O Trem de Carne da Meia-Noite - Clive Barker (Parte 2)
Um homem barbado derrubou com o cotovelo a xícara de café de Kaufman. — Merda! — disse ele.
Kaufman virou-se na banqueta para evitar o café que pingava do balcão.
— Merda disse o homem outra vez.
— Está tudo bem — disse Kaufman.
Olhou para o homem com um leve ar de desprezo. O desajeitado filho da mãe estava tentando absorver o café com um guardanapo que, aos poucos, se transformava numa papa úmida. Kaufman ficou imaginando se aquele idiota de cara corada e barba malfeita seria capaz de matar alguém. Haveria naquele rosto de comilão algum sinal, alguma pista, talvez o formato da cabeça ou a expressão dos olhos pequenos, que denunciassesua verdadeira natureza?
O homem se dirigiu a ele.
— Quer outro?
Kaufman balançou a cabeça.
— Café. Regular. Preto — disse o cretino para a moça do outro lado do balcão.
Ela ergueu os olhos da grelha com gordura frita que estava limpando. — Oi?
— Café. É surda?
O homem sorriu para Kaufman. — Surda. — disse ele.
Kaufman notou que lhe faltavam três dentes na arcada dentária.
— Esta ruim, não é? — disse o homem.
Referia-se a quê? Ao café? A falta dos dentes?
— Três pessoas desse jeito. Trinchadas.
Kaufman fez um gesto afirmativo.
— Faz a gente pensar — disse o homem.
— Certamente.
— Quero dizer, estão escondendo os fatos, não é? Eles sabem quem fez isso.
A conversa era ridícula, pensou Kaufman. Tirou os óculos e guardou no bolso; o rosto barbado não estava mais nítido. Uma melhora pelo menos.
— Filhos da puta — disse ele. — Filhos da puta todos eles. Aposto qualquer grana que estão escondendo de nós os fatos.
— Que fatos?
— Eles têm as provas, só estão deixando a gente no escuro. Existe alguma coisa nisso tudo que não é humana.
Kaufman compreendeu. O idiota estava inventando uma teoria de conspiração. Já ouvira a mesma coisa muitas vezes. Assim nascem as lendas.
— Escute, eles vivem mexendo com esse negócio de clones e acabaram perdendo o controle. Podem estar criando monstros sem que a gente saiba. Há alguma coisa aí que eles não estão contando. Escondendo os fatos, como eu disse. Aposto qualquer coisa.
Kaufman achou interessante a certeza absoluta do homem. Monstros à solta à procura de presas. Seis cabeças, uma dúzia de olhos... Por que não? Ele sabia por que não. Porque isso seria uma desculpa para a sua cidade; isso a tiraria do anzol. E Kaufman acreditava no seu íntimo que os monstros nos túneis de Nova York eram perfeitamente humanos. O homem de barba atirou o dinheiro no balcão e levantou-se, deslizando o traseiro gordo para fora da banqueta de plástico manchado.
— Provavelmente a culpa é de algum tira de merda —disse o homem, como tiro de despedida. — Tentou fazer uma merda de herói e fez uma merda de monstro. — Deu um sorriso grotesco. — Aposto qualquer coisa — repetiu, saindo da lanchonete.
Kaufman soltou lentamente o ar pelo nariz, sentindo diminuir a tensão no seu corpo. Detestava aquele tipo de conversa; sentia-se inarticulado e sem ação. Pensando bem, detestava também aquele tipo de homem, um animal vomitando opiniões, de que Nova York estava cheia.
******
Eram quase seis horas da tarde quando Mahogany acordou. A chuva da manhã tinha se transformado, naquele começo de noite, numa leve garoa. O ar estava tão limpo quanto era possível em Manhattan. Espreguiçou-se na cama, jogou para longe o cobertor sujo e levantou-se para o trabalho. No banheiro a chuva pingava na caixa do ar condicionado, enchendo o apartamento com o som cadenciado e monótono. Mahogany ligou a televisão para abafar o ruído, sem interesse pela imagem na tela. Foi até a janela. A rua, seis andares abaixo, estava apinhada de gente e de veículos.
Depois de um dia de trabalho intenso, Nova York voltava para casa, para se divertir, para fazer amor. As pessoas saíam em bandos dos escritórios e entravam nos seus automóveis. Algumas estariam irritadas depois de um dia de trabalho em cubículos pouco arejados; outras, conformadas como cordeiros, caminhariam para casa seguindo as avenidas, levadas pela corrente incessante de muitos corpos. Outras ainda estariam se dirigindo para o metrô, cegas para os grafitti nas paredes, surdas para a própria voz e o ribombar frio dos túneis. Mahogany gostava de pensar nisso. Afinal, não fazia parte do rebanho comum. Podia ficar ao lado da janela olhando as milhares de cabeças lá embaixo, certo de ser um homem escolhido.
É claro, tinha prazos para cumprir, como o povo nas ruas. Mas seu trabalho não era, como o deles, uma tarefa sem sentido; era mais como um dever sagrado. Ele precisava viver, comer, dormir e evacuar como eles. Mas o que o impulsionava não era a necessidade financeira e sim as exigências da história. Ele se integrava numa grande tradição, que remontava a um tempo mais antigo do que a descoberta da América. Era um caçador noturno, como "Jack, o Estripador", como "Gilles de Rais", uma encarnação viva da morte, uma fúria com rosto humano. Era o fantasma que assombrava o sono, que despertava o terror.
As pessoas lá embaixo podiam não conhecer seu rosto, nem se dar ao cuidado de olhar para ele duas vezes. Mas seus olhos as apanhavam, avaliavam-nas, escolhendo somente as melhores daquela procissão, selecionando as saudáveis e jovens para o sacrifício de sua faca santificada. Às vezes Mahogany tinha vontade de desvendar ao mundo sua identidade,
mas as responsabilidades pesavam demais sobre ele. Não podia esperar a fama. Sua vida era secreta, e só por orgulho poderia desejar reconhecimento. Afinal, pensou, por acaso a carne aplaude o açougueiro quando pulsa sobre seus joelhos?
De um modo geral, estava satisfeito. Fazer parte da antiga tradição era suficiente, teria de ser sempre suficiente. Entretanto, ultimamente algumas descobertas tinham sido feitas. Não por
culpa sua, é claro. Ninguém podia acusá-lo. Mas eram tempos difíceis. A vida não era tão fácil quanto há dez anos. Estava mais velho, é claro, o que tornava o trabalho mais cansativo. E cada vez mais as obrigações sobrecarregavam seus ombros. Era um homem escolhido, um privilégio difícil de ser mantido. Uma vez ou outra pensava se não seria prudente treinar um homem mais jovem para o seu trabalho. Precisaria consultar os Patriarcas, mas, mais cedo ou mais tarde, teriam de encontrar-lhe um substituto, e seria um desperdício criminoso
da sua experiência não procurar um aprendiz. Tanta felicidade para transmitir. Os truques da sua profissão extraordinária.
O melhor modo de se aproximar furtivamente, de cortar, de despir, de sangrar. A melhor carne para aquele fim. O modo mais simples de se desfazer dos restos. Tantos detalhes, tanta habilidade acumulada... Mahogany entrou no banheiro e abriu o chuveiro. Entrou sob o jato d’água e olhou para o próprio corpo. A pequena barriga, os cabelos brancos no peito flácido, as cicatrizes e espinhas espalhadas pela pele clara. Estava ficando velho. Porém, naquela noite, como em todas as outras noites, tinha um trabalho para fazer...
******
Kaufman voltou apressadamente para o saguão, com seu sanduíche, abaixando a gola e passando a mão no cabelo molhado pela chuva. O relógio acima do elevador marcava sete e dezesseis. Trabalharia até as dez em ponto, nem um minuto mais.
O elevador o levou ao décimo segundo andar onde ficavam os escritórios de Pappas. Andou lenta e desanimadamente pelo labirinto de mesas vazias e máquinas encapadas, até seu pequeno território, que ainda estava iluminado. As faxineiras conversavam no corredor, e suas vozes eram os únicos sons no prédio.
Tirou o sobretudo, sacudiu-o para tirar a água da chuva e o dependurou no cabide. Sentou-se na frente de pilhas de pedidos com os quais trabalhava há três dias, e começou a tarefa. Mais uma noite e o trabalho estaria terminado, e Kaufman achava mais fácil de se concentrar sem o incessante ruído das máquinas de escrever no escritório. Desembrulhou o sanduíche de presunto com maionese e pão preto e acomodou-se para o trabalho da noite.
******
Eram nove horas agora.
Mahogany estava vestido para seu turno da noite. O terno discreto de sempre, a gravata marrom com o nó impecável, as abotoaduras de prata (presente da primeira mulher) nos punhos da camisa imaculadamente passada, o cabelo escasso brilhando de óleo, as unhas cortadas e polidas, o rosto perfumado com água-de-colônia.
Sua mala estava pronta. As toalhas, os instrumentos, o avental de cota de malha. Verificou a própria aparência no espelho. Ainda podia ser tomado por um homem de cinqüenta anos, pensou. Enquanto examinava o rosto no espelho, lembrou-se do dever. Acima de tudo, precisava ter cuidado. Olhos o seguiriam a cada passo, observando o desempenho dessa noite, julgando-o. Precisava sair como um homem inocente, sem despertar suspeitas.
Se eles soubessem, pensou. Aquela gente que andava, corria e saltava, passando por ele na rua, que colidia com ele sem pedir desculpas, que olhava nos seus olhos com desprezo, que sorria da sua gordura, do corpo pouco a vontade no terno mal feito. Se soubessem o que ele fazia, o que ele era, o que ele levava na mala.
Cuidado, disse para si mesmo, apagando a luz. O apartamento ficou às escuras. Foi até a porta e abriu-a, acostumado a andar no escuro. Feliz no escuro. As nuvens de chuva tinham desaparecido. Mahogany andou pela Avenida Amsterdam, rumo à estação de metrô da Rua 154. Essa noite tomaria outra vez a composição Avenida das Américas, sua linha favorita e geralmente a mais produtiva.
Desceu a escada do metrô com a ficha na mão. Passou pelos portões automáticos. O cheiro dos túneis enchia suas narinas agora. Não o cheiro dos túneis profundos, é claro. Esses tinham um cheiro especial. Mas havia um certo conforto no ar viciado e elétrico da linha menos profunda. O hálito regurgitado de milhões de passageiros circulava naquele lugar apinhado, misturando-se com o hálito de criaturas muito mais velhas; coisas com vozes macias como argila, cujos apetites eram abomináveis. Como ele adorava isso. O cheiro, a escuridão, o trovejar dos túneis.
Ficou de pé na plataforma, observando com olhar crítico os passageiros ao seu lado. Um ou dois corpos achou que seriam dignos de serem seguidos com os olhos, mas havia muita escória entre eles, poucos dignos da caçada. Os fisicamente gastos, os obesos, os doentes, os exaustos. Corpos destruídos por excessos e por indiferença. Ofendiam seu instinto de profissional, embora compreendesse a fraqueza que estragava o melhor dos homens.
Andou pela estação por mais de uma hora, vagando pelas plataformas, enquanto os trens chegavam e partiam, chegavam e partiam, e o povo com eles. Havia tão poucas pessoas de boa qualidade, que ficou desanimado. Parecia que cada vez a espera se tornava mais longa até encontrar a carne digna de ser usada. Eram agora quase dez e meia e não tinha visto nenhuma criatura realmente ideal para o abate.
Não importa, pensou ele, ainda tinha tempo. Logo ia aparecer o pessoal dos teatros. Sempre havia um ou outro corpo saudável. A inteligentsia bem alimentada, segurando os canhotos das entradas e comentando sobre as diversas formas de arte — oh, sim, encontraria alguma coisa entre ela.
Do contrário, e em certas noites parecia impossível encontrar alguma coisa apropriada, teria de ir de carro até o centro da cidade e apanhar um casal de namorados na rua, ou encontrar um ou dois atletas, saindo do clube de ginástica. Sempre garantiam bom material, só que com esse tipo de espécimes fortes podia haver alguma resistência. Lembrou-se dos dois negros que havia atacado há um ano mais ou menos, com uma diferença de quarenta anos entre eles; pai e filho, talvez. Tinham resistido com facas, e Mahogany passou seis semanas no hospital. Uma luta séria que havia feito Mahogany duvidar da própria habilidade. Pior, imaginou o que os seus mestres teriam feito com ele se sofresse um ferimento mortal. Seria enviado à família em Nova Jersey, para um decente enterro cristão? Ou sua carcaça seria atirada nas trevas, para o próprio uso deles?
A manchete do New York Post deixado no banco ao seu lado chamou a atenção de Mahogany: “Toda a Polícia na Rua Para Apanhar o Assassino”. Não pôde evitar um sorriso. Os pensamentos sobre fracasso, fraqueza e morte desapareceram. Afinal, era ele aquele homem, era ele o assassino, e naquela noite a idéia de ser preso era risível. Afinal, sua carreira não era sancionada pelas autoridades mais altas?
Nenhum policial poderia detê-lo, nenhum tribunal seria capaz de julgá-lo As próprias forças da lei e da ordem que encenavam toda aquela perseguição serviam a seus senhores tanto quanto ele; quase desejava que um policial insignificante o que o levasse em triunfo à presença do juiz só para ver a cara deles quando viesse das trevas a informação de que Mahogany era um homem protegido, acima de qualquer lei ou estatuto.
Passava agora das dez e trinta. Os freqüentadores de teatros começavam a aparecer, mas nada ainda aproveitável entre eles. De qualquer forma esperaria passar a hora de maior movimento e seguiria uma ou duas peças melhores até o fim da linha. Esperou com paciência, como um caçador experimentado...
(Continua.)
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