— Um pouco de água...
Ah, a dor de volta, cruelmente a água salgada escorre pela minha cabeça e minha língua ávida tenta captá-la pesar do ardor dos ferimentos.
— Eu não fiz nada a ela... não sei onde está.
Esta voz rouquenha que me arde a garganta, nascendo de um último resquício de forças não parece minha. Posso ouvi-los, minha resposta os enfurece. A calma dá lugar a ira. Chutes, pontapés... o refinamento foi embora. Existe muita raiva nas pancadas que recebo. O que você fez? Onde ela está? O que você fez? Velhas e repetitivas, as perguntas giram e me enjoam. O que eu fiz? Saberiam aqueles senhores entender sequer o que havia ocorrido? Ah, Kalinca, minha doce Kalinca. Nem eu o sei.
Depois o nada. Um longo e completo nada e penso em dormir.Eles se foram.*— Temos testemunhas de que estavam juntos lá. Só precisa nos dizer.A voz é amiga, macia, quase confortante; causa-me, no mais humano em mim, uma necessidade ferrenha de chorar e confessar meus segredos mais íntimos. Posso sentir o carinho na voz do meu inquiridor. Suave como as carícias de Kalinca.
— O que você fez com ela? Só precisamos saber onde ela está e depois... você poderá descansar.
Ele é o mais perigoso, os outros são como bestas, atacam desordenadamente, bufando, violentos e insanos. Este da voz macia se compraz, sorri com a dor, convence, quase seduz com a idéia de que a dor é tudo que precisamos. A tortura é uma arte que aprendi a conhecer muito bem.
Kalinca, ah, doce Kalinca, seus risos, sua dança. Querida Kalinca. Quase choro com as lembranças vivas dela.
— Não sei de nada. Me deixe ir — trêmulo, repetindo a mesma sentença como uma ladainha.
A dor. Novamente a dor.
Com que requintes o homem sabia aplicá-la. Lenta, quase infinita, não intensa, não letal, apenas lenta e contínua dor.
O tempo deveria ser indefinido aqui, no entanto, apesar da venda nos olhos e dos horários irregulares, nos quais sou interrompido por diferentes torturadores, posso detalhar os minutos e segundos que passo aqui, nesta sala fétida. Desde a noite em que ela se foi.
Controle, meu controle está indo embora, um laivo de insanidade me espreita, sinto vontade de gargalhar. O escuro me ajuda a conter os instintos.Tenho sede.*
Mais uma vez o silêncio me machuca. Não sei onde eles estão, apenas o escuro da venda sobre meus olhos, a dor dos ferimentos e as noites roubadas. Desmaiei por algum tempo e a febre me consome. Minha boca sofre a falta de água, mas não há justiça nos métodos destes homens. O pai de Kalinca está aqui, todos os dias ele vem. Deve ser difícil para ele não poder me matar com as próprias mãos, somente a crença de que eu possa dizer onde ela está permite que eu ainda viva. Entretanto, não sei o que houve, tenho lembranças vagas sobre a última vez que a vi e a dor que tenho vivido embota meus sentidos, os delírios têm sido constantes em meio à sede, a fome e a dor.
Kalinca... A primeira vez que a vi, ela dançava e seus risos espalhavam-se pelo ar. Impossível não amá-la. Mas não contava que ela pudesse me amar.Perseguiu-me, inexoravelmente, no furor do primeiro amor. Rica, bonita e determinada. O pai, literalmente, o dono da cidade. Tudo o que eu não precisava, portanto fugi. Mas sou homem e fraco, a pele jovem e fresca, o riso feliz, o semblante carinhoso diluíam minha resistência, em poucos dias após minha chegada na cidade eu já a amava. Foi quanto tudo aconteceu. Numa noite calma e sem luar, brisa leve nas árvores, fui convidado a uma festa. Ela estava lá, a atração foi irresistível e estivemos juntos por toda a noite. Por alguns dias, cedi ao seu fascínio singular. No entanto, resolvi deixá-la. Comecei a fugir, fui rude, maltratei-a mais de uma vez, pois não acreditava no amor nem nos caminhos obscuros pelos quais nos levariam.
Certa noite, recluso em casa, preparando-me para um sono sem sonhos, ouvi os chamados no portão do velho sítio que escolhi por morada. Uma amiga de Kalinca implorava:
— Vem comigo, ela vai fazer algo horrível, por favor, só você pode ajudar! — As palavras vinham entrecortadas por soluços e lembrei-me da voz meiga dizendo que viver sem mim não seria vida. Segui o carro da moça temendo pela vida de minha querida, angustiado pelas lembranças das palavras bruscas que usei para afastá-la.
Dirigimos por uma estrada esburacada que levava a uma casa pequena na beira do rio. Desci e com a pele coberta pelo suor inquiri à jovem. Ela me dizia confusamente que, entristecida sem mim, Kalinca resolvera morrer, trancando-se ali com armas letais. Trêmulo, chamei por ela até que uma porta abriu-se levemente e entrei. Ela estava viva.
Uma armadilha! Do amor, do destino! A garota lá fora buzinou risonha e partiu. Eu estava preso junto a mais doce pessoa que conhecera. Que dizer? Amei-a com paixão. No entanto, quando mais tarde tentei sair, me descobri realmente preso. Eu deveria ter percebido, resquícios de morte e dor impregnavam o ar, mas tão concentrado estava em Kalinca que ignorei meus sentidos. A casa, servindo aos objetivos escusos do pai, era em verdade uma prisão, a única chave estava com a amiga e esta só viria depois de três dias. Depois de tentar sair de inúmeras formas, aceitei. Três dias. Pensei que seria o suficiente, mas não contava com o destino.
Foram três dias de alegria, de amor e risos, tudo estava preparado para nós dois e nada nos faltou. Eu nunca fora tão feliz. No entanto, ela não veio na terceira noite, nem na quarta, nem na quinta. Até que no sexto dia, a noite chegou e o medo me invadiu, se ela não viesse, seria tarde, muito tarde. A prisão forçada começava a inquietar minha amada, que chorosa pedia-me perdão. Eu guardava minhas apreensões em silêncio, angustiadamente, sentia a ameaça que nos rondava. Caminhava na minúscula sala como uma fera enjaulada. Sim, uma fera enjaulada, eis o que eu me tornara.Ah, minha doce Kalinca. O que você fez?*Frio, sinto o frio cortando minha pele. Não sei onde estou. Deitado nesse canto obscuro de um esgoto fétido, as lembranças vão retornando. Eu ainda estaria lá, naquela sala minúscula? Sonho e realidade se confundem.
Lembro-me de estar vendado, dos dias de imobilidade forçada, da dor, da pressão e dos sentimentos confusos acumulados forjando uma intensa explosão interna. Nos meus delírios, podia sentir o controle perdido, a besta se aproximando, tênue, estendendo as garras imundas e tocando minha pele por dentro. Eu me lembro: uma risada debochada escapou pelos meus lábios feridos e me assustei com sua ferocidade. Foi o riso que os descontrolou, entretanto, já era tarde.
A fera estava à espreita, aguardando. Podia senti-la na febre que me consumira.
— Ela te amava sabia? Minha menina te amava... — eu sabia quem falava, apesar de não ver o rosto nas sombras, reconhecia a voz do banqueiro, sem orgulho, sem raiva, apenas em desespero contido, enquanto ele saia do aposento. — E eu não pude impedi-la.
Sofri mais um ataque feroz. A dor já não importava nesse momento, apenas a febre, a fera. E eu ria debochadamente. Podia ouvi-los pela respiração ofegante, eram quatro.
— Querem saber onde ela está? — é sempre assim quando a fera vem, suplanta meus sentimentos e obscurece a razão. Deleitei-me com o suspense.— Está aqui, comigo! Ela vive em mim, na minha carne, no sangue que me embriagou, na carne que me satisfez. — e eu ria, ria e ria enquanto o choque perante meus gritos paralisou os homens que por vários dias buscavam a resposta. — AH, MINHA DOCE E SABOROSA KALINCA.Mas então a dor voltou, intensa, feroz. Os espasmos me contorciam, me dilaceravam, minha pele estava sendo rasgada, minhas unhas cravaram-se na minha própria carne e uivei. Uivei e o tecido que me cobria desapareceu enquanto os pelos me feriam, rasgando sua própria trilha nos meus poros, o sangue fervendo em instinto puro. Meu último pensamento foi a certeza de que a noite chegara: a lua nasceu e com ela, a fera me vencia mais uma vez.*Depois acordei aqui e sei que estão mortos. Simplesmente assim. Os homens daquela sala morreram. Menos ele que me observava em outro aposento. Sei que ele fugiu quando a fera se soltou. Mas jamais irão crer nas palavras de um velho consumido pela dor da perda, desesperado para encontrar a filha desaparecida. Meu segredo está garantido, debalde ele me persiga, será apenas mais um em busca de uma vingança infrutífera.
Não, não tenho lembranças daquela noite, nem da noite em que Kalinca se perdeu. Quando a fera vem, quando ela vai surgindo devagar, a terra gira e o luar vai aparecendo, ah, posso sentir o veneno, o sabor, o prazer que ela usufruiu e algumas lembranças emergem. Mas, nunca tenho clareza sobre os fatos. Despertar coberto por sangue, cercado por carne dilacerada já não me surpreende. Um mito, um deus, uma lenda? Não, é apenas o que sou, o meu legado, a minha sina. Um lobo oculto na pele de um homem. Atravessando cidades, tentando encontrar uma existência normal até que o próximo luar liberte a fera que vive em mim.
Autora: Tânia SouzaFonte: contosdeterror.com.br

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Alucinação
– Sente-se, por favor. – Disse o Dr. Offenbach.
A mulher obedeceu.
Offenbach, de mãos em concha, uniu os longos dedos pelas extremidades e perscrutou a figura atentamente. A senhora Sílvia Anabel Pissarro de Quiroga era uma mulher na casa dos trinta anos. Gestos comedidos, poderia insinuar uma grave elegância, não fosse todo aquele esforço em conter as torrentes de um espírito atribulado. Estranhamente pálida, tinha o rosto oval e os cabelos quase negros. Os olhos eram uma escura sombra de cansaço. A aflição no olhar a deixava singularmente bela. Agradeceu ao médico com um leve arquear de sobrancelhas.

– Bom dia – disse o Dr. Offenbach. – Sônia Paes falou-me perfunctoriamente sobre o seu problema. A senhora deve estar a par de que estou praticamente aposentado. Não pego um caso há vários anos. Se tivermos que trabalhar juntos, exijo – note bem! –, exijo sinceridade absoluta. Quero toda a verdade. A senhora deve responder a tudo o quanto eu perguntar. E nada, nada mesmo, pode ser falseado ou omitido. Está disposta a colaborar?
A mulher limitou-se a concordar com a cabeça. Offenbach prosseguiu:
– Sônia Paes recusou-se a tratá-la porque é sua amiga íntima. E recorreu a mim porque acredita que eu sou um de seus melhores colegas. Sônia foi uma das mais brilhantes alunas que eu tive. Mas não sei se fez bem em passar o caso para mim. Estou muito velho, antiquado, e não sei se você confia em mim.
Pela primeira vez, a Sra. Pissarro abriu a boca para falar:
– Confio em Sônia. Se ela pediu que eu o procurasse, é porque posso confiar inteiramente no senhor.
– Muito bem, Sra. Pissarro. Conte-me tudo.
– Como assim?
– Comecemos com uma descrição. Faça-me uma síntese de seu problema.
O médico não pareceu nem um pouco consternado com a onda de aflição que atingiu o seu velho cais, vindo de uma mulher que parecia sinceramente surpreendida por um golpe de vento áspero e desleal.
– Sinceridade absoluta, Sra. Pissarro – continuou, enfático.
A jovem baixou os olhos, ansiosa.
– Eu vejo coisas – articulou, gélida e imóvel como uma bela estátua de bronze.
– Que coisas?
– Vejo pessoas que já morreram.
– Pessoas? – indagou o médico, inflexível. – Não está me omitindo algo?
– Pessoas, não. Mas uma determinada pessoa – Pissarro respondeu, trêmula.
– Quem?
– Horácio, meu marido.
– Em que circunstâncias o seu marido faleceu, senhora Pissarro?
O rosto dela crispou-se. Pareceu envelhecer em segundos. Ergueu o olhar para o psiquiatra, implorando:
– É mesmo necessário que eu conte? O senhor já deve saber. Sônia contou.
– Preciso ouvir de você mesma. Suas impressões pessoais são importantes. A leitura de sua expressão gestual é importante. Tudo em você é importante, senhora. O que você disser, ficará lacrado neste velho cofre. Eu sou o cofre. Só coisas importantes e secretas têm lugar num velho e seguro cofre como eu.
– Creio que eu o matei.
– Como assim, creio? Não tem certeza?
– Eu deveria ter descartado as ampolas. As malditas ampolas. Mas, sinceramente, não sei se o fiz. Não consigo me lembrar. Tenho a impressão que me desfiz delas. Mas é algo vago, ente o sonho e a realidade. Só sei que ele as encontrou.
– Com que frequência você vê Horácio?
A mudança de rumo na inquirição ofereceu um certo alívio a Sílvia Pissarro.
– A princípio, era algo ocasional. Ele apareceu a mim, pela primeira vez, em nosso aniversário de casamento. Depois, no meu aniversário. No aniversário de sua morte, eu me preparei. E não errei. Lá estava ele, de roupão, sentado em sua poltrona de veludo magenta, olhando para mim com os olhos espantados, em agonia. E não mais saiu de lá. Ele sempre está lá, recostado na poltrona, imóvel, silencioso, com a face desfigurada pelo assombro, pelo medo.
– Entendo – disse o doutor. – Há histórico de esquizofrenia em sua família?
– Não que eu saiba. Tenho pais, irmão, tios e avós saudáveis. O senhor acha...
– Tenha calma, Sílvia. Muita calma. Vamos aos poucos. Além do fantasma – digamos assim – de Horácio, algo mais a perturba?
– Não.
- Tem certeza?
– Tenho.
– Ouve vozes?
– Nunca.
– Já tomou barbitúricos? Anfetaminas?
– Não.
– LSD?
– Não.
– Bebe com frequência?
– Não.
– Tem ideias suicidas?
– Não antes de Horácio reaparecer. É difícil vê-lo todos os dias... naquele estado de agonia.
– Alguma vez, na sua vida, mesmo na infância ou adolescência, ouviu vozes ou viu fantasmas? – insistiu o doutor.
– Nunca tive amiguinhos imaginários ou vi seres de outros mundo. Até Horácio se instalar na poltrona magenta e não mais sair de lá.
– Às vezes, cara Sílvia, a mente nos prega umas pecinhas desagradáveis. Não creio que você seja esquizofrênica, mas não estou completamente certo disto. No que tange à mente, nada pode ser descartado e nada é impossível. Em tese, nem mesmo os estados de imensa tensão, nem mesmo o sentimento de culpa exacerbado, nada disso é potente demais para provocar alucinações tão intensas. Mas, sinceramente, não creio que esteja diante de uma mulher que instalou uma ruptura absurda e irremediável com o mundo exterior. Voltemos, pois, às tensões e ao sentimento de culpa. Talvez sua mente haja elaborado um traiçoeiro teatrinho. É preciso, então, reescrever o roteiro. Com a minha ajuda.
– É tudo o quanto eu quero.
– Horácio nunca lhe diz nada, certo?
– Certo.
– Está sempre letárgico, inerte, catatônico.
– Isto mesmo.
– Você acredita em fantasmas, senhora Pissarro?
– A princípio foi o que eu pensei. Imaginei que via um fantasma. Agora sei que estou doente. Sônia, que respira espiritismo e acredita nestas coisas, não acha que eu esteja vendo fantasmas ou espectros do outro mundo.
– Nessas tolas e vulgares histórias de fantasmas, os mortos voltam do além porque algo não ficou resolvido. O fantasma é um ente eminentemente irresoluto. Aparece para que certas coisas sejam cumpridas. Não é sempre assim?
– Nem sempre – objetou Sílvia Pissaro. – Às vezes querem nos dizer coisas que não puderam fazê-lo enquanto vivos. Já ouvi coisas assim.
– É verdade! É verdade!
– Mas o que têm os fantasmas a ver com o meu transtorno?
– Nada a ver. Todavia, podem nos inspirar um método.
– Não entendo.
– Lembra-se de nosso teatrinho? Façamos Horácio falar. É nele que reside o seu inconsciente, cara Sílvia. Então, é lá que estão as respostas. Façamos Horácio falar. Vejamos o que não ficou resolvido, ou o que ele tem a dizer.
– O senhor está me sugerindo que converse com uma ilusão?
– Exatamente.
– Quer que eu faça como os loucos? Que fique falando sozinha? Ou melhor, para uma poltrona vazia?
– Isto mesmo.
– Talvez faça sentido, afinal.
***
Sílvia Anabel Pissarrro de Quiroga girou as chaves do apartamento, empurrou a maçaneta e levou a mão para o interruptor. Fez tudo isso pensando no que diria à poltrona magenta, onde a sua imaginação enfermiça pusera a sentar-se, indefinidamente, o fantasma de um marido morto há quase três anos. A luz acendeu. A poltrona estava surpreendentemente vazia.
Apenas uma conversa sobre delírios fantasmagóricos com um ancião psiquiatra e tudo se resolvia, como por encanto? Era bom demais para ser verdade.
Sílvia deixou-se conduzir a cada um dos cômodos da casa. No quarto, viu que não estava só. Havia alguém em sua cama. Mas não era Horácio.
Uma mulher acabara de erguer-se. Caminhou em direção a Sílvia, passando por ela sem parecer notá-la. Mesmo sabendo que tudo não passava de uma alucinação, Sílvia sentiu um imenso calafrio. Com os pelos eriçados, foi no encalço daquela silhueta apavorante. Na sala, a luz estava acesa. Sílvia viu, terrificada, a si mesma dirigindo-se, quase cambaleante, à cozinha, usando a ridícula camisola de ursinhos dourados. A Sílvia-alucinação foi à geladeira. A outra ligou o interruptor, a tempo de ver a sua miragem examinar sonolentamente as ampolas. O fantasma acionou o pedal da lixeira e, preguiçosamente, mergulhou-as no saco, uma a uma. 
 O espectro de camisola de ursinhos passou novamente pela Sílvia de carne e osso e, de súbito, voltou-se para ela. Mas, agora, como num sonho de alucinógeno, não era a Sílvia-delírio quem retornava à cozinha. Era Horácio. Vestia um roupão cinza e parecia angustiado. Foi à geladeira. Mexeu, remexeu. A ávida procura resultou em imensa frustração, porque o homem bateu violentamente a porta da geladeira e a esmurrou com ambas as mãos. Sílvia viu o marido esquadrinhar todo o apartamento, numa busca frenética pelas ampolas, até encontrá-las no lixo da cozinha. Foi terrível ver o marido, reclinado na poltrona, com seringa na mão, mergulhar a agulha na veia do braço esquerdo, enquanto jogava a cabeça para trás e fechava os olhos, imprimindo na face uma outra face, uma face de morte, um esgar de alívio e pavor...
– Adeus – disse Horácio, olhando para Sílvia, enquanto esfumava, evanecente.
***
Disse o Dr. Offenbach:
– Sente-se, por favor.
A mulher obedeceu.
Offenbach, sempre de mãos em concha, com as pontas dos dedos unidas, mirou a figura com ar de aprovação. A senhora Pissarro era uma mulher bem mais jovem do que aquela trintona de um mês atrás.
– E então? – indagou o médico. – Parece que o nosso teatrinho surtiu efeito. Falou com o fantasma? O que ele lhe disse?
– Aconteceu uma coisa estranha. Ele não me disse nada. Mas me mostrou o que aconteceu. Eu deveria ter sido mais cautelosa, sem dúvida. Mas não poderia imaginar que ele fugiria da clínica, que ele voltaria para casa naquela mesma noite...
– Vamos com calma. A calma é sempre bem-vinda.
– No dia em que Horácio morreu, eu havia chegado do exterior, do Oriente, dois dias mais cedo do que o previsto. Não encontrei Horácio em casa. Liguei para ele, mas ele não atendeu. Disquei, então, para a minha sogra, e ela me disse que o filho tivera uma recaída e fora levado inconsciente à clínica de reabilitação na noite anterior. Em cada recaída, minavam as ampolas. E eu deveria me livrar delas, urgentemente. Sentei na cama para pensar em que fazer, mas estava cansada demais. Acabei adormecendo. Quando acordei, já era noite. Levantei-me e fui à cozinha. Estava semiadormecida, mas com sede. Vi as malditas ampolas e as joguei no lixo. Voltei à cama e apaguei. No dia seguinte, de manhã, encontrei o meu marido morto na poltrona magenta. Mas não me recordava precisamente de ter-me levantado durante a noite, e nem ao certo do que fizera. Tudo me parecia muito enevoado, confuso...
– Parece que o sentimento de culpa a abandonou. Ao menos o suficiente para desvelar a inevitabilidade dos acontecimentos. E, com a culpa, também se foi o seu marido.
– Acho que ele não voltará mais.
– Esteja certa disto – concluiu o médico. – Enquanto você tomava as suas, eu também tomava as minhas providências. Tenho certeza de que agora tudo está resolvido. Dou a minha palavra que Horácio jamais, nunca mais, voltará a sentar-se na cadeira magenta.
Quando os passos de Sílvia reverberaram no corredor, Offenbach sorriu, satisfeito. Este fora realmente um grande caso. Um caso difícil: recuperar uma alma em desespero, sem traumatizar uma outra, mergulhada no horror e na angústia. Desde que falecera, há mais de vinte anos, o velho psiquiatra continuara a exercer a sua profissão no outro escaninho da existência humana. Agora, dedicava-se a conduzir os espíritos perdidos – as almas penadas – às reconfortantes e luminosas pradarias das dimensões etéreas.
Pouco a pouco, a silhueta de Offenbach desvaneceu num redemoinho cintilante, que vagarosamente ascendeu em tênues estratos circunvolutos.


fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/10/alucinacao.html

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

O Porão

Anos atrás minha família decidiu passar as férias na serra gaúcha e para isto alugou uma pequena e antiga casa em Gramado para ficarmos durante duas semanas.
No andar térreo a casa possuía uma sala, banheiro e a cozinha. Os quartos eram no andar superior e havia ainda um porão que era usado apenas como depósito de coisas velhas contendo um sofá, armários e outras coisas sem muita importância.
O primeiro dia nesta casa transcorreu de forma tranquila: passeamos pela cidade, voltamos a tardezinha, fizemos um delicioso fondue, brincamos e dormimos todos esgotados pelas atividades do dia.

Na segunda noite algo aconteceu: fomos acordados no meio da noite por um grito terrível vindo do quarto de minha irmã. Quando meu pai chegou correndo até lá encontrou a garota sentada na cama gritando e chorando muito. Meu pai se sentou ao seu lado, a abraçou e perguntou o que havia ocorrido.
Ela contou que tinha acordado sentindo um cheiro horrível. Quando ela abriu os olhos disse ter visto o quarto inteiro encharcado de sangue, as paredes possuíam marcas de mãos e pés, o liquido vermelho escorria pelas paredes e havia respingos por todos os lados.
Todos pensaram que havia sido apenas um pesadelo, porém minha irmã se recusou a dormir novamente naquele cômodo e acabou se mudando para o de meus pais até o final das férias.
Em outro dia minha mãe estava fazendo o almoço, enquanto meu pai estava fora,  e nós explorávamos o porão, examinando cada coisa velha que achávamos por lá. Até que ouvimos um estalo e a luz apagou nos deixando na escuridão. Apesar de ser dia, o lugar ficava quase todo escuro iluminado apenas por uma claridade que vinha do andar superior, nos permitindo ver apenas as paredes de pedras antigas.
Eu comecei a ficar com medo, sem claridade aquele porão era assustador, nós estávamos paralisadas  sem saber direito o que fazer. De repente um mau cheiro começou a invadir nossos narizes, me fazendo sentir náuseas... Era cheiro de carne podre, como se houvesse algum animal morto por ali.
Um barulho veio de um canto escuro, parecia que algo se arrastava pelo chão. Eu e minha irmã gritamos e saímos correndo em direção da porta. Subimos a escada e lá embaixo podíamos ouvir algo como se tivesse arranhando o chão, o cheiro de podridão aumentava e a porta não queria abrir. Nós batíamos na porta e gritávamos sem parar, até que minha mãe a abriu com cara de assustada.
Contamos o que havia acontecido: a escuridão, sobre o cheiro de coisa podre e da coisa que se arrastava pelo chão. Ela prontamente disse que estávamos impressionadas pelo lugar antigo e que desceria até lá e substituiria a lâmpada, que provavelmente estaria queimada.
Apreensivas ficamos no topo da escada enquanto ela descia para o porão com uma lâmpada e uma lanterna nas mãos, o tempo que ela ficoua lá embaixo pareceu uma eternidade. De repente ela surgiu da escuridão subindo os degraus correndo, fechou a porta do porão e sentou-se em uma cadeira. Seu rosto estava branco e seus olhos arregalados de medo.
- Eu não quero que vocês descam até lá novamente. – disse ela em voz alta, quase gritando.
Em seguida pegou o telefone e foi para a sala onde ligou para a policia. Nós ouvimos ela falando que havia visto alguém no porão. Enquanto esperávamos a policia, ficamos todas juntas, olhando assustadas para a porta que ia para o andar inferior, receosas que a qualquer momento, alguma coisa saísse de lá. Nossa mãe recusou a dizer o que tinha visto lá embaixo.
Quando a policia chegou, nossa mãe os recebeu e os chamou para entrar na casa. Chegou até a porta do porão, a destrancou e eles desceram até a escuridão, empunhando lanternas e as armas em punho. Ficaram por um longo tempo procurando, mas não encontraram nada. O mais curioso é que não havia outra forma de sair lá debaixo, pois o porão não tinha outras portas ou janelas.
Assim que os policiais saíram, minha mãe contou o que havia visto lá no porão: ela estava rosqueando a lâmpada no bocal quando começou a sentir o cheiro horrível que havíamos descrito para ela, quase em seguida passou a ouvir um barulho estranho. Então ela apontou a lanterna por todos os cantos até que avistou algo entre um móvel antigo e a parede.
Era um homem agachado, suas roupas estavam rasgadas, seus cabelos eram compridos e desgrenhados, seu rosto estava todo distorcido, como se estive com uma expressão de ódio. Assim que a luz da lanterna apontou em seu rosto, minha mãe viu seus olhos vermelhos e então ele fez um movimento para o lado, desaparecendo por entre as coisas velhas que haviam por lá. Neste instante minha mãe deixou a lanterna cair de suas mãos e saiu correndo.
Depois disso, tivemos que ficar mais aquela noite na casa. Trancamos a porta do porão e colocamos algumas cadeiras na frente. Todos dormiram no quarto de meus pais com a porta bem trancada. Nossas férias acabaram mais cedo e no dia seguinte voltamos para casa...
Fonte: http://clubedosmedos.blogspot.com.br

domingo, 22 de janeiro de 2017

A Última Execução


Sou filho do ferreiro Alphonse e de Nelly, uma ex-cortesã da taverna dos prazeres. Mamãe deveria morrer em alguns dias. Está muito mal e vem sofrendo demasiadamente com a lepra. Uma peste que ataca a tez e impinge círculos purulentos por todo corpo. Mas ela ainda nutre alguma esperança. Papai se sentou na cadeira de rodas, um hediondo patíbulo, e nunca mais se levantou. Uma viga de ferro caiu sobre suas costas, tornando-o aleijado para todo o sempre. Agora, espera – ansiosamente - a morte escolhê-lo como o próximo. Também é leproso! Ele quer morrer, ela quer viver.


Mas essa não é minha história, pois dela, a morte faz parte. Sempre andou ao meu lado, ombreada comigo. As duas, a morte e minha história, estão severamente agrilhoadas.Sou carrasco há quatro décadas e meia. Recebi a alcunha de Vorace, o Carrasco. Assim, o falecimento de outrem, mormente larápios, homicidas, adúlteros, prostitutas, estupradores e os que são afeitos ao incesto há quarenta anos e meio saiu de minhas vetustas mãos. E aconteceu de diversos modos: guilhotina, golpes de machado na nuca, afogamento, esquartejamento etc.

Assumi o ofício, que ninguém logrou ficar por mais de uma execução, numa época cuja violência alastrava-se rapidamente por Nantes. Naquele tempo, os oficiais de justiça sujeitavam qualquer do povo à função de verdugo. Escolhiam um munícipe a esmo (diziam que era sorteio, mas não estou de todo convencido) e nomeavam-lhe à função para efetuar a mórbida labuta.

Certa feita, um homem fora arregimentado no meio da rua e impelido a um tablado de extinção humana, onde uma mulher seria executada. Sua cabeça seria decepada aos olhos dos habitantes de Nantes. Não me recordo com clareza, mas no cair da noite souberam que a condenada tinha parentesco com o homem que a matara. Os parentes não se reconheceram porque os dois vestiam capuzes.

Foi no dia posterior, sob juramento de morte, que fui declarado verdugo oficial do governo local. A vaga ficara em aberto por quase um ano e os poucos que se aventuravam, desistiam após a primeira execução, quando não antes. Jurei servir à França, com meu tétrico ofício, onde precisasse e contra quem fosse necessário. Executei muitas pessoas em praça pública, mas há alguns anos as execuções se restringiram às residências – ou, em pior caso, onde o sentenciado fosse encontrado, mesmo que fosse em público ou dentro de algum templo religioso - dos que viviam à margem da Lei.

Há alguns minutos, guardas da intendência de polícia chegaram à minha porta. Trouxeram-me uma epístola com o novo decreto do Prefeito de Nantes. Do documento, li apenas o parágrafo que condena à morte, com investidas do machado na nuca, os acometidos pela lepra. Há, apensado ao decreto, uma lista com cinquenta e sete nomes arrolados à execução. O ferreiro Alphonse e a ex-cortesã Nelly estão listados para a extinção. Não sinto pelo meu pai, pois o homem tenciona morrer o mais rápido possível. E a execução ser-lhe-ia como dádiva, uma libertação da paraplegia. Mas mamãe... mamãe ainda luta para viver. 

Entretanto, serei profissional a ponto de executá-los, mesmo porque não há cura para a lepra e eu, quando abracei a profissão, jurei que abateria qualquer um que me fosse designado fazer. E se não o fizesse, seria guilhotinado em praça pública. O mais comovente é a extensão do decreto que me obriga a atear fogo aos cinquenta e sete cadáveres. Isto é, nenhum irmão ou neto ou filho poderá enterrar seu ente querido dignamente, pois todos serão sepultados, já crestados, na vala comum. Depois de toda esta mixórdia infernal, solicitarei minha aposentadoria.

Fonte: http://contosdeterror.com.br

sábado, 21 de janeiro de 2017

A Ratoeira

A paixão de Uriel eram os seus chocolates. Metia-os na última gaveta, lá no fundo, para que ninguém soubesse de seu tesouro. E quando os comia, fazia-o sozinho e em silêncio, de portas trancadas e olhos buliçosamente assustados. Sentia um medo irracional de ser flagrado com suas guloseimas.

Um acesso de raiva, uma raiva mortal, que Uriel conteve num lampejo de lucidez, foi o que sucedeu. Quase chegou a experimentar o arrependimento que sentiria, se tivesse sucumbido aos impulsos primitivos da ira. Mas Uriel controlou-se. Não praguejou. Não esmurrou a mesa. Não ameaçou os colegas. Substituiu toda expressão de ódio por uma fisionomia impassível, enquanto o cérebro trabalhava em ritmo frenético. Agora era descobrir quem furtara os seus chocolates.


Pôs a isca. E esperou. O rato miserável era mais esperto do que ele supunha. Quando examinou a gaveta, constatou que os seus preciosos chocolates haviam desaparecido novamente. Precisava descobrir, urgentemente, quem era a ratazana infeliz. Certamente não era alguém do turno da noite, no qual trabalhava há dois meses. Ele e mais dois abnegados. Talvez alguém da limpeza. Ou a moça do cafezinho, que preparava as garrafas térmicas antes de se meter na interminável fila de ônibus. Talvez até mesmo o chefe. O mandachuva tinha mesmo cara de ladrão. Não o via nunca. Trabalhar às madrugadas é dureza, sente-se um sono maldito, mas tem as suas vantagens.

Porém, muito em breve saberia. Porque, desta feita, a ratoeira funcionaria perfeitamente. Uriel mergulhou remédio de rato - desses que se vendem clandestinamente em camelôs - nas inúmeras barras de chocolate. Com esmero, Uriel reembalou as poções envenenadas, uma a uma. Um trabalho lento e cauteloso. Um resultado perfeito. E aguardou que o gatuno viesse. E que o mortal carbonato fizesse generosamente a sua parte...

“Agora pego este filho de uma puta”, foi o que pensou Uriel, ao fechar a gaveta.

Uriel acordou sobressaltado. Salivava excessivamente. Os olhos eram duas tochas ardentes, donde manavam lágrimas de fogo. Das narinas, escorria uma secreção pesada e sem fim. E, apesar do choque, o coração batia devagar. Quis se erguer, mas não conseguiu. O seu peito pesava uma tonelada e   os pés eram como se  não existissem. Seguiram-se os tremores e os espasmos, até que, por fim, um nó espesso cingiu violentamente a sua garganta, selando a agonia.

Tido injustamente por suicida, assim morreu Uriel, que fora sonâmbulo a vida inteira, mas não o sabia.

Autor: Mephisto
fonte: contosdeterror.com.br

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Encantadora


Naquela noite, quando ele pediu abrigo na casa de meu pai, eu olhei em seus olhos e soube que deveria ser sua até meu último alento. Por isso, não hesitei em levá-lo pela mão ao velho celeiro, onde nos entrelaçamos como serpentes sobre a palha e uivamos como lobos até o amanhecer.

Eu já não era uma donzela então, mas meu conhecimento do corpo do homem deu-lhe prazer repetidas vezes e ele nunca me perguntou quem haviam sido os outros. Isso não importava. Foi assim ao longo de todo um ano. Ele vinha da fazenda onde trabalhava para o celeiro. Lá, eu o esperava como a terra espera a chuva, e nós ríamos, nus, comendo as amoras que eu trazia do bosque.

No inverno seguinte, meu velho pai faleceu da tosse sanguinolenta que eu pudera apenas tratar com meus elixires e vapores, mas nunca curar. Fiquei sozinha. Então, disse ao meu amante que ele deveria ser o novo homem da casa.Sei que me aceitaria prontamente como sua mulher, mas ele morava ainda com a mãe, alma triste que não queria ver seu menino tornar-se um varão. Ela me chamou de messalina e encantadora de homens e disse que ele seria infeliz ao meu lado, pois eu me deitaria em outras camas e ele teria de alimentar os filhos de outros homens. Ela não abençoou nossa união.

Mas um corvo se sentou no meu portão e me disse que eu devia orar para a deusa esquecida, senhora da vida e da morte, adorada por minha avó e pela avó de minha avó. Assim, entrei no bosque, procurei a erva que mata e dela extraí o veneno verde.No mercado, furtei o lenço que a mãe de meu amado levava nos cabelos e o levei para o meu local secreto, na mata, onde o mergulhei na vasilha de veneno e rezei três vezes por meu sucesso.

À noite, aquela que me negara o que eu mais queria fechou os olhos num sono profundo e não os abriu mais. Eu também gostaria de partir assim, um dia, sem sofrimento.Seu filho buscou conforto em meu regaço e não mais deixou minha casa.

Levamos uma boa vida. Plantei flores para a deusa sob a janela, em agradecimento, e meu homem gostava do perfume que enchia a casa. Ele tosava os cordeiros e eu fiava a lã. Ele cortava a lenha e eu preparava seu banho quente e esfregava suas costas e recebia sua semente em meu corpo.Tinha seus companheiros na cidade. Quando chegava tarde da noite, bêbado, trocando as palavras e as pernas, eu o despia e o punha na cama como a um bebê.

Eu era sua fêmea, sua amiga e sua mãe. Ninguém poderia amá-lo como eu o amava.Em algum momento, porém, ele duvidou disso. Eu soube quando chegou com um olhar diferente. Estava sóbrio e não procurou por meu abraço.

De manhã, cheirei sua camisa. Perguntei-lhe quem era ela. Ele disse que não havia ninguém.Era mentira. Achei três fios de cabelos presos ao colarinho de sua camisa. Longos e louros. Nem meus, nem dele.

Eu a encontrei na praça da igreja, voltando da missa, na manhã de domingo. Era pouco mais do que uma menina, esguia e branca, a cabeleira dourada presa num toucado simples, os seios atrevidos espetando o vestido. Mais moça do que eu. Certamente era leviana como todas as jovens formosas.Toquei em seu ombro e ordenei que não tornasse a ver aquele homem. Que nunca mais se aproximasse dele.

Ela se voltou, mas saí com pressa e não deixei que conhecesse meu rosto.Meu marido descascava uma maçã na soleira de nossa porta quando cheguei. Ajoelhei-me por trás dele e o envolvi em meus braços. Admiti que ela era bela e cheia de vida, mas não o amaria para sempre. Não como eu. Que não voltasse a procurá-la.

Mas ele não seguiu meu conselho. Por mais de uma vez eu o vi retornar com o raiar do dia às suas costas e o cheiro da amante em suas roupas. A menina também ignorara meu aviso.Por isso, esperei o início do novo ciclo da Lua, tomei os três fios de cabelo e os meti no barro. Do barro, fiz uma boneca. Sobre ela, joguei urina e excremento de cão doente durante todas as quatro fases.

Foi assim que meu marido voltou a passar suas noites em casa e a pedir minhas carícias. Não visitou mais a amante. Os cabelos dela haviam se tornado cinzentos, seu rosto se desfigurara com vincos e furúnculos e seus seios, outrora viçosos, caíram como os peitos muito sugados de uma velha ama-de-leite. Sei disso porque fui ao milharal do vizinho e os corvos me contaram. Nada disse a meu amado. Acreditava que ele tivesse aprendido sua lição.

Nossa vida voltou a ter luz. Foi quando a deusa decidiu nos abençoar com um filho. Quando eu disse a ele que minhas regras já não vinham, ele sorriu e chorou e me beijou no umbigo.Mas a dádiva tinha uma dupla face e eu padeci das dores que acompanham certas mães antes de se tornarem mães. A expectativa fez de mim uma mulher ansiosa que já comia por dois. Minha barriga ainda não crescera quando meu corpo se tornou grande e pesado e irritado ao toque, e meu marido deixou de me procurar.

Não podia culpá-lo, pois sua natureza masculina mandava que fecundasse todas fêmeas no grande pasto da Criação. Mas eu precisava dele ao meu lado naquele momento como jamais precisara antes. Devia mostrar-lhe o tamanho do meu amor, fazer com que compreendesse que era maior do que a desonra da esposa traída, o sofrimento da mulher desprezada ou o encanto das moças que se debruçavam noutras janelas.Naquela noite eu fui à cidade, seguindo meu homem a distância, para testemunhar seu encontro adúltero. Essa amante não era tão jovem. Era uma viúva já madura, forte, com cabelos cor de avelã.

Voltei à sua casa pela manhã, bem cedo. No varal dos fundos havia uma anágua branca recém-lavada. Serviria. Levei-a comigo.À tarde, mandei matar um cordeiro e guardei seu bucho.

À noite, ceamos sua carne e depois, com a Lua alta, eu meti a anágua no estômago do animal e o deixei em meu local secreto para que apodrecesse.No dia seguinte, a doença começou a consumir devagar o corpo da mulher. Quando o último pedaço de entranha do animal se desfez sob as formigas e os besouros, ela faleceu.

Destruir as amantes de meu marido poderia tomar anos de minha vida. Ele sempre encontraria outra que o agradasse e eu seria sempre grande e desajeitada, carregando e parindo sua prole. Eu sabia que o novo castigo precisaria ser maior, por muito que me doesse executá-lo.Por isso, entrei no bosque e colhi as ervas proibidas. Orei por toda uma manhã e toda uma tarde, pedindo perdão pelo que já fizera e pelo que ia fazer. Depois, fervi água do poço, preparei uma forte infusão e a bebi, pedindo à deusa que aceitasse de volta a criança que dormia em meu ventre.

A dor me despertou de madrugada e eu gritei por longas horas, vendo meu corpo verter um sangue cheio de nódoas negras. Meu marido chorou até o amanhecer, ora ajoelhado aos meus pés, ora lavando meu corpo com água fervida. Ele foi o melhor dos homens nesse momento e mandou que o criado fosse à cidade chamar a parteira para cuidar de mim.Logo que chegou, a mulher disse que não havia nada a ser feito, pois eu não desejava aquela criança e por isso a estava expulsando do meu corpo. Se ele queria que eu sobrevivesse, disse ela, deveria deixar que eu repousasse até me recuperar e me servir fígado cozido e sopa de galinha. Também seria bom que tomasse chás calmantes e banhos quentes. Ela ofereceu a própria filha como enfermeira. Era boa no trato de moléstias, disse ela, e poderia ajudar no serviço da casa até que eu me curasse.

Quando ela nos deixou, meu marido perguntou por que eu tinha feito aquilo. Seus olhos estavam vermelhos. Respondi que ele precisava cuidar do que tinha em casa em lugar de procurar distração fora dela.No dia seguinte, a filha da parteira começou a trabalhar para mim. Era muito magra e tinha pescoço longo e olhos encovados, mas cumpria as tarefas da casa em silêncio, fazia boa comida e me ajudava a me lavar. Ela tornou minha aflição suportável.

Meu homem também era quieto agora e vagava pela casa como uma sombra. Eu sabia que estava infeliz porque seu filho não ia mais nascer, mas era nessa infelicidade que ele reaprenderia a zelar por sua família.Logo que me senti mais forte, procurei por seu corpo na noite e ele não me rejeitou. Nós nos amamos sem palavras e refizemos nos braços um do outro um pacto mudo de afeto e lealdade. Bastava de noites noutras camas e beijos noutras bocas. Senti que voltaríamos a ser felizes.

Naquela manhã, um corvo entrou no meu quarto e pousou na cabeceira da minha cama. Ele me contou que a deusa ia me mandar uma criança.Percebi que era verdade algumas semanas depois. Gritei de alegria. Meu marido voltou a sorrir. Apesar das minhas falhas, a divindade me amava, pensei.

A filha da parteira seria minha criada e enfermeira durante os nove meses e por quanto tempo eu necessitasse de seu auxílio depois disso. As dores e enjôos voltaram, mas ela cuidou de mim. Meu marido não saía mais à noite. Eu adormecia olhando para seu rosto e, quando despertava, ele ainda estava ao meu lado.Foi neste lar de ternura e harmonia que você nasceu, minha filha. Eu e seu pai já a amávamos quando a tomamos nos braços pela primeira vez. Nunca uma criança foi tão bem-vinda a este mundo.

Mas eu havia cometido muitos erros, minha menina querida, e a mesma dádiva que a trouxe para mim fez-se maldição quando levou minha saúde. Eu quase não tinha leite para você e nem sempre podia nutri-la. A parteira trouxe sua filha mais velha, que fora deixada por um marido cruel e dera à luz um menino morto. Tinha leite para mais de uma criança em seus seios.Ela foi a sua mãe mais do que eu, pois logo eu mal podia tê-la em meu colo. Vieram as febres freqüentes e as dores no abdome, nas costas, na garganta, na cabeça. Os abscessos por todo o corpo. A fraqueza. A comida regurgitada.

Meu marido não podia mais dormir ao meu lado. Eu cheirava mal e sujava a cama. Então, ele passava as noites no quarto menor. Num leito junto ao seu, menina querida. Para ficar perto de você e niná-la quando chorasse no meio da noite.

Num leito junto ao da sua ama-de-leite. Para ficar perto dela e... Meus ouvidos ainda eram bons, filha, e eu sabia o que seu pai estava fazendo. O que voltara a fazer. Seus lábios pequeninos de bebê não eram os únicos a se aconchegar naquele regaço e sugar aquelas mamas. De dia, a mulher sorria para mim, condoída; mas, à noite, comia no prato que era meu.

Para mim, foram meses de uma agonia que não se abrandava. Para eles, meses de uma espera jubilosa. Eles esperavam o meu fim.Eu só não sabia quem estava me trazendo, aos poucos, esse fim. Podiam ser as famílias das mulheres a quem eu prejudicara, a uma, destruindo a beleza, a outra, dando uma morte dolorosa. Podia ser alguém próximo a mim. Alguém que profanara meu lugar secreto no bosque e conhecia as artes da cura e da doença como eu e minha avó e a avó de minha avó. Alguém que era bom no trato das moléstias... alguém cuja irmã se deitava com o marido da mulher que matava suas amantes e não poderia ser detida senão pelos mesmos meios.

Eles estão me matando. Meu amado e as duas serpentes que eu acolhi em minha casa.Ontem, pela manhã, contei ao seu pai que você logo será órfã de mãe. Ele não me olhou nos olhos. Nada disse. Mas, à noite, respondeu que eu serei enterrada sob as árvores de que tanto gosto e que sua amásia ficará nesta casa e cuidará de você como se fosse sua própria filha.

Você deveria ser aquela a quem eu ensinaria tudo o que minha mãe me ensinou e que ela aprendeu com a mãe dela. Aquela que eu levaria ao meu local secreto e a quem mostraria meus segredos. A você, filha da minha carne, e a ninguém mais.Dói-me na alma e no corpo pensar em perdê-la para uma madrasta vulgar e um pai desleal. Eu ofereci a ele meu amor e minha vida e recebi apenas traição, desprezo e morte. Não posso partir sabendo que ele será feliz sem mim, filha querida, e que quando crescer você não saberá o nome de sua verdadeira mãe. Não depois de tudo o que ele fez. Não depois de tudo o que eu fiz.

Por isso é que, esta noite, esperei que todos se recolhessem, reuni as poucas forças que me restavam e fui para o bosque. Fiz minha última oração e minha última colheita. Soquei muitas folhas e as fervi na água. São as folhas do sono-que-não-termina. Folhas que matam.Faço dessa infusão minha libação derradeira.

Agora, enquanto eu a recolho de seu berço, querida, ela age em meu corpo, preparando-o para um fim sereno.Agora, enquanto eu a aconchego em meu seio e lhe ofereço o pouco leite que tenho, ela agirá no seu.

Eu a amo. Ninguém neste mundo poderá amá-la tanto assim.

Venha comigo, meu amor. Não vai doer.

Fonte: Contosdelitfan.blogspot.com

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Corpo Seco


Uma súbita e quente rajada de vento levantou com ímpeto os particulados áridos e as folhas avulsas daquele vasto campo à beira da estrada. Embora marcante, a ação da ventania não se mostrou duradoura, não tardando para que a calmaria voltasse a reinar nas cercanias do distante pomar.

Nenhuma anormalidade se mostrava evidente nos numerosos e diversificados exemplares frutíferos ali expostos. A exceção se fazia valer numa alta e frondosa mangueira, cujos frutos jaziam no chão. A exuberância em degrade verde e dourado era assaltada por uma ação invisível e avassaladora, a qual tomava para si o viço marcante dos frutos, entregando a eles, em contrapartida, um revestimento acinzentado e opaco, um frágil castelo elevado aos céus pelo delicado beijo de uma simples corrente de ar.


A árvore, de tronco espesso e imponente, sinalizava ter sido dominada pela mesma força devastadora que aniquilara, com extrema facilidade, os contornos maduros, os quais eram, até então, exibidos com orgulho em suas extremidades. Semelhante à maneira repentina e destrutiva com a qual as ardentes lufadas de ar dominaram os limites locais, o agente oculto tratou de retorcer e curvar os robustos galhos da mangueira, empalidecendo e fazendo cair toda a verdejante folhagem, comprometendo e secando toda a sua estrutura, reduzindo-a a um monte cinzento, triste e morto.

A manifestação sobrenatural e inexplicável não era fruto da vontade da natureza, pois esta, justa e sábia em sua essência, há muito tratara de expurgar de suas entranhas a abominação representada pelas linhas malditas daquela criatura. A terra, revestimento sagrado dos mortos, não admitia tal presença entre seus grãos.

O amaldiçoado tentava se resignar, mas era difícil convencer a si mesmo de que sua existência era um estorvo para o equilíbrio entre os planos. Sua estada não era bem-vinda nos reinos de luz, muito menos tolerada nos níveis mais baixos das trevas, suas atitudes o transformaram num condenado sem direito a descanso.

Vencido mais uma vez, ele ergueu seu ressequido corpo das cinzas, as quais ele mesmo fora o responsável pelo surgimento. Com pesar iniciaria uma nova jornada, nenhum ser vivo o tolerava por muito tempo. Ele buscava abrigo nas cascas das árvores porque seu caminhar era tortuoso e dolorido. Por mais que soubesse que sua permanência entre o vegetal não fosse de grande valia, ainda assim, ele preferia tal investida a ter de se deslocar pelo descampado, a não ser que tivesse um bom motivo para fazê-lo. Uma razão que o atraísse como a força de um poderoso imã.

Sua pele enrugada e sedenta pressionava o esqueleto desprovido de carne e músculos. O atrito produzido pelo movimento de seu corpo proporcionava a mais lancinante das dores, algo insuportável até mesmo para alguém de sua natureza. Ele arfava conforme caminhava, nenhuma língua ornava a escuridão putrefata de sua boca, um vão cravejado por filamentos cerrados em substituição aos antigos dentes. Nenhuma gota de saliva se apresentava naquela cavidade, apenas um pó enegrecido e fétido, o qual era expelido em profusão, contaminando o ar ao seu redor.

Um amontoado de ossos revestido por uma pele em eterna decomposição. Danação e penitência num incessante vagar sobre uma superfície que não o suportava. Ingrata busca pela redenção de seus pecados.

Olhos há muito não possuía. Por conta disso, precisava se orientar pelo olfato, sentido traiçoeiro que lhe acendia a penúria pela míngua de víveres. Ele se arrastava em busca do perfume irresistível, a tal força que o impelia.

A praça estava repleta, os populares iam e vinham por conta de seus afazeres. O vazio em seu estômago era um espaço infindável. Muitos o viram e caíram, vencidos por incomparável choque. Outros o encontraram e fugiram. Inúmeros o contemplaram e gritaram. Mas ele só precisava de um, e o agarrou. O ser humano sob seu jugo tinha sonhos, como ele mesmo tivera um dia, mas diferentemente da garota em seus braços, ele os suprimiu, deixou que fossem consumidos pelos atos mais vis que um vivente poderia cometer.

Assim se tornou um corpo seco. Agora usava a rigidez de seus dedos para rasgar de forma ávida a carne da indefesa vítima, fazendo brotar uma fonte rubra de nutrientes e dor. O frenesi o impulsionou a cravar os aguçados fios de sua boca na suavidade crua daquela pele. Com movimentos apressados arrancou um bom pedaço do apetitoso tecido, engolindo-o sem mastigar.

Da mesma forma que a terra não acolheu sua carcaça amaldiçoada, como o céu e o inferno rejeitaram sua presença, o alimento não encontrou morada em seu corpo. O caminho inverso fora inevitável e a carne regurgitada. Ele gritaria se tivesse voz. A balbúrdia à sua volta era crescente, inúmeros e repetidos impactos o acometeram, ele desejava o toque frio da morte, mas já estava morto, apesar de não ser merecedor do descanso eterno.

O vozerio era insuportável, sua dor era insuportável! Frases sagradas e de libertação foram proferidas, água abençoada foi lançada sobre seu corpo. Ele rogou por sua mãe, a razão do seu martírio, pediu por seu perdão, implorou por alívio e paz.

Uma luz incandescente o envolveu, a multidão se afastou tomada pela surpresa e pelo medo. Seu corpo se curvou em posição fetal, seus membros se dobraram e mesclaram ao tronco. Logo, os contornos evidentes da criatura não passavam de uma estrutura ovalada e seca. Sem demora um estampido se fez ouvir e uma cortina de fragmentos particulados foi lançada ao ar. Com o dissipar da fumaça, os incrédulos olhos testemunharam o completo desaparecimento do ressequido corpo. Nos corações daquelas pessoas ficou a certeza de que a completa superação de tão incomum experiência tardaria a ter o mesmo fim.

Muito longe dali, um vento abafado e repentino produziu um espiral ao redor de uma árvore. A poeira suspensa no ar se uniu e moldou as linhas de um corpo, deixando claro que, para alguns pecados, não há possibilidade de redenção.

Fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/09/corpo-seco.html

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

A Pena do Corvo


Comprei a pena do corvo por um preço absurdo. O contrabandista garantiu que pertencera ao renomado poeta. Possuo muito dinheiro. Quando afirmo isso, creia que não se trata de pouco. Para ter certeza de que tenho em mãos o artefato verdadeiro, mergulho sua ponta em um pote de tinta nanquim. Em seguida, começo a escrever em uma folha de papel branco. Pelo o que se afirma em nosso seleto círculo, o famoso prosador utilizou a pena em seus momentos mais febris de imaginação e criatividade. Seria essa a explicação para textos tão fantásticos e idolatrados pela contemporaneidade? Em sua própria época, o escritor não obteve o verdadeiro e merecido sucesso.

Na era do computador parece uma prática tão sem sentido voltar-me para o uso da tinta e do papel que rio da minha necessidade de ter artefatos antigos. Porém, no caso da pena, sei que é diferente. Meus pares atribuem a ela um caráter mágico. Ainda sem rumo, sem saber como funciona exatamente, deixo a mente vazia para que o artefato guie minha mão. Inicio apenas com palavras soltas sem tentar explicar sua existência sobre o papel: Maeltzel, Maelstrom, Pfall, pêndulo, diabo, Metzengerstein, carta, mistério, Wilson, manuscrito, Berenice, gato, barril, casa. Cada palavra parece conter um universo, uma história para ser contada. Não demoro para identificar a origem desses vocábulos nos títulos dos contos de Poe.


Continuo aquele estranho processo e das palavras começam a se ordenar frases prontas. Todas construções do imaginativo escritor do século XIX. Por um momento estremeço. Deito a pluma sobre a mesa. Não sabia dizer se aquelas palavras foram registradas pelo objeto ou pela minha própria consciência. A consciência representada pela lembrança exata de tudo o que havia lido da produção do mestre das letras. A razão e a loucura, às vezes, tornam-se conceitos tão próximos que já não sou capaz de diferenciar entre uma e outra. Fui eu mesmo que escrevi ou foi a pena do corvo que manifestou sua vontade? Sou favorável à segunda hipótese, pois tenho certeza de que não selecionei aquelas palavras, mesmo sendo conhecedor da obra do gênio.

E se foi mesmo a pena que proporcionou o intelecto diferenciado do mestre? Então meus camaradas estariam certos, sem dúvida. Passo a acreditar que esse frágil objeto seguro entre os meus dedos seja um instrumento do mal, projetado por algum vilão ou ente demoníaco adversário da humanidade. Artefato insuflado por rituais sangrentos com origem nos tempos antigos em que ainda se pintavam hieróglifos em papiros.

A pena do corvo liberta as palavras mais precisas do escritor e as arranja de forma ordenada nas orações, nos parágrafos, no enredo e na trama. Sorrateira, engana o infeliz que acredita escrever por vontade própria. Relega o usuário ao esquecimento em vida, o aprisiona em uma masmorra de tormento e indiferença. Leva à decadência e à degeneração. Induz à tristeza. Pois, o poeta acaba por não ser reconhecido pelo que melhor sabe fazer: compor, construir, esculpir, tecer a palavra em um conjunto de ideias. Sendo assim, seria o objeto também a causa do infortúnio de quem o empunha? A pena do corvo, ao mesmo tempo em que concede as virtudes das belas letras, também leva à degradação do humano? Pressinto que o artefato é pior do que qualquer outro vício, pois já tenho vontade de escrever novamente.

Empunho a pena mais uma vez como se fosse uma arma capaz de retirar minha própria vida. Escrevi ou ela escreveu. Não havia importância mais em determinar quem era o autor. Certo é que me dava prazer redigir. Somente por isso, já valeria um pacto com o próprio diabo. Poe representou o chefe dos demônios em um de seus contos. Eu e a pena do corvo também.

O título se delineou em uma das tantas folhas brancas dispostas sobre a mesa: Velho coxo do colarinho engomado. A primeira frase se construiu diante de meus olhos: “Eu, dois garotos e uma menina deixamos nossas casas no meio da noite”. O primeiro parágrafo continuou assim, depois da frase de abertura: “A lua cheia ajudava a iluminar a escuridão. Não havia luz elétrica naquela parte da cidade e as pilhas para lanternas eram caras. Por isso, levávamos lampiões. Exceto um dos meninos que se considerava mais corajoso do que todos. Vestíamos roupas pesadas para nos proteger do vento frio que assolava o sul do país”.

Os parágrafos seguintes se sucederam nessa ordem:

“Em poucos minutos chegamos à ponte. Uma ponte coberta que permitia cruzar o caudaloso rio da região e se proteger de alguma chuva inesperada. Fomos até lá para averiguar a veracidade da lenda que nossos pais contavam. Diziam que um velho coxo, de vez em quando, aparecia em um canto escuro da ponte. Começamos a cruzar a precária construção, e no momento em que nossos lampiões iluminaram a saída, do lado oposto, vimos o tal homem. Ele mancava. Tive a impressão de ver cascos no lugar de pés, mas não conseguia me mexer, meu sangue gelou nas veias. Vestia um traje preto, elegante e com o colarinho branco bem engomado. Disse, com um sorriso tinhoso no rosto:

— Já que vieram me conhecer. Vamos apostar uma corrida.

Acho que meu amigo não tinha plena noção do que estava acontecendo. Ele se achava realmente corajoso e esperto:

— Ora, você quer apostar corrida? Não me faça rir. Ganho de você com um pé nas costas — riu.

— O que você gostaria de apostar?

— Qualquer coisa, eu apostaria minha cabeça com o diabo!

E assim foi. Os dois começaram a correr: quem chegasse primeiro ao outro lado era o vencedor. Eu, meu outro amigo e a menina não conseguimos fazer nada a não ser gritar depois do fatídico acontecimento. Nosso amigo chegou antes do lado de fora da ponte. Realmente o velho era devagar, além de ter os movimentos desajeitados. Aquele velho, porém, se tratava do diabo em pessoa, tenho certeza. E, como todos sabem, o diabo é trapaceiro, não queria vencer, pois devia saber que um carro se aproximava. O motorista freou, mas não foi possível evitar o choque entre o veículo e o menino. O velho coxo do colarinho engomado sumiu deixando a nossa volta um cheiro inconfundível de enxofre e uma gargalhada que repercute em meus ouvidos até hoje.

No dia seguinte, o corpo foi encontrado sem a cabeça na margem do rio. Estava sobre seixos sendo bicado por uma dezena de urubus. Meus pais costumavam alertar ‘nunca aposte sua cabeça com o diabo’. Eu sempre os obedeci, sem contestar.”

Depois desse, outros contos começam a ser arquitetados. Tudo parece uma singela homenagem ao mestre. Extasiado e ao mesmo tempo exaurido de todas minhas forças, como se tivesse sido sugado por um vampiro a noite inteira, desfaleço com o clarear do dia.

Acordo com o rosto sobre os papéis. Não havia sido um pesadelo. Reúno alguns pertences básicos em uma mala, entre eles a pena do corvo. Pego dinheiro e cartões de crédito. Telefono para o contrabandista que me vendeu o artefato. Marco viagem para a cidade de Baltimore nos Estados Unidos.

Agora me interessam também os ossos de Edgar Allan Poe. Com o pó do escritor, planejo fazer uma tinta especial para auxiliar a pena do corvo. Creio que ela se tornará ainda mais eficiente se valendo da essência corporal do gênio. Depois disso vou adquirir as roupas que ele usava. Em seguida, desenterrarei sua esposa, ela deverá ser útil para ajudar na inspiração. O amor e a paixão são muito importantes para qualquer homem das letras. Poe, grande Poe, seremos um só, seremos eternos amigos. Aguarde-me, estou a caminho.

Fonte: contosdeterror.com.br