segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Olá pessoas, tudo bom com vocês ?
Como vocês já perceberam eu estou fazendo várias postagens. A razão de tal ato é que logo logo eu vou viajar, e corre o risco de não ter wi-fi onde eu vou ficar. Então vou traduzir e postar o máximo de conteúdo possível. O conto a seguir foi tirado de um livro chamado Frenesi, da autora Heloisa Seixas.
Boa Leitura.
 Depois que o último funcionário foi embora do palácio, o guarda que fazia a ronda noturna na ala da frente, a ala do museu, sentou-se por um instante na sala de segurança para ajeitar o cordão do coturno, uma bota enorme, preta, de cano alto. Já passava das nove da noite e em torno do palácio, em pleno Centro do Rio, quase não havia mais movimento. As ruas estavam tão vazias que até parecia madrugada. Atrás, no jardim interno onde ficava o lago com os cisnes, as palmas das palmeiras imperiais mal se moviam, tal a quietude da noite. As luzes externas tinham sido apagadas, restando acesas apenas, junto às quinas, algumas luminárias, que emanavam uma luminosidade mortiça, triste.
  Arrumando o cordão da bota, o guarda se levantou e ajeitou também o cinto e o coldre, de onde saía o cabo escuro de uma arma. Em seguida foi até a porta da sala da segurança e espiou o corredor. Ali também havia pouca luz, mas dava para ver o mármore de duas cores formando losangos e o corrimão da escada principal, que levava ao salão de banquetes e à biblioteca, no segundo andar. Dali de onde estava, ele não podia ver, mas no primeiro patamar, logo acima da escadaria, ficava uma espécie de vitrine, de madeira e vidro, cheia de documentos, comendas, penas antigas, mata-borrões. Virando à direita, a sala de banquetes, com afrescos nas paredes e cortinas de veludo, tendo ao centro a mesa espetacular de jacarandá, com cadeiras de espaldar trabalhado. E junto ao salão ficava a biblioteca, que ainda abrigava alguns livros raros em suas estantes altíssimas, todos trancados por trás de vidros.
  Antes de começar seu plantão, o guarda sempre revia mentalmente todo o espaço do museu, como a se certificar de que estava num ambiente conhecido. Era a maneira que encontrava de se sentir seguro. Não havia mais ninguém ali. Não haveria mais ninguém durante muitas horas, até amanhecer. Era ele quem estava de plantão naquela noite. Ele, só ele. E assim, ajeitando o cinto mais uma vez, pôs-se de pé junto a um dos portais e ficou quieto, à escuta.

  Outra vez, estou ouvindo outra vez. Pronto
  É sempre há esta hora que começa. E eu não posso fazer nada. Tenho que ficar aqui, em guarda. Não posso abandonar meu posto. Da última vez em que eu me distraí, deu no que deu. Os tiros, toda aquela confusão, a correria. O bandido escapou. E eu também. Mas a verdade é que escapei por pouco. Cheguei a ouvir o zunido da bala, passando por mim, o som do metal se cravando no mármore da parede. Agora, por causa disso, presto muita atenção. O diabo é ter de passar a noite toda aqui sozinho, nesta ala do palácio. Antes, eu não me importava. Mas de uns tempos para cá começou. Acho que foi depois da tentativa de assalto. É verdade, foi sim. Eu nunca tinha pensado nisso. Mas foi.
  Não tenho medo de fantasmas. De jeito algum, não sou dessas pessoas fantasiosas, que se impressionam à toa. Não, não, pode acreditar, não ligo para nada disso. Tenho medo é de ladrão, gente viva, isto sim, que não sou maluco. Quer saber? Decidi fazer este bico aqui de segurança apenas por estar desempregado, mas de ladrão tenho medo, não posso negar. Tenho sim. Agora, de fantasma? Nem pensar. Acho tudo isso bobagem. Tenho até fascínio, interesse. Sempre gostei de histórias de terror. Sempre, sempre. Quando eu era pequeno, minha avó aproveitava as noites de chuva, lá na casa em que morávamos, em Guaratuba, e nos contava histórias assombradas. Minha irmã chorava de medo, eu não. Eu gostava. Depois, com o tempo, tomei gosto pela leitura, descobri vários autores de mistério, de histórias de terror, sobrenaturais ou de crime, tanto faz, gosto dos dois tipos. Mas, medo mesmo, nunca tive. Não sou bobo como minha irmã era, nunca fui.
  Quando vim trabalhar aqui no palácio, no museu, teve gente que veio falar comigo. Aqui tem fantasma, Cássio. Achei besteira, nem liguei. Afinal de contas, um lugar tão bonito. Aqui é assim, vou descrever, para quem não conhece: é um palácio grande, com várias alas e um jardim interno, com um lago enorme, cheio de cisnes e palmeiras de um lado e outro. É bonito mesmo. Isso, o jardim. Mas aqui dentro, então, é mais bonito ainda. É espetacular. As paredes são todas de mármore, o chão também, formando uns desenhos de duas cores. E tem as escadarias, duas delas, uma de mármore, a principal, outra de madeira, menor, que fica lá atrás. Essa eu gosto menos. Não porque seja feia, nada disso. Mas porque ela range à noite. Geralmente é lá que começa. Como aconteceu agora. Dizem que a madeira estala, principalmente madeira antiga. Mas sei lá. Quando vim trabalhar aqui, não lembro que tivesse nada disso. Foi depois. Depois do assalto é que começou.
  Vou contar toda a história, desde o princípio. Eu sou assim, sabe? Gosto de contar histórias para mim mesmo em pensamento, como se estivesse falando com alguém. Ainda mais quando estou aqui, de guarda. É para passar o tempo. Para espantar o medo.
  Primeiro, quero falar de quando era menino, das tais histórias de assombração. Não é que minha avó se limitasse a contar histórias, era mais do que isso. Minha avó tinha talento, sabe? Tinha jeito para a coisa. Contava aos pouquinhos, fazia suspense, às vezes interrompia a história e só continuava no dia seguinte, era uma agonia danada. E mais: só contava à noite. E quando era noite de chuva, aí é que ela ficava mais satisfeita. Certa vez, quando contei isso para uma namorada minha, ela falou que minha avó era "sádica". Sádica, veja você. Eu conhecia essa palavra, conheço bem as palavras, gosto muito de ler. Mas achei exagero. Não era nada disso. Minha avó tinha era jeito para a coisa. Enquanto contava a história, ninguém conseguia desgrudar o olho dela. Depois que eu fiquei maior e comecei a me interessar por livros de terror e mistério, cheguei a ler vários deles que me deram a mesma sensação. Eles me lembravam minha avó.
  Você ouviu isso?
  Foi, sim, foi outra vez. Só que um pouco diferente, pareceu mais um baque do que um rangido, um barulho abafado como se alguém arriasse um peso no chão. Mas foi lá atrás, perto da escada, tenho certeza. É sempre lá. Será que vai começar?
  Não, mas eu não vou parar, preciso continuar contando minha história, porque assim me distraio. É. Vou me concentrar. Não tenho medo, não vou ter medo. Tudo isso é bobagem. Eu preciso do emprego e pronto. Tenho mais é que fazer a ronda, meu trabalho, e ficar bem quieto aqui, na minha. Ladrão, não é. Depois da tentativa de assalto, eles não voltam tão cedo. Então, não tenho que sentir medo. Se for fantasma, azar. Deixa quieto. Não vou ligar.
  A história. Vou contar a história. Tive uma professora no segundo grau que me dava conselhos. Via que eu gostava de livros desse tipo, de terror, quero dizer, e dizia que aqueles que eu andava lendo não eram tão bons assim. E me emprestava outros. "Você precisa conhecer os clássicos", dizia. E começou me emprestando um livro - bem antigo, todo amarelado, parecendo mais velho que a minha avó - de um tal de Lovecraft. Que nome gozado, pensei. Pois sabe que fiquei maluco pelo sujeito? O primeiro livro dele que a professora me emprestou trazia várias histórias. Era bom por isso, eram umas histórias pequenas, uns contos, como se diz, e aí dava para ler um de cada vez sem se cansar. Porque o jeito de escrever do tal Lovecraft não era muito fácil, eu tive de me acostumar com ele. Mas a verdade é que desde o início aquelas histórias me deixavam curioso, eu queria seguir em frente, descobrir o que ia acontecer.
  Lembro-me de uma que se chamava "O túmulo". Era contada por um sujeito que - você ficava sabendo logo nas primeiras linhas - estava internado num manicômio. É bom, isso. Sabe por quê? Porque se a história é contada por um louco nunca vamos saber se o que ele está dizendo aconteceu mesmo ou não. E é essa dúvida que torna a história mais real. Se aquelas coisas estranhas não são sobrenaturais, se só existem porque o sujeito que está narrando é meio maluco, então de repente está tudo muito perto. Aquilo também pode acontecer com você.
  Pronto. Foi só eu falar e pronto.
  Calma, calma. Mas é isso mesmo, agora tenho certeza. Não foi mais toque, nem rangido. Foram passos. Passos, como da outra vez. Já não tenho a menor dúvida de que vai começar.
  Mas não vou sair daqui, não vou deixar o meu posto, isto não faço. Vou continuar com a história, como se nada estivesse acontecendo. Vou voltar para o meu túmulo e... Ai, ai, de repente me deu uma vontade danada de rir, eu aqui, com medo desses barulhos estranhos e o que me faz sentir alívio é pensar em histórias de terror. Vou voltar para o meu túmulo, eu falei. Acho que também estou ficando maluco. Se ao menos eu não tivesse parado de fumar... Bem que um cigarrinho seria bom agora.
  Onde eu estava mesmo? No túmulo. No Lovecraft. O tal cara que está no manicômio conta o que aconteceu com ele. Um dia, passeando por uma floresta perto de onde morava, ele encontra, escondida no meio da floresta, a entrada de um túmulo antigo, um jazigo, como se diz, desses que têm lugar pra enterrar várias pessoas. E aí, pronto, a loucura começa. Ele sente uma estranha atração, começa a ter visões. Quer porque quer entrar no túmulo, sem saber bem por que, até que uma noite consegue. Lá dentro, entre aquelas paredes úmidas de pedra, descobre um lugar com um caixão vazio. Na pedra, gravado, está seu próprio nome. E ele acaba descobrindo a história de um antepassado que tinha o nome igual ao seu. Esse homem morreu num incêndio, quando um raio atingiu sua casa numa noite de tempestade, e como seu corpo virou cinza, ele nunca pôde ocupar o lugar que tinha reservado no túmulo da família. Agora, talvez estivesse querendo se apossar do espírito de seu descendente, para que ele, morto, fosse enterrado naquele túmulo vazio. Ou talvez o rapaz fosse uma reencarnação do antepassado. Mas o que me deu mais medo quando eu li a história foi que o rapaz está num manicômio e o pai garante que é tudo um delírio da cabeça dele. Tudo loucura...
  Loucura. Mas não, não é loucura. Por mais que eu tente me concentrar na história, estou ouvindo muito bem os passos. Parecem ainda mais próximos que da outra vez, não mais na escada dos fundos, mas aqui junto, perto da escadaria principal, talvez naquele corredor comprido onde, de um lado e outro, ficam as estátuas de pedra preta. Tem cara mesmo de assombrado, aquele corredor. Será que eu deveria ir até lá? Não sei, talvez seja melhor ficar aqui bem quieto, esperando o tempo passar.
  Ah, Cássio, por que você foi se meter num lugar assim?
  Mas eu precisava do emprego, estava na pior. Agora não adianta ficar me lamentando. É o que é e pronto. Eu preciso enfrentar. Se contar para os meus colegas da Guarda o que está acontecendo, sei que vão rir de mim, tenho certeza. Por isso, fico firme. Não deve faltar muito para amanhecer, acho que já é de madrugada. Será? Ando meio confuso com essa coisa das horas. Depois do assalto, foi depois do assalto. Está tudo meio diferente de lá para cá.
  Aliás, tenho de admitir que sempre fui meio diferente das outras pessoas. Quando era pequeno, eu falava muito sozinho. A tal mania de me contar histórias. Talvez tenha sido culpa da minha avó, sei lá. O fato é que eu era capaz de ficar horas a fio imaginando coisas, situações. A minha ex-namorada, aquela mesma que chamava minha avó de sádica, dizia que eu devia ser escritor. Que todo escritor é meio maluco e que eu também sou. Eu ri quando ela disse isso. Mas no fundo fiquei achando que talvez tivesse uma ponta de razão. Isso explicaria meu fascínio pelos livros, apesar de ser um cara de família sem muito recurso. Na minha casa não havia um só livro, nem estante, nem nada. Só o que tinha era a minha avó, com suas histórias. Mas ela foi o bastante.
  E agora?
  E agora, essa voz?
  Foi uma voz, não foi? Foi sim. Alguém murmurou alguma coisa, como se falasse sozinho em voz alta ou como se chamasse para ver se alguém respondia. Não é possível que eu esteja ficando maluco. Eu ouvi!
  Mas não vou responder, claro que não. Seja gente ou fantasma, vou é ficar bem quieto, aqui no meu canto, esperando o dia amanhecer. Ah, droga, que diabo de lugar é esse Cássio? Não sei por que é que eu vim trabalhar aqui.
  Uma história. Preciso voltar às histórias, qualquer uma, só para não pensar. Vou contar uma daquelas da minha avó. A do chicote. Não é história de livro. Ela garantia que tinha acontecido de verdade, com seus sogros, quando tinham ido morar no Rio Grande do Sul.
  E agora?
  E agora, essa voz?
  Foi uma voz, não foi? Foi sim. Alguém murmurou alguma coisa, como se falasse sozinho em voz alta ou como se chamasse para ver se alguém respondia. Não é possível que eu esteja ficando maluco. Eu ouvi!
  Mas não vou responder, claro que não. Seja gente ou fantasma, vou é ficar bem quieto aqui no meu canto, esperando o dia amanhecer. Ah, droga, que diabo de lugar é este, Cássio?  Não sei por que é que eu vim trabalhar aqui.
  Uma história. Preciso voltar às histórias, qualquer uma, só para não pensar. Vou contar uma daquelas da minha avó. A do chicote. Não é história de livro. Ela garantia que tinha acontecido de verdade, com seus sogros, quando tinham ido morar no Rio Grande do Sul. O sogro dela, meu bisavô, era do exército e tinha ido servir lá por aquelas bandas por um tempo. Isso foi no início do século passado, sei lá, muito antigamente. Eles eram jovens ainda, meu bisavô e minha bisavó. Recém-casados, sem filhos. Alugaram uma casa boa, de dois andares, como nunca tinham sonhado. Estranharam que o aluguel estivesse tão barato, mas procuraram não pensar no que ouviram sobre a casa ser mal-assombrada.
  Logo na primeira noite, estavam os dois no quarto, se preparando para dormir, quando ouviram um ruído estranho no andar de baixo. Da primeira vez, só ele ouviu. Ou pelo menos foi ele quem levantou o rosto, intrigado. Mas logo o barulho se repetiu. Agora a mulher também estava atenta, embora evitasse encarar o marido, talvez por medo ou respeito, sei lá. E o ruído aconteceu pela terceira vez. Sem nem perceber o que fazia, ela deu uns passos em direção ao marido, que se virava para a porta. Passaram-se muitos segundos, um tempo enorme, e a casa em silêncio. Ele se voltou para a mulher e já ia dizer alguma coisa quando o barulho aconteceu pela quarta vez, só que agora muito mais forte. E os dois se abraçaram, sem dizer nada. Ficaram paralisados. Não conseguiam evitar pensar nas histórias de que a casa era mal-assombrada. Havia mesmo naqueles ruídos qualquer coisa de estranho, de sobrenatural. Mas foi só quando aconteceu mais uma vez que o casal percebeu, com absoluta certeza, que se tratava de uma chicotada.
  Era o som fino de um chicote, seu assobio cortando o ar, seguido do estalo estridente do couro no chão de madeira. Plá!! E agora acontecia mais uma vez. E mais uma. As chicotadas se repetiam num ritmo cada vez mais rápido e, se antes pareciam acontecer na sala, lá embaixo, agora explodiam na escada, chegando cada vez mais perto. Os dois se abraçaram com mais força e fecharam os olhos, a mulher enterrando o rosto nono peito do marido e começando a rezar baixinho. E as chicotadas continuavam subindo as escadas. Plá!! Um estalo depois do outro. Sem parar. Até que de repente o chicote estalou no chão do quarto. Plá!! A mulher apertou o marido ainda com mais força, trancando os olhos. Ele também estava de olhos fechados. E foi assim, abraçados, que eles ficaram, enquanto as chicotadas explodiam em volta, num círculo macabro e interminável.
  Muito tempo depois – eles não saberiam dizer quanto – o som parou e a noite voltou a mergulhar no silêncio. Quando a mulher levantou o rosto para o marido, disse apenas, num sussurro: “Temos de mandar rezar a casa”.
  Era assim, era como minha avó contava as histórias. Quase sei as palavras dela de cor. E minha avó garantia que era tudo verdade, que tinha acontecido com seus sogros, pais do meu avô. Dizia isso e os olhinhos dela brilhavam. Aí mesmo é que minha irmã se pelava de medo. Eu, não.  Nunca tive medo de fantasma.
  Agora vou contar mais uma. Só mais uma, para não chatear. Depois, vou tentar me escorar em algum canto, dar um cochilo, desligar. Melhor assim. Melhor não pensar. Talvez já seja madrugada, acho que sim; Estou um pouco confuso, as horas aqui dentro parece que não passam.  Mas vou contar a história. A última história, só mais uma.
  Esta eu li num livro, outro que a professora do segundo grau me deu. O autor tinha um nome ainda mais esquisito que o Lovecraft. Era Le Fanu. Sheridan Le Fanu. Não sei por que guardo esses nomes. A história se chamava “Chá verde”. Quando li a primeira vez, confesso que passei uns dias pensando naquilo. De vez em quando, andando sozinho, me virava de repente e olhava para trás, só para ter certeza de que estava mesmo sozinho.
  Pronto. Outra vez, os passos. É só eu pensar e eles voltam. E agora, não sei, parecem mais firmes, mais determinados. Como se tivessem me descoberto. Como se viessem para cá. Vou me esgueirar aqui por essa parede, me esconder na sala da segurança. Lá me sinto melhor, não sei por quê. Lá tenho a sensação de que nada pode me acontecer.
  Pronto, pronto. Vou ficar aqui, bem quieto. Assim. Vou me concentrar. Pela última vez, só falta uma, só essa e aí acho que a noite acaba. A história do chá verde. Do Le Fans. Se pensar nela com força, não ouço. Não ouço os passos. Não ouço nada.
  E a história de um sujeito muito equilibrado e educado, um pastor, que não tem nada de maluco. Apenas gosta muito de tomar chá. Chá verde. Não sei bem o que é isso, mas na história é explicado que chá verde, se tomado com exagero, pode causar alucinações. Essa seria a explicação para o que vai acontecer. Mas o autor deixa sempre aquela ponta de dúvida na gente. Pode ser e pode não ser. E é isso que dá mais medo.
  Bem, mas o que acontece é o seguinte: o tal pastor, um dia, ou melhor, uma noite, ao voltar para casa, sozinho, vê, de repente, poucos metros atrás dele, dois pequenos círculos de luz avermelhada. A princípio, não liga, mas pouco depois, ao tornar a olhar, vê novamente os dois círculos de luz, sempre na mesma distância um do outro, mas num outro ângulo em relação a ele. Como a rua está muito escura, não tem como descobrir o que é aquilo, mas começa a ficar intrigado. Continua andando.
  Tenta se concentrar em alguma outra coisa, não olhar para trás, mas aos poucos seus olhos vão sendo puxados, atraídos, como acontece quando estamos de cabeça baixa e tem alguém olhando para nós. Até que finalmente o pastor espia de novo por cima do ombro – e lá estão os círculos de luz. Como se estivessem indo atrás dele. Ele então decide descobrir o que é aquilo. Volta alguns passos, sem tirar os olhos daquelas duas luzes, e à medida que se aproxima vai enxergando em torno delas uma pequena mancha escura. É um macaco. Um macaco de pelo preto, não muito grande. Os círculos avermelhados são seus olhos, brilhando no escuro.
  Sente um arrepio, como se pressentisse que havia qualquer coisa de maléfico naquela criatura. Aproxima-se. Decide cutucá-lo com a ponta do guarda-chuva, talvez para espantá-lo dali. E é então que acontece o pior dos horrores. A ponta do guarda-chuva atravessa o bicho sem qualquer resistência. E o pastor descobre que o pequeno macaco é um fantasma.
  A história é contada por um médico que atende o pastor e tudo é dito de uma forma fria, científica. Mas dá um medo danado. O macaco de olhar maligno começa a perseguir o sujeito por toda parte. Só ele vê o bicho, mais ninguém. E este parece disposto a vigiá-lo por onde vá, o tempo todo. Até que o pastor começa a sentir que é uma possessão, que está sendo dominado por aquela criatura do inferno. Depois de um tempo, começa a ouvir uma voz dentro da própria cabeça: é o macaco que fala com ele. O médico tenta ajudá-lo, faz de tudo – mas não adianta. Um dia, desesperado, o pastor se mata, cortando a garganta com a navalha de barbear.
  Pois é. É como acaba. Minha avó costumava dizer para mim: Cássio, as histórias de terror são assim mesmo, quase sempre acabam mal.
  Por que será que estou tremendo desse jeito?
  Por quê?
  Preciso me controlar. Vamos, Cássio, vamos parar com isso. Sei que é tudo um pouco confuso, mas não posso me apavorar assim. Os passos continuam. E daí? São passos, sons, ruídos, sei lá. Não pode ser nada de mais. Não pode ser pior do que o assalto. O assalto, sim, deu medo. Eu escapei por um triz. Ouvi o barulho da bala zunindo perto de mim. Parece que se cravou na parede, já não sei ao certo. Sei que de lá para cá tudo mudou. Tudo ficou estranho, confuso.
  Mas não importa, não vou ter medo, não posso ter. Vai amanhecer. Tem de amanhecer. Ou será que não? Às vezes sinto como se não fosse amanhecer nunca mais, como se eu fosse ficar para sempre aqui, preso neste palácio e nesta noite, vagando sozinho como um fantasma. Um espectro, como dizem os autores dos livros de terror. Um fantasma que conta histórias

  O guarda tornou a se abaixar para ajeitar o cordão da bota. Não que precisasse, estava bem amarrado. Fez isso num gesto automático, sem saber por que, só para fazer alguma coisa, mexer com as mãos. Ao se erguer, olhou para os lados, parecendo inquieto. Mordeu o canto direito do lábio e rodou a cabeça como se estivesse com dor no pescoço, como se sentisse um peso nas costas, alguma coisa incomodando. Lá fora, a noite parecia cada vez mais fechada. Nem lua, nem nada. De onde estava, dava para ver, depois do corredor com o chão de mármore em losangos de duas cores, os arcos dando para o jardim interno. Ele percebia alguma coisa, talvez a silhueta das palmeiras, mas era difícil saber por causa do escuro do pátio. Não sabia por que se sentia daquele jeito. Nunca fora disso.
  Andou mais uma vez em direção à sala de segurança, caminhando de novo pelo corredor, o mesmo corredor por onde já passara várias vezes naquela noite, mas que agora parecia ainda mais quieto. O guarda caminhava com passadas lentas, tocando o chão bem devagar com seus coturnos, como se temesse quebrar aquele silêncio de morte.
  Mas de repente, já perto da sala da segurança, parou.
  Parou e ficou à escuta, sentindo os pelos da nuca se arrepiarem um atrás do outro, em sequência, como dominós movendo-se numa reação em cadeia. Percebera alguma coisa. Não era impressão, agora tinha certeza. Aquilo que vinham falando, todas as histórias. Não acreditava em nada disso, mas agora, sim, agora tinha absoluta certeza de que estava sentindo alguém ali– uma presença.

  Teve vontade de sair correndo, mas se controlou. Começou a rezar baixinho. Ia rezar, sim. Ia rezar por ele. Só podia ser ele. O rapaz que trabalhava na ronda noturna e que, meses antes, tinha morrido na tentativa de assalto ao museu. Não chegara a conhecê-lo, mas ficara sabendo de tudo. Era um bom rapaz, todos gostavam dele. Tinha mania de contar histórias, que aprendia com a avó. Umas histórias de terror. Uma pena ter morrido tão moço, pouco mais que um menino. Só podia ser ele que estava assombrando o palácio. Como era mesmo seu nome? Ah, sim. Cássio. Isto. Ele se chamava Cássio. Ia rezar por ele.

Botão Vermelho

Em uma manhã de domingo, Lauren foi acordada pelo som de seu pai batendo na porta do seu quarto.
  “Hora de acordar,” ele disse animadamente. “É Dia do Botão Vermelho.”
  Ela sentou-se e esfregou os olhos sonolentos.
  “Dia do Botão Vermelho?” ela pensou. “Que diabos é Dia do Botão Vermelho?”
  Confusa, Lauren rolou para fora da cama e se vestiu. Ela tropeçou até o banheiro e olhou seu reflexo no espelho. Tinha a estranha sensação de que alguma coisa não estava certa. Ela escovou os dentes e lavou o rosto.

  Quando ela desceu as escadas, sua mãe estava na cozinha, lavando os pratos. Ela estava vestida com sua melhor roupa de domingo. Seu pai estava tomando o café da manhã. Ele usava terno. Seu irmãozinho estava penteando o cabelo, e seus sapatos brilhavam.
  Lauren sentou-se à mesa da cozinha.
  “Pai, eu ouvi direito?” Ela perguntou hesitante. “Você disse que é Dia do Botão Vermelho?”
  “É claro,” respondeu o pai. “Você se esqueceu?”
  Lauren franziu as sobrancelhas. Alguma coisa estava errada.
  “Do que você está falando?” Ela perguntou.
  “Nós temos que sair logo,” disse seu pai. “Não queremos nos atrasar.”
  “É isso que você vai vestir no Dia do Botão Vermelho?” perguntou sua mãe.
  “Perdi alguma coisa?” perguntou Lauren, frustrada. “O que é Dia do Botão Vermelho?”
  “Pare de agir como uma idiota!” resmungou seu irmão.
  “Você não leu o panfleto?” perguntou seu pai. “Está aqui em algum lugar...”
  Ele levantou da cadeira e foi procurá-lo.
  “Eu nunca ouvi falar do Dia do Botão Vermelho!” queixou-se Lauren, tentando não perder a calma.
  Ninguém a respondeu. Eles estavam todos muito ocupados se arrumando.
Com um suspiro, Lauren pegou seu celular e ligou para seu namorado, Michael.
  “Hey, o que há de errado?” ele disse, quando atendeu o telefone.
  “Uh... Nada,” respondeu Lauren. “Por quê?”
  “Você me disse que é o Dia do Botão da sua família,” ele disse.
  “Que diabos é o Dia do Botão?” ela perguntou.
  “Você não ouviu sobre isso na escola?” ele disse surpreso.
  “Não... Talvez eu tenha faltado nesse dia...”
  “Bem, é muito complicado para explicar agora,” respondeu seu namorado. “Boa sorte.”
Antes que ela pudesse dizer uma palavra, ele desligou o celular rapidamente.
  Só então, sua mãe desceu as escadas carregando algumas roupas.
  “Essa blusa é bonita,” ela disse. “Coloque. Eu quero que pareçamos o melhor possível para o nosso Dia do Botão Vermelho.”
  “Mãe, me escute por um minuto,” disse Lauren. “Tem alguma coisa muito errada aqui...”
  “Eu sei,” respondeu sua mãe. “Nós estamos ficando atrasados e você ainda não está vestida.”
  “Não, não é isso que eu quero dizer!” disse Lauren, zangada. “Eu não sei nada sobre o Dia do Botão Vermelho. Eu nunca nem ouvi falar dele. Eu sou a única que não tem a menor ideia do que está acontecendo aqui?”
  A mãe de Lauren olhou para ela por um longo tempo. Quando ela finalmente falou, sua voz estava calma.
  “Olha querida,” ela disse. “Eu sei que você está triste. Só vá se trocar. Aqui está sua blusa. Eu te vejo no carro daqui a cinco minutos, ok?”
  Com isso, ela se afastou, deixando Lauren sozinha com sua melhor blusa.
Quando Lauren deu por si, já estava no carro. Tudo estava acontecendo tão rápido, que a deixava inquieta. Ela se sentia presa.
  “Que diabos está acontecendo aqui?” Ela pensou. “Todo mundo de repente ficou louco? Talvez seja tudo uma brincadeira bem elaborada...”
  O carro parou do lado de fora de um prédio do governo cinza e monótono.
  “Aqui estamos” o pai dela disse alegremente. Todos desceram do carro e andaram até a entrada principal. Lauren seguiu sua família, ainda se perguntando para onde estariam indo.
  Uma recepcionista estava sentada atrás de uma grande mesa. Ela olhou e sorriu quando eles se aproximaram.
  “Olá, estamos aqui para o nosso Dia do Botão Vermelho,” disse o pai de Lauren.
  “Nome, por favor?”
  “Krandall, família de quatro.”
  “Por aquela porta, senhor,” disse a recepcionista. “É só seguir as setas vermelhas.”
  Eles andaram por um corredor longo e bem iluminado, forrado de escritórios, até chegarem em uma larga sala branca. Haviam quatro pequenos pilares da altura da cintura no meio da sala, e cada um tinha um botão vermelho no topo.
  Do outro lado do quarto havia uma mesa polida. Três oficiais do governo de ternos cinza estavam sentados atrás dela. Havia uma enorme bandeira com a insígnia do governo sobre eles. O aposento estava quieto e estéril.
  A família de Lauren subiu nos pilares, observando os oficiais com expectativa, deixando um pilar para ela. Com seu próprio botão. Trêmula, ela subiu no pilar, só para notar com um sobressalto que o chão ao redor estava ligeiramente inclinado em direção a um ralo atrás deles, que ela não havia notado quando chegaram ali. Um dos oficiais falou, sua voz ecoando no espaço aberto.
  “Membros da família Kendall...” o oficial do governo começou.
  “Família Krandall,” o pai de Lauren corrigiu.
  “Perdoem-me... Família Krandall,” o oficial continuou. “Vocês foram escolhidos para a honra do Dia do Botão Vermelho. O nosso querido líder agradece vocês pelo seu sacrifício por seu país, e por seu povo. Em sua honra, seus nomes serão colocados junto àqueles que estão no Long Hall.”
  “Nós estamos muito orgulhosos,” disse seu pai, colocando a mão no peito. “Todos salvem o querido líder.”
  “Todos salvem o querido líder,” respondeu o oficial do governo.
  Sua mãe concordou em silêncio e seu irmão parecia prestes a chorar de orgulho.
O oficial continuou. “Agora é a hora de apertar seus botões vermelhos. Que Deus esteja com todos vocês...”
O pai de Lauren virou para sua família e sorriu.
  “Eu vou primeiro,” ele disse, “para mostrar a vocês como é fácil...”
  Ele apertou o botão vermelho no pilar. Enquanto Lauren assistia, o rosto de seu pai ficou de um claro tom de vermelho. Uma lágrima escarlate deslizou por sua bochecha e caiu no chão branco e duro. Lauren assistiu, congelada de horror, quando sangue começou a fluir dos olhos, orelhas, nariz e boca de seu pai. O rosto dele começou a derreter. A carne deslizou dos ossos e caiu no chão. Repentinamente, sua cabeça explodiu e seu corpo sem vida estatelou-se no chão.
  Lauren começou a gritar. Sua mãe e seu irmão apertaram seus botões ao mesmo tempo. Eles começaram a derreter também, sangue escorrendo de seus olhos e orelhas, narizes e bocas. Suas cabeças explodiram e tudo ficou em silêncio.
  “Senhorita Krandall?” disse um dos oficiais do governo. “É hora de apertar o botão vermelho.”
Lauren não conseguia responder. Lá estava ela, de olhos arregalados e tremendo de medo, olhando para o botão vermelho sob seus dedos.

  “Senhorita Krandall, o Dia do Botão Vermelho é obrigatório,” ele disse numa voz monótona. “Você não tem escolha. A superpopulação está fora de controle. Parte da população precisa ser abatida. Sua família foi escolhida, assim como várias outras famílias... Isso é uma honra... Seu país precisa de você... O querido líder precisa de você... Agora aperte o botão vermelho.”
fonte: http://www.scaryforkids.com/red-button/