segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

O Amigo de Seis Semanas

Um dos piores sons deste mundo é ouvir um bocado de terra cair sobre a tampa do caixão onde está seu amigo. Após presenciarem seu colega, que em pouco tempo já tinha uma relação fraternal, descansar eternamente embaixo da terra ele partiu de mãos dadas com a mulher chorosa mais a criança. Seguiram para fora do cemitério sem dizerem uma única palavra, em respeito ao morto. Sejamos racionais: Quem nunca acreditou ou iludiu-se com alguém? Seria melhor recapitular este caso para que possamos compreender o que vale em uma amizade.


Seis semanas antes Virgílio, sem aviso prévio, sofreu um mal súbito quando seguia para o trabalho. Ele sentiu uma forte ardência no braço direito, acompanhada pela falta de fôlego, perdeu os sentidos e desabou no piso da lotada estação de metrô. Sua parada cardiorrespiratória virou atração para todos os passageiros, um bom assunto que muitos iriam expor no trabalho. Assim o corpo de Virgílio perdia suas energias vitais no meio daquelas centenas de gente aguardando o próximo trem. A alma do recém-defunto desprendera-se da carne desamparada e doente, ficando ao chão somente um corpo abatido, com coração infartado e ventrículo fibrilando.


– Nada mais pode ser feito, ele já está morto. – sussurrou o médico socorrista para o segurança da estação que estava ao seu lado, mesmo assim ele continuava procurando sinais no infartado.


– Não doutor, o senhor deve fazer uma massagem cardíaca.


– Não dá mais tempo. Ele está sem respirar por mais de dez minutos; já houve a morte do cérebro. Nem o desfibrilador resolve agora.


– Mesmo assim acho que devemos ter fé e fazer uma massagem cardíaca! – disse o segurança tentando assumir o controle do atendimento.


– O médico ainda sou eu e... – dando uma pausa para olhar toda aquela gente em volta, continuou a discutir em voz baixa com o outro ao seu lado – você é o segurança desta estação. Então afaste as pessoas, porque quero tirar o corpo deste tumulto todo.


Os dois se entreolharam numa disputa de autoridade, um conflito entre opiniões distintas. O paramédico estava preocupado com a aglomeração que diariamente agitava a estação, enquanto o segurança queria dar assistência tardia ao morto. O profissional da saúde se levantou e seguiu em direção das pessoas aglomeradas, ordenando de forma irritante e prepotente que afastassem do cadáver e entrassem no trem que se aproximava.


– Olha, ele conseguiu – disse uma moça espantada, apontando sobre o ombro do socorrista.


A população entrou em alvoroço, aplaudindo com grande euforia, olhando na direção onde estava o defunto. O sujeito que deveria resgatar aquele enfartado olhou para trás, notando que o segurança do metrô dava assistência ao moribundo que acabara de despertar dos mortos. O infartado ainda permanecia deitado no chão, mas agora estava consciente e dialogando com seu novo amigo que trabalhava de segurança, única pessoa a fazer uma massagem cardíaca nele.


Virgílio seguiu direto para o hospital mais próximo. Quando a noite chegou, ele assistia as reportagens sobre seu ataque cardíaco em todos os telejornais da TV. As câmeras de monitoramento da estação filmaram toda a ação do profissional da segurança, este estava sendo elogiado na matéria como um verdadeiro herói. Em outro canal específico uma moça era entrevistada – a mesma que apontou por sobre o ombro do socorrista – dizendo que o homem do resgate era mau profissional e todos viram ser negligente com a vida que sofria agonizante na plataforma de embarque do metrô. Os dias trilhavam durante a semana sempre se falando no mesmo assunto, de modo a tomar proporções internacionais, havia até debates calorosos nos programas televisivos da tarde, além da cobrança da opinião publica por uma explicação pela má conduta da equipe de resgate.


Em um dos quartos, no segundo andar do hospital, Virgílio estava esperançoso pois acabava de receber alta. Junto com ele estava sua linda esposa, o filhinho de cinco anos e seu mais novo amigo, o segurança Pedro. Foi Pedro quem devolveu sua vida, lhe fez massagem cárdica enquanto muitos se benziam crendo não haver mais esperança para o infartado. Todos os dias Pedro visitava Virgílio em seu leito porque agora ambos tinham uma comunhão de vida e confiança.


Quando Virgílio passou pela portaria do hospital, acompanhado de sua família mais Pedro, vários jornalistas os aguardavam do lado de fora.


– Estou retornando à minha casa com minha esposa, meu filho e junto com meu novo irmão Pedro. Eu nasci de novo, ressuscitei nos braços deste homem que devo minha vida! – Talvez fosse exagero por parte de Virgílio, mas eram palavras repletas de emoção, faladas perto dos microfones. Com lágrimas nos olhos, abraçando seu filho, esposa e também Pedro, o infartado continuou dando entrevista – Agora tenho que manter minha saúde tomando remédios, fazendo uma dieta saudável e praticar exercícios físicos... Sim, tudo está bem agora... Não guardo magoas de ninguém... Já perdoei aquele socorrista!


Tentando reestabelecer sua rotina decomposta pela doença, toda família tentava conviver com as mudanças que Virgílio faria. Sempre que ele retornava do trabalho fazia uma pausa na estação, tempo para aguardar o termino do expediente de Pedro. Chegando em casa, o infartado fazia uma leve refeição, em seguida corria pelas ruas do bairro com o colega. Pedro adorava conviver com a família de Virgílio, sempre esteve sozinho no mundo, morava em um apartamento alugado junto com um funcionário do trabalho. Em determinados dias da semana o segurança tinha folga, quando Virgílio chegava do serviço encontrava com satisfação o amigo sentado à mesa, tomando café junto com sua mulher. Sem abalar-se o infartado abraçava seu amigo, ainda grato pela nova vida.


– Já está pronto para corrida? – Perguntava o segurança.


– Claro que sim, só espera eu trocar de roupa.


– Querido você acabou de chegar, descanse um pouquinho primeiro – falava a esposa, deixando transparecer que precisava da companhia do marido também, depois completava – aquele filme que você queria assistir no cinema vai passar daqui a pouquinho na TV.


– Não posso assistir, tenho que me manter saudável. Dizia Virgílio sem preocupar-se com a carência da mulher.


Sem dar mais ouvidos, os dois saíram em maratona pela noite. Porém a corrida foi impedida porque o médico socorrista, aquele mesmo que não prestou assistência ao infartado, aguardava os dois na rua com aparência intimidadora.


– O quê está fazendo na frente da minha casa?


O sujeito com expressão de ódio no rosto saca um revolver de trás das costas, aponta para o segurança e, junto com uma grande quantidade de saliva, passa cuspir ofensas:


– Por causa deste filho da égua minha vida está arruinada! Eu fui demitido por uma alegação de incompetência... Sabe o que significa isto... seu guardinha de merda!? Que eu não tenho mais nada a perder!!!


– Calma cara, todos nós cometemos falhas naquele dia. – disse Pedro com as mãos espalmadas para seu inimigo, tentando inutilmente tranquilizá-lo e rematou – nos podemos resolver esta situação juntos, vamos hoje mesmo aos jornais, é apenas um mal-entendido que iremos resolver!


– Você não assistiu? Quando saí do hospital eu disse que tinha te perdoado. Concluiu Virgílio!


– Isto não é com você, sabe por quê? – gritava fora de controle o sujeito armado, apontando o cano para o chão ele prossegue – Porque era para você estar morto... Um defunto que ajudaria todos à sua volta!!!


– Cara isto não é certo, aquela não era a hora de Virgílio. Ele precisava ser reanimado! Falou o segurança.


– Você é mesmo um monte de bosta! Sabe quanto tempo eu estou aqui? Vigiando esta casa? Como tem coragem de dizer que eu estou errado! Toma desgraçado!!!


O assassino descarregou o tambor do revolver contra Pedro, porém Virgílio decidiu que seu herói não deveria morrer, era uma divida que possuía. Assim o pai de família avançou no meio da linha de fogo, tragando todo o aço que entrava em seu corpo. Um bucólico escudo humano defendeu seu salvador, Virgílio blindou seu amigo e desabou agonizando no meio da rua.


*****

Virgílio sobreviveu, novamente estava deitado no mesmo quarto do hospital, recuperando-se misteriosamente de outro choque contra sua vida. Em menos de um mês ele enfartou na plataforma lotada do metrô, foi desenganado por um socorrista que deveria fazer-lhe uma massagem cardíaca, teve sua vida devolvida pelo segurança Pedro e agora tinha tomado seis tiros para proteger este novo amigo. Estava sem paradeiros o criminoso que lhe feriu a tiros, desapareceu como um crápula que era.


Através da janela, notava-se a noite reinar neste lado do Globo. Virgílio abriu os olhos, reparando que o amigo estava sentado ao seu lado a dizer:


– Bem-vindo ao mundo pela terceira vez!


– Olá, tudo bem com meu herói?


– Nada disso, agora estamos quites! Eu te salvei e você empatou tudo. Só o doido que atirou em você ainda esta foragido, fugiu depois que te acertou.


– Pedro, você tem que se prevenir, eu suponho que ele possa voltar para te pegar!


– Que nada, todos os canais de televisão estão divulgando seu retrato, ele deve estar bem longe agora. – Pedro deu uma pausa para criar coragem de fazer a pergunta que já tinha ensaiado, respirou fundo e soltou – Por que você entrou no meio dos tiros? Eu sou um homem que tem quase nada para abrir mão, não tenho nenhum compromisso familiar ou missão neste mundo. Por que Virgílio você fez isto? Não pensou na sua esposa ou filho?


– Você é meu amigo...


– Não é só isso... Qualquer um sabe que outro em seu lugar jamais morreria pelo colega que conhece há pouco tempo. Por quê?


Virgílio olhou a noite que estava do lado de fora, fazendo uma leve careta de repudio, depois encarou seu amigo com afeição e disse:


– Quando você me reanimou na estação, acreditando que eu ainda tinha chances de viver, eu também lutava em outro plano. A sua ressuscitação sobre meu corpo na plataforma do metrô não era a única desavença. Eu estava ali também em outra dimensão, não queria morrer, não era minha hora. Assim, como qualquer outro mortal, eu tentava resistir perante o anjo da morte que queria me levar para o mundo dos falecidos. Só que ninguém mais conseguia vê-lo, somente eu existia contra aquele monstro em forma de gente. Enquanto eu implorava por mais alguns dias nesta carne, a morte caminhava junto com a noite e disse que trazia a solução para todos meus males, pois iria por um fim nas minhas amarguras; novamente eu lhe disse que não queria morrer ainda! O bicho olhou para meu corpo estirado no chão e lá estava você, tentando inutilmente me reanimar, foi você que de alguma forma convenceu a morte em devolver meu espírito. A morte então olhou para mim perguntando se eu desejava testar minhas resistências contra o destino de todos os mortais. Eu respondi suplicante que sim. Em seguida ela fragmentou-se na escuridão, porém antes  disse-me que caso eu sentisse medo ela retornaria para me levar instantaneamente! Eu acordei sentido uma grande comunhão contigo, igual uma ligação entre dois irmãos. Foi por isso que impedi o bandido de acertar você, porque eu temeria pela sua agonia em continuar a viver. Enquanto eu não sentir medo acredito que serei imortal, mas isto é um sarcasmo diabólico pois penso que estou sendo constantemente testado.


Pedro ouvia atônito cada palavra do outro deitado sobre a maca. Acontecimento para se duvidar, porém seu amigo falava com uma convicção veemente, além da situação não ser a propicia para mentir. Ele então olha Virgílio e diz em tom confiante:


– É difícil de acreditar, só que as evidencias estão cicatrizando na sua pele. – colocando as mãos na cabeça, maravilhado pelo discurso do amigo, Pedro levanta e completa – Cara... Muita gente não pensa desta forma, isto pode ser uma experiência pós-traumática... Mas quem sou eu para falar que tal dádiva pode ser fatídica para você!


– Será mesmo uma alucinação? É melhor não pagar pra ver. Contudo não posso ao menos ter um sonho ruim, senão caio duro.


– De uma forma ou outra isto é um milagre! Se for sério como diz então eu queria muito estar no seu lugar!!!


Três dias depois Virgílio retornou para casa, sob os holofotes da imprensa. Uma motivação o contagiava porque não estaria desamparado, seu amigo sabia seu segredo e não deixaria abalar-se. Uma definição mais especifica para amizade é a confiança, sentimento que Pedro não deveria receber já que era amante da mulher do outro. Enquanto Virgílio estava internado, aquele que dizia ser amigo seduziu sua esposa. O paramédico tentou inutilmente alertá-lo, porém a cegueira da desilusão encobria os fatos e suspeitas.


– Como matar alguém que tem parceria até com a morte? – pensava Pedro durante o almoço de ação de graça na casa do amigo, concluindo seu raciocínio de maneira traiçoeira – Tenho que tocar em seu ponto fraco!


A manhã seguinte foi a mais conclusiva, uma manhã de segunda-feira quando o infartado entrou em um dos vagões do metrô para seguir ao trabalho. Sentado distraidamente ele não reparou que o ex-funcionário do resgate acomodou-se ao seu lado. Ele jamais esperava um encontro assim, o cara que por duas vezes quis levá-lo para o cemitério o cumprimentou:


– Virgílio, precisamos conversar. – Virgílio ficou agitado ao perceber o outro no seu lado. De forma branda nas palavras o ex-paramedico quis contê-lo – Escuta o que tenho para dizer, você sabe que eu não lhe farei mal.


– O que você quer maluco? Fala logo, senão eu grito para todos quem é você.


– Rodney, meu nome é Rodney. Eu sei que estou correndo risco, não só o perigo em ser preso mais também que talvez você não possa acreditar em mim, entretanto o cara que diz ser seu amigo está tentando roubar sua família.


– Isto não é verdade! Pedro é como um irmão pra mim.


– Lembra a vez que eu quis matar Pedro e acabei acertando você? Eu passei três dias seguindo ele, acompanhando a rotina dele quando vi...


– O que você viu?


– Eu não posso dizer, você tem que voltar para casa e tirar suas próprias conclusões. – Rodney estendeu a mão e mostrou um embrulho para Virgílio, continuando – Leve isto, você sabe o que é, vai precisar e não hesite em usar.


O infartado pegou o embrulho, sentindo que era pesado e consistente devido à densidade do metal contido dentro. Virgílio olhou para o outro, tentando não abalar-se e disse:


– O que é isso? Você tem ideia do que está querendo?


Rodney olhou no fundo dos olhos de Virgílio, tentando mostrar que a comunhão dele pelo amigo não valia à pena:


– Você venera tanto aquele sujeito e não enxerga o que está a sua frente, não é? – e pressionando as mãos que agarrava o embrulho, encostando no peito de quem segurava, Rodney persistiu – Quando você passou pela estação não viu seu camarada, sabe onde ele está?


– Ele está de folga. Balbuciou Virgílio, já deixando transparecer suas duvidas.


– Volta para casa homem. Sua família está com aquele bandido!


Seguindo a contramão do fluxo que trilhava para o labor cotidiano, o infartado decide retornar para casa, tentando manter a cabeça fria e razão alinhada no autocontrole. Se bem que falar em razão para uma pessoa que morrerá quando sentir medo é bem contraditório. Realmente descobrir que está sendo traído pela esposa, junto com o melhor amigo e flagrar os dois é ato que coloca toda valentia de um homem a prova.


Virgílio entrou em casa próximo das nove horas, encontrando seu filhinho sozinho na sala assistindo televisão. O pai abraça sua criança, indagando onde estaria sua mãe. O menino apenas aponta para o quarto do casal que estava com a porta trancada. Ele deixa o menino no sofá e segue de arma em punho na direção do dormitório. Quando encostou o rosto na porta escuta nitidamente os gemidos prazerosos da sua mulher. Em uma ação de bravura, junto com as forças das pernas de corredor, Virgílio arromba a porta com dois chutes e enxerga o que era esperado. Ele deparou-se com os dois pelados sobre a cama, uma traição que fez a ferida dentro do seu coração reabrir novamente, embora agora não era uma dor cardiovascular que sentia e sim a decepção de flagrar seu precioso amor num ato de infidelidade. Virgílio mal conseguiu reprimir o que sentia, seu coração estava quebrantado...


*****


Estavam os dois adultos saindo com a criança do cemitério, homem e mulher caminhavam sem dizer uma palavra em memória ao morto. Não há som pior que ouvir o barulho oco da terra caindo sobre a tampa de um caixão. Um taxi os aguardava na saída, então Virgílio abriu a porta de trás do veículo para a mulher entrar com seu filho e seguiu para sentar ao lado do motorista.


Ninguém estava feliz naquele dia, mas havia alívio pelo pesado fardo que ambos deixaram de carregar. Virgílio foi forte para matar o colega a quem devia sua vida, só que a mesma bravura não foi capaz de ter com sua mulher. Ele temia viver sem ela, assim morreria também. Agora Virgílio tinha um propósito para sua imortalidade: Tentar fazer sua mulher feliz, dar assistência que a esposa nunca teve. Porém, quando ela ficar fraca pela velhice, não resistindo ao destino de todos os viventes e morrer, ele então temerá sua perda e será enterrado junto com sua amada.


– Obrigado Rodney! Pensou o infartado enquanto o taxi partia.


Rodney estava observando o carro sair, escondido entre as árvores do cemitério. Sobre ele recaiu a culpa pela morte de Pedro. Foi esta a versão dada em depoimento à polícia.

Fonte:http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/12/o-amigo-de-seis-semanas.html