quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

A Guilhotina

Pio Neto despertou com a impressão de uma torquês espremendo os miolos, um sentimento de urgência indefinível lhe abarcava o peito, sentia a necessidade de encontrar uma perspectiva para a vida que escorreria imutável e desolada nas próximas vinte e quatro horas – durante toda a eternidade. Permeando a irrealidade estabelecida entre o sono e o despertar, a angústia era tão intensa que teve ímpetos de gritar como se o som de sua voz fosse uma lança de libertação exigindo arremesso.

O dia nascia, anunciado pelos pardais na árvore da calçada, uma maldita árvore que despejava camadas de flores na primavera, dilúvio de folhas no outono, torrentes de bagas inúteis e estalantes no verão e, no inverno, apresentava a tristeza de cão sarnento. Veio-lhe aos ouvidos batidas fortes numa porta e em seguida a voz possante, autoritária, do pai:


– Eleonora, quer sair já desse banheiro!

– Já vou, que diabo!

– Saia já! Vou perder o avião!

Mentalmente Pio Neto reproduziu a cena: seu pai, o influente deputado, grande como hipopótamo, a andar nervoso à frente do banheiro, as cuecas quase escondidas pela imensa barriga, a toalha jogada displicentemente sobre um dos ombros peludos. Por que o velho não se dirigia a outro banheiro? Na casa havia vários.

Minutos após a porta abriu-se e – splash! – o tapa ribombou seco pelo ambiente e quase no mesmo instante – splash! – veio a réplica. Pio encolheu-se na cama, os ouvidos queimando com as altercações dos dois, os palavrões, as mágoas, as acusações, o ódio explícito. Aquela violência o punha doente, fraco, desprotegido. Uma violência que muitas vezes extrapolava aquele universo dual e acabava sobrando para si – e tal coisa Pio sabia desde que se conhecia por gente.

Só muito tempo depois, quando o pai saiu junto com a mãe, ambos no mesmo carro – ela o levaria ao aeroporto e em seguida iria para sua loja, um antiquário – é que Pio Neto teve forças para mover-se. Sentou-se na borda da cama e com mãos trêmulas alisou os cabelos de um castanho avermelhado, cortado à escovinha. Esfregou o rosto, fervilhando de espinhas, onde a barba primeva atenuava as crateras e relevos furunculares – uma barba fulva e estacionada no mesmo ponto de crescimento há quase um ano. Como em todas as manhãs, acudiu-lhe o conselho lido numa revista pseudocientífica para que a raspasse diariamente, só assim os pêlos tonificar-se-iam. Mas, e as espinhas? Se metesse um aparelho de barbear nas faces, em pouco seu rosto se transformaria numa pasta sangrenta.

O corpo de Pio Neto içou-se da cama. De pé, apoiou as mãos à cintura e fez um pequeno exercício pendular – doíam-lhe as pernas, os braços e, sobretudo, a região do pescoço. Sabia que todas aquelas sensações estavam relacionadas ao sonho que tivera no decorrer da madrugada – um sonho repetitivo que jamais era capaz de reconstituir. Calçou os chinelos, ali, sobre o tapete felpudo e, vacilante como um junco em meio a ventanias, dirigiu-se ao banheiro. Quando ia arriar as calças do pijama, notou uma correição, um batalhão de formigas negras, cabeçudas, surgindo da fresta dum cantinho junto à banheira – um orifício minúsculo, do tamanho de um grão de ervilha. O batalhão cruzava toda a parede, subia no armarinho de Eleonora com seus produtos de beleza e higiene pessoal, infiltrava-se pior detrás do espelho e perdia-se em seus recônditos.

Tomado pela curiosidade, resolveu investigar o fenômeno. Abriu o armarinho e viu que a correição alojava-se numa caixa onde, presumivelmente, deveria haver uma escova para cabelos. Retirou a caixa e despejou o conteúdo na cuba da pia. Ao invés da escova caiu um crucifixo enorme, de prata lavrada. A mãe, ele sabia, era uma mulher que se apegava à fé porque não conseguia dominar seus demônios íntimos – o que ela precisava era de um psiquiatra, não de padres, sentenciou de si para si. Com vago sentimento de piedade, Pio Neto recolocou tudo de volta ao armarinho.

***

Pio Neto banhou-se; no quarto vestiu uma calça de brim, uma camiseta branca. Na cozinha preparou no micro-ondas uma xícara de chá, desses de saquinho, que tomou acompanhado de uma fatia de queijo. Pegou uma pêra no refrigerador e foi comê-la lá fora, sentado na guia da calçada. O inverno ainda não terminara, mas o vento matutino e o sol cálido e excessivamente brilhante eram de primavera. Notou que alguém estava de mudança para a casa vizinha – homens com uniforme de uma empresa transportadora retiravam móveis do caminhão: uns baús misteriosos, uma cama de ferro enorme, um guarda-roupa monstruoso envernizado de negro e, pelo jeito, de madeira maciça, dado ao esforço que faziam para carregá-lo. Uns móveis antigos, remotos, seculares.

Anteriormente naquela casa residiam os seus avós maternos – o velhinho morrera e no dia seguinte ao enterro Eleonora metera a mãe num asilo e no quintal da residência plantou uma placa de Aluga-se.

Da cabina do caminhão saltou uma mulher vestida de negro, um traje absurdo, mas a Pio Neto vagamente reconhecível: um chapéu emplumado, o vestido longo todo em veludo e rendas, tão armado que ele interrogou-se sobre como tudo aquilo coubera na boleia do veículo – o negror era faiscante. A mulher, vendo-o, acenou com a mão sem um sorriso nos olhos ou boca. O rosto era inacreditavelmente pálido e de supetão um calafrio percorreu a espinha dorsal de Pio Neto: Deus, aquela era a mulher que aparecia em seu sonhos obscuro que vinha tendo nas últimas noites!

No sonho ele, Pio Neto, estava ali mesmo, no quarto, envolto em penumbra – pela fresta da porta entreaberta filtrava a luz que na cozinha devia ser feérica. Com a luz, vinham as vozes ásperas de seus pais na eterna discussão surgida dos assuntos os mais triviais. Trêmulo, Pio Neto sabia que aquela violência acabaria convergindo para si. Então a porta era totalmente aberta com estrépito e seu pai, gordo como um capado, e sua mãe, de magreza histérica, apontavam-no em muda e acusação. Pio Neto conseguia fugir do quarto, alcançava o quintal, a rua. Uma chuva súbita começava a cair, o vento oscilava furiosamente as árvores – abocanhava o mundo. Era preciso proteger-se do tempo feroz, dos pais raivosos, de si mesmo. Dirigia-se à casa dos avós, penetrava por um alçapão aos fundos e que dava para o porão. Ali, no porão, o passatempo do avô: a coleção de objetos relacionados a Maria Antonieta, rainha de França: relógios, talheres, algumas cadeiras, sapatos, perucas, anéis, tiaras, fivelas, cintos, telas de pintura – no centro do porão, uma réplica da guilhotina. Pio Neto, tiritando de frio, encolhia-se num canto e logo surgia o avô, transcendental, sorrindo-lhe com doce e aconchegante ternura.

– Quer vir morar comigo? – perguntava o ancião.

– Quero sim, vovô – respondia Pio Neto, a voz ungida de felicidade e agradecimento. O avô então apontava a guilhotina – ao lado do instrumento de execução postava-se a mulher de negro. A soberana Maria Antonieta fazia um gesto convidativo e para o lado dela Pio Neto se encaminhava, determinado. Nesse preciso momento, acordava.

***

Eleonora chegou para o almoço por volta do meio-dia, ligou a um restaurante pedindo marmitex e trancou-se no quarto. Não tinham empregadas, exceto a mulher que aparecia três vezes por semana para a limpeza geral, cobrando diária. Empregadas fixas não ficavam nem duas semanas na casa, incompatibilizadas com o gênio de Eleonora. A última estava movendo ação criminal contra os patrões – fora sadicamente agredida por Eleonora, e como prova da violência trazia no busto a marca de quatro furos de um garfo.

Ao meio dia e meia Pio Neto e a mãe estavam frente a frente à mesa, comendo em silêncio. Era o que mais atingia Pio Neto: aquele silêncio sepulcral o punha nervoso, apreensivo, constrangido. Gostaria de ouvir a voz da mãe – quem sabe vislumbrar um sorriso? Já vira Eleonora sorrir às amigas, ao poeta José Petrarca – o jovem que se esgueirava para o quarto dela de madrugada, na ausência do marido, e que desaparecia invariavelmente às cinco da manhã, ao apito combinado com o guarda-noturno. Já vira a mãe sorrir para o entregador de pizza, para desconhecidos que eventualmente a cumprimentavam na rua. Mas dentro de casa era aquilo: silêncio e cara fechada – um abismo inexplicável de ódio e rancor.

– Para quem você alugou a casa do vovô? – indagou Pio Neto. Eleonora ergueu uns olhos interrogativos.

– Minha casa, você quer dizer. E quem falou que a casa foi alugada? – como a voz dela estava prenhe de acidez, Pio Neto respondeu baixinho:

– Eu vi a mudança.

Eleonora sorriu e, sarcástica:

– Viu? Ora, meu rapaz, você não tem mais idade para ficar criando fantasias.

– Eu vi – teimou Pio Neto.

– Viu porra nenhuma.

– Se eu disse que vi, foi porque vi.

Eleonora perdeu a paciência. Jogou os talheres sobre a comida e levantou-se. Foi ao quarto. Em dois minutos estava de volta, um molho de chaves na mão.

– Então vamos verificar essa mudança, seu retardado.

***

A mãe tinha razão. Além de um gasto chinelo esquecido num canto e das brancas teias de aranha nos ângulos das paredes – a casa estava fechada há dois anos – só o silêncio persistia nos aposentos invadidos pelas sombras. Eleonora esbofeteou o garoto e deixou o local, furiosa. Pio Neto pegou no chão o chinelo, com delicadeza limpou-o do pó e levou-o ao nariz, sentindo o cheiro dos pés do avô, um odor que lhe lembrava os córregos barrentos da fazenda onde iam pescar bagres e lambaris. Resolveu visitar o porão. Dirigiu-se ao quarto que fora de despejos e desceu pela escadinha, pressionou o interruptor de luz na parede e a forte claridade expôs aos seus olhos a desolação do ambiente. Eleonora havia levado para o seu antiquário a preciosa coleção do velho – mas a guilhotina continuava, solene e inquisitiva, imperando no centro do vasto cômodo. Seu avô sempre gostara de marcenaria e aquela guilhotina, construída por ele ali mesmo, era um colosso artístico. Para desmontá-la seria preciso alguém especializado – tantos encaixes, pinos, parafusos, arruelas – e Eleonora, talvez por inércia, foi adiando sua remoção e por fim dela acabara se esquecendo.

Pio Neto caminhou para o centro do porão e pôs-se a acariciar a guilhotina, suas colunas de sustentação. Riu saudosamente para si mesmo ao tocar a longa corda que liberava a grossa lâmina de aço cujo fio agudíssimo continuava rebrilhando. Embalado por nostálgicas lembranças do avô, Pio Neto vasculhou o ambiente com o olhar, a cata de outros detalhes memoriais. A um canto viu a velha manta de lã – a cama do cão Carnaval. Foi sentar-se onde o boxer do avô costumava dormir, lembrando-se do dia em que o velho surgira com o cachorro, um bicho miseravelmente magro e sarnento. A avó, odiando todo e qualquer animal doméstico, fizera um escarcéu monumental. Então, para que pudesse dividir o porão com o companheiro, que em pouco tempo ganhou pelugem brilhante e peso acima do normal, o avô fizera uma escadinha ligando o cômodo subterrâneo ao jardim através de um alçapão – o alçapão atualmente estava com a portinhola apodrecida. Com a morte do avô, fulminado por um ataque cardíaco, o cão não teve melhor sorte. Eleonora enterrou o pai, jogou a mãe num asilo e mandou um veterinário muito filho da mãe sacrificar o animal. Pio Neto a tudo assistira incapaz de um gesto de revolta, um grito de desespero – só teve lágrimas por sua irremediável covardia perante aquelas ações tão desumanas. Por que não brigara para que, ao menos, enviassem o bicho para a fazenda?

Pio Neto já estava a um bom tempo encolhido naquele canto quando começou a ouvir sons lamentosos, um cão gania, velhos choravam, crianças gritavam. Tapou os ouvidos com as mãos, encolheu-se ainda mais e começou a chorar baixinho.

Às dez da noite Pio Neto chegou à conclusão de que sua mãe não viria jantar em casa. Abriu o refrigerador: ali, um pedaço de queijo, verduras, legumes – só. Foi ao quarto de Eleonora em busca de algum dinheiro para um lanche qualquer. Encontrou no porta-jóias sobre a penteadeira alguns trocados – mas onde estavam os brincos de diamante, os anéis de variadas pedras preciosas, o colar de rubis e esmeraldas, as pulseiras, o reloginho Cartier de ouro cravejado de brilhantes?

Se bem que intrigado com o desaparecimento de tais preciosidades, achou que não tinha motivos para maiores preocupações: a mãe certamente as guardara no cofrinho ali na parede, sob um pequeno e autêntico quadro de Guignard – não lhe chamou a atenção o fato de, no lugar da tela, haver agora a foto emoldurada de Eleonora e o deputado, ele vestindo fraque, ela com o vestido de noiva.

***

Na lanchonete pediu pedaços de pizza e guaraná. Enquanto esperava o serviço, ficou a examinar o local e foi assim que deu com os olhos no artista plástico Antônio Palmeira, um mulato forte que, sabia Pio Neto, fora substituído nos lençóis de Eleonora pelo poeta José Petrarca – Pio Neto não compreendia o fascínio da mãe por pessoas assim: jovens dizendo-se artistas e inexoravelmente fadados ao fracasso. Palmeira, sozinho numa mesa e tendo à frente um copinho de cachaça e uma garrafa de cerveja, fez-lhe sinal, solicitando companhia.

Só depois de ver Pio Neto acabar de comer a pizza e tomar o guaraná, é que Palmeira deixou de falar de si mesmo e do futuro majestoso que o aguardava para dar vazão à mágoa.

– A vaca da sua mãe finalmente fez a maior besteira da vida... – E ante o olhar perplexo de Pio Neto, exclamou: – Vai dizer que não sabe?

Pio Neto apenas balançou a cabeça, não, não sabia de nada.

– Mas que vagabunda! – indignou-se Palmeira, bebadamente. – A cadela nem deixou um bilhete para o filho! Pois eu lhe digo, garoto: ela deu no pé com o Petrarca, o poetinha de merda. Foi embora, sumiu, escafedeu-se!

Pediu um conhaque à garçonete.

– Politicamente, seu pai vai se foder. Se pouca gente sabia que ele era um corno manso, agora a coisa vai sair nos jornais, a merda vai feder. Eu, pelo menos, espero que assim aconteça, torço feito um desgraçado. Vem cá, garoto, ela tem mesmo toda aquela dinheirama que arrota? Porque, é o que digo, o poetinha não tem onde cair morto. Tem fiado em todos os botecos da cidade... Vai moer toda a grana da ordinária e depois dar um solene pontapé naquele traseiro de tábua. É o que digo: a biscate da sua mãe se ferrou...

Um relâmpago riscou o céu, seguido dos trovões.

– Que tempo mais cagado – disse Palmeira –, durante o dia um sol de assar miolos, de noite esse vômito da natureza. Aliás, tudo isso tem a ver com meu estado de espírito... Porra, eu gostava demais da prostituta da sua mãe, garoto... – Súbito, começou a chorar. Chorou por uns dois minutos e em seguida limpou as lágrimas com a barra da camisa. – Eu estou bêbado, garoto, não tenha nojo de mim. Acho que já bebi mais de um litro de conhaque, não sei quantas pingas, dúzias de cerveja. Daqui a pouco o pessoal dessa espelunca vai ter que me arranjar um táxi, ora, eles já estão acostumados, regalias de freguês especial...

Pio Neto levantou-se. O artista plástico olhou-o, pela primeira vez tomando consciência do drama a desenrolar-se naquele cérebro juvenil. Quis dizer alguma coisa reconfortante, chegou a grunhir um lamento ininteligível, depois, com um sorriso compassivo, acenou um desolado adeus.

Assim que pôs os pés na calçada, o dilúvio começou.

A chuva estava tão forte, tão gélida, que o mundo era apenas uma espessa mortalha branca. O vento uivava e as árvores estalavam, um e outro galho eram arrancados e iam de roldão à enxurrada com mais de palmo de altura, fazendo rio das ruas. Uma mão forte segurou o braço de Pio Neto e arrastou-o para baixo de uma marquise de cimento armado de uma farmácia.

– Que faz no meio desse temporal, menino? – perguntou o guarda-noturno, embrulhado em sua capa de chuva. De repente lembrou-se de que por certo Pio Neto já deveria estar sabendo da fuga da mãe com o poeta. Acabrunhou-se.

– A vida é assim mesmo, garoto. Talvez aqueles dois a esta hora já estejam arrependidos. O Petrarca não vai aguentar sua mãe, pode ter certeza. Como ela é geniosa! – Calou-se, consciente de estar falando um monte de besteiras. Deu um tapinha nas costas de Pio Neto, e ordenou: – Vá, menino, vá para casa, toma um banho quente e se enfie debaixo das cobertas. Tudo vai acabar bem, você vai ver...

Mergulhado de novo no aguaceiro, Pio Neto aproximou-se da casa dos avós. Saltou o muro, deu a volta na residência e, aos fundos, ergueu a tampa apodrecida do alçapão e penetrou no porão. Dirigiu-se ao interruptor na parede e acendeu a luz.

– Quer morar comigo? – indagou o avô.

– Sim – disse Pio Neto. E determinado caminhou para o estrado, enfiou a cabeça na abertura entre as balizas do aparelho de execução. A rainha Maria Antonieta surgiu de repente a seu lado, suavemente tomou-lhe a mão e a conduziu para a corda que destravava a lâmina da guilhotina.

fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/08/a-guilhotina.html

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