Tudo começou nos idos de 1896, lá pras bandas de Juazeiro, uma cidadezinha encalacrada nas caatingas do interior da Bahia. Eu trabalhava nos roçados de café na fazenda do coronel João Evangelista Pereira e Melo, homem de posses e de respeito reconhecido por aquelas terras de fim de mundo. Pedro Henrique, o filho estudado do velho João Pereira, estava muito doente, mais pra lá do que pra cá, tísico, botando sangue pela boca, e tossindo uma tosse seca, catarrenta, coisa feia que só vendo:
O diabo existe. Pode escrevinhá aí. É um fato. É uma criatura futriqueira, traiçoeira, e costura os seus desmandos no destino dos homens assim como quem não quer nada, na surdina. E estas costuras que faz, de tão bem feitas, não deixam linhas soltas de sua passagem não. As desgraças que ocorrem na vida dos homens, acredite, é coisa do Tinhoso. Foi bem assim a desgraceira que se deu com o beato Antônio Conselheiro e o povo do Arraial de Canudos.
Tudo começou nos idos de 1896, lá pras bandas de Juazeiro, uma cidadezinha encalacrada nas caatingas do interior da Bahia. Eu trabalhava nos roçados de café na fazenda do coronel João Evangelista Pereira e Melo, homem de posses e de respeito reconhecido por aquelas terras de fim de mundo. Pedro Henrique, o filho estudado do velho João Pereira, estava muito doente, mais pra lá do que pra cá, tísico, botando sangue pela boca, e tossindo uma tosse seca, catarrenta, coisa feia que só vendo. O coronel, coitado, era um desespero só, porque se fazia nas carreiras pra mode de trazer todo tipo de médico e rezadeira à frente do filho, mas qual o quê! Quando Deus quer levar, não tem jeito não!
E num dia quente como o inferno deve de ser, lá longe, na trilha empoeirada que fazia rota pra fazenda do velho João Pereira, vinha um cabra com uma parecença de caixeiro-viajante, de a pé, trazendo um burrico de companhia cheio de tralhas no lombo. Olha, inté hoje eu não me esqueço a figura magra, meio esturricada de carnes, vestindo calça e paletó branco, de chapéu de abas largas, também branco, que lhe caía por riba das fuças. De longe, vosmecê não dava um vintém pela criatura, pois se afigurava homem mofino, sem calibre pra se fazer no punhal e defender-se por conta.
Mas a parecença de fraqueza durou um tico de nada, viu? Foi a coisa mais esquisita que já vi nesta vida, porque eu lhe digo uma coisa curta e certa, moço, pode escrevinhá aí: aquilo não era procedimento sério de um vivente deste mundo. Vinha ele a passos lentos, calmo, de uma calmaria tal que dava nos nervos da gente, as alpercatas mal tocavam o chão e, por onde passava, a calmaria também se aboletava em torno dele. Os ventos não lhe bolinavam as roupas, os bichos e insetos calavam-se, nervosos, inquietos, as flores, na sua passagem, murchavam a olhos vistos e até o calor não lhe fazia frente. Sem mais, Larguei a enxada e corri pra fazenda pra avisar o coronel da esquisitice do cabra que tava chegando. O velho, arriado de tristeza na cadeira de balanço no copiar da casa grande, ruminava lá em pensamentos o que haveria de fazer para ajudar o filho doente.
“Coronel, coronel, tem gente estranha vindo pra cá e não parece ser boa figura”, disse esbaforido quando dei no quintal, botando as galinhas pra correr. O velho levantou, estirou o olhar na direção da estradinha, torceu a cara de leve, se virou pra mim e disse: “Bento, Chama o mestre Germano e o negro Idalino, ali perto do açude, e venha com eles. Quero os três armados. Quero os três de prontidão aí em qualquer canto pra passar fogo se houver perrengue”.
Saí de carreira batida pra cumprir as ordens do velho.
Quando chegamos, de armas em punho, o tal de branco já se botava de presença no meio do terreiro, de frente para o copiar da casa grande, e dava “boa tarde” pro coronel, que lá do jeito valente dele segurava o relho que, de vez em quando, lascava nas costas de algum negro alforriado metido a se mandar por conta.
“Diga lá pra que veio, moço. Se é pra me vender quinquilharia sem valia, pode dar meia volta e tomar rumo pra outro destino”.
O de branco, se ofendido ficou, não deu sinal, esticou o pescoço à frente e levantou um pouquinho a aba do chapéu: “Não venho lhe vender quinquilharias não, seu Coronel. Trago-lhe boas novas. Ouvi dizer por aí que o senhor tem um filho jogado na cama por causa de doença séria, coisa braba, quase moribundo. Não é verdade não?”
O velho João Pereira só fez baixar a cabeça de leve e confirmou a boataria.
“Pois eu lhe digo, coronel, que posso curar o teu filho com as beberagens que trago comigo”.
Na face enrugada e curtida de sol do coronel, num repente, formou-se um sopro de esperança, deixando-o inté meio abobalhado das ideias, pois o pobre não tomou tento do despotismo de esquisitices em torno daquele maldito de branco.
Aquele fio de esperança agarrado na cara do velho João Pereira me encafifou um tanto, num sabe? Do mesmo modo que me deixou encafifado o procedimento dos meus dois companheiros de armas. O mestre Germano e o negro Idalino pareciam não se dar conta da quietude estranha que caiu por sobre toda a fazenda. Não perceberam a falta da brisa forte que foi embora assim que o “De Branco” botou os pés no terreiro, não perceberam o estranho comportamento das galinhas que ficaram quietinhas no seu canto, sem ciscar nem cacarejar, ou o cachorro brabo do Nego Nereu, sempre tão barulhento com estranhos, botar o rabo entre as pernas e enfiar o focinho na terra.
Eles não viam o que eu via!
E, moço, pode escrevinhá aí: o desgraçado do diabo sabia que eu era o único ali que sentia a verdade da sua natureza maldosa e podre. O porqueira chegou a me lançar um olhar meio enviesado, enquanto o velho João Pereira avaliava a força das palavras dele. Vixe, os olhos do Medonho chisparam e enegreceram como carvão e uma língua de cobra lhe escorreu do canto da boca pra decorar o sorriso mais cheio de maldade que jamais vi em qualquer outro vivente neste mundo de meu Deus. Era uma visão de apavorar!
“E qual é o preço do remédio, seu moço?”, perguntou o coronel numa gastura que se via nos olhos.
O excomungado encalacrado naquela figura mofina pegou uma garrafa verde de um aió preso no lombo do jumento e falou bem assim: “Coronel, isto aqui não boto preço em dinheiro não. É coisa preciosa e vai devolver a vida pro teu filho. Dou a garrafa em troca de um préstimo de vosmecê.”
Rapaz, logo vi que aquilo não era coisa de cabra sério. O velho pensou um pouco, espremeu a cara matutando onde aquela criatura queria chegar e saiu com essa pra cima do Enfezado: ”E quem lhe garante que, no desespero, não posso tomar esta garrafa de vosmecê à força?”
O Coisa-ruim, na posse daquele caboclo mirrado, espichou o pescoço, estufou o peito de cutelinho e devolveu o desaforo na bucha: “Tome tento coronel, vosmecê não se atreveria de mexer comigo”.
Isto mesmo, foi bem isso que ele disse ao velho João Pereira, mas não pense que foi na mesma voz que tava conduzindo a conversa não. O desafio saiu da boca da criatura molambenta por uma outra, decidida, rancorosa, firme, de quem tem comando da situação, viu? Fiquei apavorado porque pensei que o coronel ia mandar passar fogo no desaforado, mas não deu a ordem não. E, olha, o coronel era homem valente, não era homem de engolir desaforo daquela marca. Graças a Deus ele teve o juízo de atinar com as ideias de que, com aquele cabra ali, o buraco era mais embaixo.
“O que é que vosmecê quer em troca da garrafa?”.
O De Branco devolveu o remédio pro aió e esfregou as mãos.
“Muito bem, vou direto ao assunto. Vosmecê é dono da madeireira de Juazeiro, não é não? Então eu quero que o senhor não entregue a partida de madeira que Antônio conselheiro encomendou pra fazer a igreja lá no Arraial de Canudos.”
O coronel achou aquilo um despautério, “Mas o beato já pagou a madeira adiantado!” O De branco não se deu por vencido e botou intimação: “Coronel, vosmecê é quem sabe. Se vosmecê quer o teu filho vivo até amanhã à noite, então faz o que eu tô dizendo”.
Aí o velho respirou fundo e disse: “Olha, moço, não gosto de me meter em política e tenho certeza que isso vai dar confusão. O prefeito só tá esperando o beato se arreliar e botar gente de armas nas estradas.”
O Enfezado só se fez em sorriso, sorriso de malícia das grandes, num sabe?, e disse: “Que se dane Antônio Conselheiro e aquele bando de esfomeados sem serventia”.
O velho João Pereira olhou pra dentro da casa, escutou a tosse catarrenta do filho vazando pelas janelas, escutou o lamento triste de Dona Mariquinha, outra criatura de Deus mais desesperada ainda, junto do filho, olhou pra nós com uma cara de quem pedia desculpa porque sabia que ia fechar negócio com o excomungado dos infernos.
“Tá bom, eu aceito, deixe a garrafa e se vá. Vosmecê tem a minha palavra”.
O Tinhoso pegou a garrafa de remédio e jogou pro coronel. E, antes de ir, puxando o burrico com ele, ainda me lançou um olhar que me atravessou a alma, deu uma puxadinha na aba do chapéu em cumprimento e com aquele sorriso maligno na cara, de língua de cobra no canto da boca, me jogou essa: “Nos vemos por aí nessas veredas, moço.” Vixe, dizem que fiquei branco igual papel e perdi a fala e, de fato, foi assim mesmo. Não tive tento pra dá resposta àquela criatura.
Bom, daí pra frente, como vosmecê bem sabe, a coisa começou a feder pro lado de Antônio Conselheiro. Alguém espalhou notícia de que o beato ia invadir Juazeiro com um bando de jagunços armados até os dentes pra tomar a madeira encomendada à força. Foi um Deus nos acuda e muita gente fugiu da cidade. Tenho certeza que a boataria que se espalhou foi obra do tinhoso também. O juiz Arlindo Leoni enviou carta pro governador da Bahia contando o sucedido e pediu providência urgente no caso.
Mas deixa eu te contar o que aconteceu no outro dia, na fazenda do velho João Pereira. O capeta cumpriu o prometido. A garrafada, de sei lá o que, endireitou o espinhaço do rapaz e botou ele de pé novamente, só que eu não fiquei muito contente não. Sou cabra religioso e aquela cura não procedia de boa coisa. Fiquei, na verdade, bem arreliado com o coronel de ter afrouxado o juízo e ter caído na lábia do Maldito. Meu pai sempre me ensinou que não se deve cair nas artimanhas do diabo. Ele não podia ter feito acordo com o Tinhoso bem em frente das nossas fuças, num sabe? Parece inté que nós tava de acordo também. Falamos umas besteiras de boca pra fora um pro outro e decidi pegar as minhas tralhas pra cair no mundo. Não queria mais viver num lugar onde o dono era coiteiro do Diabo.
Pois então, joguei pernas naquelas estradas à procura de outra fazenda pra trabalhar. E vai pra cá, e vai pra lá, e come poeira aqui e toma chuva lá e nada de conseguir pouso em troca dos meus serviços. Passei fome, viu? Foi um sofrimento só. Rapaz, me arrependi demais da conta, mas não voltei pra fazenda do coronel por orgulho, pra não dar o braço a torcer porque sou cabra de opinião também. Sei que o velho me aceitaria de volta, mas o que ele tinha feito não tava certo não. Meu pai sempre me ensinou que não se dever cair nas artimanhas do diabo, sim senhor.
E nessa aí de passar necessidade, sem rumo certo, é que fui bater com as fuças no Arraial de Canudos pra pedir ajuda. Antônio Conselheiro, com aquela enorme barba até quase a bater na cintura, um homem santo enviado por Deus pra tirar o sertanejo daquela miséria, me deu um teto pra morar e trabalho pra fazer.
Quando lá cheguei, o beato já tava brigado com o governo da Bahia e tinha inté quebrado a espinha de duas tropas de soldados enviado pra acabar com as obras dele em Canudos. Olha, moço, era um mundaréu de gente que se fazia na fé e nas armas em defesa do Santo, e lhe disse que eu também sabia usar arma e podia ajudar. Foi nesta época que conheci os grandes chefes jagunços de ação militar como Pajeú, Pedrão, Joaquim Macambira e João Abade, braço direito do Mestre Antônio.
Porém, nunca dei muita sorte nesta minha vida, num sabe? No 3º ataque da soldadesca, um grupo muito maior, coisa pra mais de 1.300 homens, enviado pelo governo do Brasil, veja só como a coisa tava tomando vulto, levei um tiro na perna que me deixou arriado por uns tempos, coxo, sem muita serventia pra mode de cair na briga.
Depois de uns três meses, me deu uma gastura sem tamanho quando fiquei sabendo que se tava armando coisa maior ainda pra cima do povo de Canudos, coisa de sustância pra arroxear cabra valente. Corriam boatos que estavam vindo pra Bahia soldados de 17 estados, formando duas colunas militares do exército brasileiro com 8 mil soldados pra mode de dar um 4º e derradeiro ataque contra o Santo. Fiquei num estado de nervos, pois eles precisavam de mim e eu tava naquela situação, inválido, sem muito o que fazer pra ajudar na luta que se aproximava.
Em 27 de julho de 1897, depois de um arranca-rabo medonho com a armada do general Cláudio Amaral Savaget, em Cocorobó, uma leva de uns tantos mil soldados, não dava nem pra contar porque nunca vi tantos na minha vida, fizeram um cerco nas proximidades de Canudos, montaram base e iniciaram os ataques. O cerco, que durou por mais de dois meses, também impedia a entrada de mais gente querendo ajudar o Santo, assim como água e comida pros resistentes conselheiristas.
Rapaz, a coisa ficou feia e mais feia ficou quando no meio daquele desespero de bala de canhão e gente morta pra todos os lados, o Santo veio a morrer por causa de uma disenteria braba que lhe golpeou o corpo fraco de sede e fome, um pecado, viu?
Com a morte do Mestre de Belo Monte caiu um abatimento por riba do povo de Canudos, mas ninguém queria se entregar. A gente tinha que honrar as calças que tava vestindo em nome do Santo e defender o que ainda restava de dignidade daquele povo sofrido. Os chefes Jagunços, então, decidiram resistir até o último homem, mas acharam por bem poupar a vida dos velhos, das mulheres, alguns feridos, e das crianças. Por isso pediram a Antônio Beatinho que intercedesse uma rendição por aquela gente que não teria como lutar e nem se defender.
Depois que o governo prometeu garantir a vida de todos, muito do contra, fui enviado como peso morto, juntamente com os velhos, mulheres e crianças pra rendição, coisa de umas trezentas pessoas. Os soldados nos colocaram num cercado grande, todos amontoados que nem porcos na lama, e ficamos ali alguns dias sob mira da soldadesca, com pouca água e sem comida, enquanto ainda se podia ouvir os barulhos do combate lá pro meio da praça central de Canudos. Não gosto de me alembrar das mortes de uns quantos que vi, caídos naquele chão empoeirado e sempre de boca aberta rezando pra nosso senhor Jesus Cristo e Antônio Conselheiro. Vixe, foi desperdício de gente dos dois lados.
Mas o pior ainda estou pra te contar, seu moço, escrevinha aí no teu caderninho porque essa é coisa muito da séria. No terceiro ou quarto dia, nem me alembro mais, eu tava matutando um jeito de fugir daquele cercado, mas não tinha jeito não. Ficava observando o movimento das tropas no acampamento, um pouco mais retirado, até que, de repente, minhas vistas deram como uma figura já conhecida vagando no meio da soldadesca. Vosmecê não vai nem acreditar. Pois sim, era o maldito enfezado de branco, puxando o jumento naquela calmaria enervante. Ô meu pai, o que é que aquela criatura tava fazendo ali, pensei cá comigo. Coisa boa é que não devia de ser. O desgraçado parecia sentir a minha presença também porque, acredite, ele ficou cheirando o ar, assim como fazem os bichos pra procurar comida, num sabe? E cheira daqui e cheira dali, foi virando aquela cara maligna até botar os olhos de carvão por riba de mim. Daí, levou a mão no chapéu, botou a língua de cobra no canto da boca e me cumprimentou. Ôxe, eu ficava danado comigo mesmo porque não conseguia desviar os olhos do maldito.
Foi, então, que se deu a maior desgraceira naquela guerra maldita. Escute só o que o Excomungado fez. Ele começou a puxar conversa com o general Artur Oscar. E eu só de olho neles, lá longe. Conversa vai, conversa vem, até que os dois entraram na tenda do oficial, o burrico ficou fazendo cena pros soldados que brincavam com ele. De repente, de dentro da tenda saiu apenas o general. E cadê o Enfezado? Cadê? Rapaz, quando vi o general vindo na nossa direção é que percebi que ele não era ele não! Era o demônio encalacrado no corpo dele!
O endemoniado general Arthur Oscar chamou pra mais de 100 soldados virem pra perto do cercado dos rendidos indefesos de Canudos e gritou assim pra todo mundo ouvir:
“Soldados, não vamos deixar nenhum monarquista vivo nesta terra. Nós vamos fazer aqui como se costuma fazer com gente revoltosa lá no sul, quero a degola de todos estes porcos. Seja velho, seja mulher ou criança, passa o facão nestes monarquistas dos infernos”.
Ai, ai, meu Deus, foi um massacre. Vixe, me dá até um engasgo no falar e o meu peito bate mais acelerado. Moço, eles foram arrastando os desesperados pra um canto e... meu Deus... meu Deus... só se via grito lamentoso da mãe de um lado e a cabeça do filho pequeno saltando na terra do outro. Os velhos apenas se ajoelhavam, nem precisava forçá-los, levavam os olhos pro céu e o facão jogava a cabeça dos pobres por sobre a terra encharcada de um vermelho vivo. Foi um desespero sem tamanho que nunca vi igual. Não tem uma noite que eu não acorde encharcado de suor com a imagem daquele desespero.
Quando chegou a minha vez, não resisti, fui mancando pro canto que eles faziam o serviço e, pra surpresa de todos, o Enfezado, encalacrado no corpo do general Arthur Oscar, disse:
“Este aleijado aí deixa vivo. Quero pelo menos uma testemunha pra contar a história. É pra meter medo em qualquer monarquista metido a besta que se criar por este sertão. Tenente Mourão, você bota este merda naquele jumento ali e manda-o pra bem longe, mas antes disso, quero falar a sós com o infeliz”.
Ele me arrastou pra fora do cercado do desespero. Não sabia o que fazer, só conseguia olhar pro chão de tanta vergonha. O desgraçado me levantou o queixo, e encarei com raiva aqueles olhos de carvão e aquela língua de cobra nojenta e me falou uma verdade que não gostei nem um pouco de ouvir:
”Eu fiquei sabendo que tu abandonou o Coronel João Pereira porque ele fez um trato comigo e que tu vive por aí arrotando que teu pai lhe ensinou que não se deve cair nas artimanhas do Diabo. Pois fique então sabendo que se eu te deixo viver hoje é porque fiz um trato com teu pai. Trato é trato. Quando tu era miúdo, também caiu doente. Dei uma garrafa a ele pra tu viver. Se algum dia tu abrir a boca sobre o que aconteceu aqui, vou quebrar o trato e venho acertar as nossas contas”.
Pronto. É isso que eu tinha pra te contar. Vá embora escrevinhá esta estória no teu jornal. O Enfezado logo vai bater as fuças por aqui porque lhe contei o que se passou no massacre dos rendidos de Canudos, mas quando ele aparecer, eu vou matar ele. Ah, se não vou! Eu vou matar o diabo! Agora, o moço me dê licença que eu tenho mais o que fazer, boa noite.
* * * * *
Bilhete do Coronel Ernesto Emerenciano da Fonseca ao Coronel João Pereira
João, vosmecê se alembra do Bento Eleutério de Zulmira? Aquele que era teu empregado aí na tua fazenda? Fiquei sabendo que ele endoideceu de vez depois de matar um cabra que vendia garrafadas. Esse tal foi vender remédio na casa dele e dizem que o Bento furou o cabra de punhal dos pés à cabeça, picou o pobre todo e se escafedeu no mundo. Dizem que ele, agora, anda fugido lá pras bandas de Pernambuco, seco igual um pau de virá tripa, todo vestido de branco, puxando um jumento e vendendo garrafadas também. Tornou-se figura conhecida e temida pra’quelas bandas. Há quem afirme que já viram ele jogando sorrisos de malícia, com língua de cobra no canto da boca, pros sertanejos que vagam sem rumo pela caatinga. Vosmecê acredita nisso?
Fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/10/o-homem-que-queria-matar-o-diabo.html