domingo, 19 de fevereiro de 2017

Bruxaria


Palha no fogo, e ele sobe, aumenta, esquenta meus pés. Remexo e giro o líquido, no outro sentido, e as bolhas tornam-se lentas, a estourar preguiçosas. Tornam-se grossas, azuis, e índigo também é a fumaça que agora se desprende, em espirais loucas, alucinadas, deixando a visão turvada, visão que não é minha, inflando o lugar em êxtase. Uma bolha estoura, minha pele sua, tremendo de gozo pelas carícias da fumaça, ansiando as delícias cantadas em seu aroma. Mas espero, me contenho, ou outras vontades o fazem, pois já não sou eu, mas instrumento. Meu braço treme, lento, envolvido pelas finas brumas, que devagar giram o líquido, perdido. O líquido gira, e também giram meus sentidos.


Então, sem aviso, anúncio ou sinal, a fumaça muda, descolore para um negro sepulcral, escurece a sala. Tudo se apaga, as paredes, o fogo, os sons. Sou apenas eu, eu e o líquido, que gira. Já não há bolhas, mas uma camada lisa, fina, frágil qual espelho, a deslindar certeiro uma cena ao luar. Sim, vejo a Lua, a mãe, brilhando entre os prédios cinzentos, brigando com a luz dos postes um direito a iluminar. E numa viela escura, fedendo a sangue e urina – sim eu sinto – vejo uma menina, miúda, vítima do desejo do homem que a segura, que rasga suas vestes e procura seu corpo. Sinto o gosto de sangue na boca da menina, vejo o sangue escorrer de seu queixo. Ela grita, não há som mas a ouço, ela grita, mas só eu a ouço. Os braços fortes lutam contra o corpo frágil, ela chora, ele ri, animal afoito, ri e se esfrega nojento. As sombras a minha volta se agitam – ou seriam as brumas? – e sinto o cheiro de morte. Morte. A menina grita, o homem ri, ri satisfeito e finalmente a deixa. A garota morre, e a cena treme, turva e se desfaz, o passado é frágil na superfície de um caldeirão. Agito o líquido, ansiosa. E sinto a angústia que a menina deve ter vivido. O líquido gira, e também giram meus sentidos.

A sala escurece mais, se é possível. Vejo minha mão erguer o punhal, terrível, e estendo o outro braço. A pele chora o sangue que derrama, avermelhando o líquido. A dor é grande, mas não é sequer um traço, da que está por vir. O líquido desprende rubra fumaça, que inflama instintos assassinos, instintos tentadores, mas que renego. Ouço a bruma exigir mais sangue, meu corpo sua de raiva e ódio, minha mão ferida treme por vingança. Ouço a bruma que dança, mas nada faço, senhora que já não sou de mim. Enfaixo o braço ferido, e vejo nova cena na superfície carmesim, e na cena vejo um homem, o mesmo de antes, dormindo tranqüilo seu sono impune. Vejo minha mão – já não a minha – buscar um pequeno estojo num bolso do vestido. Sinto uma tontura. Dentro do estojo, um fio de cabelo, da mesma cor escura dos cabelos da menina, morta há sete dias, naquela noite fria, nas sombras da rua. O fio brilha na fumaça rubra, o cabelo da vítima. E dói meu braço. A dor é grande, mas não é sequer um traço, da que está por vir. O homem contrai o rosto, como se esperasse. E jogo o fio na cena rubra, e o líquido borbulha, e borbulha e borbulha. Mexo o caldeirão. Ouço enfim, claro, um grito, de dor acometido. O líquido gira, e também giram meus sentidos.

Com força eu giro, e a cada volta o grito aumenta, a dor aumenta, o desespero vem. Sinto o medo, o medo dele, o medo que sente, eu sinto também. Agora sou ele, ele eu, sinto os lençóis ásperos de sua cama, e o suor frio de seu corpo. O grito acaba, morre em minha garganta, e acordo assustada, tremendo ainda o sonho que tive. Ouço, ouço claro, um barulho à minha janela, e vejo a Lua, e sinto medo. Então, no vidro refletido, vejo meu rosto, o rosto dele, o pânico crescendo. Pois vejo, no reflexo, uma sombra se erguendo, atrás de mim, a sombra de uma menina, pálida. Ela me olha, me odeia, e eu sequer tenho coragem de voltar meu rosto. É ela, descubro, é ela, a menina da noite escura! A menina que feri, que invadi e abandonei, é ela, como pode? É ela! Eu a vejo andar, no reflexo da janela, devagar, sair das sombras à passos leves – não ouço passos, mas o roçar de tecido. Ela voltou, voltou pelo crime cometido, veio cobrar o sangue que lhe derramei. Sinto o colchão tornar-se morno, molhando minhas pernas e o lençol, encharcando a cama com urina. Ela estende o braço, vejo no reflexo, em minha direção. Desesperada, eu grito: Não!, e  me viro finalmente. A dor é tremenda, o desespero, maior! Vejo o terror nunca antes visto, e ouço o grito que grito, terrível, perfurando meus ouvidos. E vejo enfim minhas mãos, minhas mãos que giram, giram o líquido, de tom verde agora, como era no início. E vejo as brumas se dispersarem, como se ali nunca estivessem, deixando a sala, o caldeirão, a mim. Sinto o cansaço pelo encantamento proferido, volto a ser eu, eu mesma, eu bruxa. E vejo minha mão que teima em girar o caldeirão.  A saudade da filha é menor, o culpado foi punido. O líquido gira, e ainda giram meus sentidos.

Fonte: http://contosdelitfan.blogspot.com.br

Brincando com o Desconhecido


Sexta-feira, 23h50min. Acenderam algumas velas vermelhas pelos cantos da sala, sete amigos sentados formando um círculo e, no centro deles, uma tábua contendo todos os algarismos, todos os números de 0 a 9, um SIM e um NÃO. Temerosos, mas excitados com o que poderia acontecer, olham um na face do outro. Com um sinal de concordância dado por Michel, o mais velho entre eles, Rafael colocou sua mão sobre o copo virgem que se encontrava com a boca para baixo sobre a tábua: 


   -Tem alguém aí? Tem alguém aí?

   - Nada, nenhum movimento do copo, apenas uma tremedeira causada pela mão do jovem Rafael. Todos olhavam em volta, sentindo um leve calafrio que lhe percorriam a espinha. Um leve vento frio entrou janela adentro. Núbia, a única garota do grupo, pediu para pararem, mas foi alvo das chacotas de Michel:

   - Sabia que não deveríamos trazer uma mulher com a gente!

   - Está com medinho?

   - Corre para debaixo da saia da mamãe e deixe que os homens continuem aqui.

   Núbia abaixou sua cabeça, encobrindo a vergonha, mas não se levantou. Na verdade, todos ali estavam com medo, mas nada diziam temerante às gozações de Michel. Sob a ordem dele, Rafael voltou a pôr a mão sobre o copo e novamente questionar:

   - Tem alguém aí? Tem alguém aí?

   A janela bate quase derrubando a parede; um vento forte e gélido corre por entre a sala como se em círculos; as luzes piscam. Núbia foi tomada por um desespero. Chorava e, aos gritos, pedia para pararem com aquilo, mas não foi ouvida. Rafael, também amedrontado, tentou tirar a mão do copo, mas foi impedido pelas mãos de Michel:

   - Vai, continua! Continua!

   Núbia se levantou aos prantos e correu para a cozinha. Seu pavor estava totalmente fora de controle. Rafael, ainda obedecendo ao amigo, continuou:

   - Tem alguém aí?

   Antes que perguntasse novamente, o copo se moveu: SIM. Todos ficaram paralisados. As mãos trêmulas de Rafael já não conseguiam mais segurar o copo. Todos os seis se juntaram ainda mais, um se se encostando ao outro, espremidos em seu medo, mas atentos à tábua. Rafael, em soluços, voltou novamente a questionar:

   - Quem é você? Quem é você?

   O copo voltou a mexer indo em direção aos algarismos. Tomados pelo medo e pela curiosidade, eles fixaram os olhos na tábua, enquanto o copo continuava a se mover: E, U, P, E, D, I, P, A, R, A, P, A, R, A, R, E, M, Michel repetiu a frase soletrada:

   - Eu pedi para pararem...

   Todos olharam em direção à cozinha, para onde Núbia teria corrido, mas se depararam com a jovem em pé atrás deles, segurando uma faca de cozinha nas mãos. Com um só golpe, cortou a garganta de Michel, jorrando sangue em todos os outros. Rafael se levantou em direção da amiga tentando segurá-la, mas a força da jovem, naquele momento, era incrível. Atirou Rafael na parede e lhe estocou a faca em sua barriga. Os outros se agruparam no canto da sala, aos berros. Queriam correr pra fora, mas Núbia estava posicionada na única passagem possível.

    Os berros que vinham da casa chamaram a atenção dos vizinhos. Um deles, mais do que depressa, chamou a polícia, que chegaram 30 minutos depois. Quando já não se ouvia mais nada vindo de dentro da casa, uma multidão se formou defronte à residência. Com o aparecimento da polícia, todos queriam saber o que aconteceu. Um dos policiais abriu a porta da sala com os pés. Deparou-se com Núbia sentada no sofá, coberta por pedaços de corpos e sangue, como se em estado de catatonia apenas repetia a frase:

    - Eu pedi para eles pararem! Eu pedi para eles pararem! Eu pedi...

Fonte: http://lercontosdeterror.blogspot.com.br

Asfixia

Começou aos poucos, quase sem ser notado. As crianças foram as primeiras a sentir os efeitos, parando no meio das brincadeiras de pega-pega, esquecendo o futebol pela metade, preferindo montar quebra-cabeças à correria. Depois o boato tomou as conversas em bares, as janelas leva-e-traz das faladeiras, os programas de entrevistas, até virar notícia oficial, grave em seu chamado de cadeia nacional, transmitida a cada povo do planeta por seu próprio governante.

Não se sabia a origem do fenômeno. Nos botecos, diziam que a Terra atravessava uma região do espaço ocupada por elementos de anti-matéria que sugavam a atmosfera. As tevês culpavam os raios solares, a camada de ozônio, o El Niño. Saltando de janela em janela, entre fofocas e ladainhas, um versículo do Apocalipse ecoava: “e o sétimo anjo derramou sua taça pelos ares”. Não havia consenso, mas o fato é que a Terra, como um balão cheio de minúsculos furos, vazava gases para o cosmos.

O mundo estava perdendo ar.

Há menos de um mês, João se divertia com as piadas de narigudos fungando porções extras de oxigênio, ou dava opiniões em rodas animadas sobre qual era a quantidade mínima do gás precioso para que o homem pudesse sobreviver fazendo sexo todo dia. Havia sim as piadas, mas João reconhecia, modulado nos timbres das vozes, escondido permeando risos, o inconfundível tom do medo.

A cada dia o ar se tornava mais rarefeito, e não se descobria a causa.

Com o corpo afundado numa cadeira na varanda de seu chalé à beira-mar, comprado com os anos de salário como mergulhador, João refletia: havia trabalhado em plataformas de petróleo, consertando tubos e juntas a grandes profundidades. Aposentara-se imaginando uma velhice tranquila, apesar de solitária, já que as longas estadas em alto-mar não conciliavam com uma esposa fiel. Revivia pelas imagens em sua memória as centenas de mergulhos realizados na juventude. Relembrava os rostos que vira atrás das máscaras quando, mal calculado, o oxigênio nos cilindros subitamente chegava ao fim ainda nas profundezas. Vira olhos arregalados, primeiro de espanto, depois de terror. Vira as mãos cegas, desesperadas, procurando ar onde não havia, tentando agarrar o companheiro e arrancar de sua boca o regulador, para então se cravarem na própria garganta e aceitarem o destino. Vira-os flutuarem sem vida, asfixiados. Ele mesmo já estivera em situação semelhante, os pulmões colados, a cabeça explodindo, o coração desorientado. Só se salvara por estar mais perto da superfície, onde outro mergulhador pôde compartilhar seu gás; lá embaixo a reserva seria insuficiente, e tentar salvar um amigo seria condenar dois à morte.

João notou que as crianças haviam desaparecido e, com elas, as brincadeiras. Ninguém se apressava mais; não havia fôlego. A rua, antes alegre e barulhenta, agora estava deserta. Não era apenas a falta da gritaria da molecada que deixava a rua quieta. Cachorros já não latiam nem corriam atrás de gatos, estes também desaparecidos. Aves não voavam. O vento, como se precisasse de oxigênio para soprar, tampouco zunia. Os carros e tudo que pudesse poluir a atmosfera vaporosa foram proibidos mundialmente, e o descumprimento desses e outros decretos, sob aplicação marcial, eram punidos com execução sumária. João estava com medo. Não gostava daquele silêncio; fazia-o se lembrar da mudez dos abismos oceânicos.

Levantou-se lentamente, à maneira dos anciãos, e foi à cozinha. Preparou um copo de leite frio e bolachas. Há dois dias o governo também proibira o fogo. Qualquer atividade que se servia da combustão estava suspensa. Os alimentos eram consumidos crus. João não via problemas nisso; preocupava-o mais o momento em que, ou por falta de energia nas máquinas ou pela insuficiência da energia humana, a comida começasse a escassear.

        Voltou à varanda, apoiando-se nas paredes, fatigado e zonzo. Impossibilitado de manter-se em pé, jogou-se na cadeira e ligou o rádio, observando o peito subir e descer apenas levemente, como se respirasse pela metade. As transmissões eram raras. Somente os informes do governo cumpriam com a pontualidade, impondo novas sanções ou trazendo notícias da asfixia global. João tinha esperanças de ouvir que o fenômeno era passageiro, que fora descoberta a causa do flagelo, o motivo de a Terra estar se esvaziando de oxigênio. Mas nada; somente notas sombrias: mortes, suicídios, mais um mercado saqueado, famílias presas em grandes edifícios sem ter para onde ir, um pai desesperado por alimentar os filhos, errante após o toque de recolher, fuzilado pela Guarda Nacional. Ao menos ali, no interior, tinham um pouco de comida para dividir; mas o ar – o precioso ar – faltava a todos.

        João foi dormir mais cedo. Sonhou que nadava no fundo do mar, sem equipamentos, mas respirava normalmente e se movia ligeiro como os golfinhos. Apesar da escuridão, podia ver os peixes, os corais, abismos e... Luzes! Não as podia identificar, apenas que se aproximavam. Luzes. Aproximando-se. O medo espetou-o como farpa sob as unhas: aquelas luzes eram seus companheiros mergulhadores, mortos e perdidos na imensidão oceânica, as cavidades oculares brilhando como faróis. Cercaram-no e o agarraram pelo pescoço, as mãos mortas se fechando e o estrangulando. João sentiu os olhos arregalarem como um afogado e o ar sumiu de seus pulmões. Acordou com o susto, no breu do quarto, arfando, ainda sem fôlego. Custou a perceber que o sonho se fora, pois também se fora o ar, e ali em sua cama parecia que nadava em apnéia.

Levantou-se para um copo de água. Da janela da cozinha, ouviu alguém chorar. Alegrou-se com aquele som. Mesmo sendo um lamento, era produzido por alguém! Não estava só, afinal! Vinha da casa ao lado. O choro era fraco, de criança. Ouviu gritos de uma mulher; provavelmente a mãe. Pedia socorro, parava, arqueava, pedia de novo. Ninguém respondia.

João vestiu uma camisa, cambaleou pelo quintal e bateu à porta. Lá dentro a mãe se desesperava em ver a criança no berço, rosto azulado, tomada por convulsões. A pobre criatura nascera asmática e o ar lhe fazia mais falta. O pai implorava por ajuda.

O ex-mergulhador possuía um cilindro de oxigênio em casa. Pegou-o e o levou para a criança. Ensinou o uso e, quando disse que ia embora, viu nos olhos da mãe a mesma agonia dos asfixiados; aquela mulher seria capaz de matar pelo cilindro. Mas João não pensava em levar equipamento de volta. Apenas aconselhou parcimônia, pois não havia outros iguais àquele. Voltou se arrastando, seguido por pensamentos desoladores. Em breve, todos estariam da cor do bebê, afogados em plena terra firme.

Os dias amanheciam cada vez mais abafados. Os poucos que se aventuravam na rua não mais andavam, arrastavam-se de quatro. João, de sua cadeira, ria da ironia da vida. A raça humana, que se destacara na evolução por andar sobre duas pernas, inclinava-se e devolvia as mãos ao solo. Movia-se como bichos.

A dor nos pulmões era cruciante, a cabeça girava. Não era como no fundo do mar, que o ar faltava de uma só vez. Ali a coisa ia aos poucos. A morte demorava, como se precisasse de oxigênio para sua manejar sua foice, mas ele sabia que cedo ou tarde ela chegaria. Vez ou outra se ouvia um estampido. Alguém, no mais profundo desespero, antecipava o fim. Pior quando ouvia quatro, cinco tiros: uma família inteira se fora!

João não tinha uma arma.

As transmissões haviam cessado completamente. Nenhuma voz, nenhuma notícia, nada de esperança. O bebê do vizinho estava morto, assim como a mãe. Ninguém mais enterrava seus defuntos. O pai saíra rastejando pela rua e não voltara mais. Os homens agora se moviam sobre o ventre, como répteis. Despediam-se da vida com o rosto ao chão.

João caiu da cadeira, arrastou-se pela rua passando por cima de aves mortas. Rolou o barranco, tossindo, vomitando com esforço, quase desfalecendo. Fincou os dedos na areia da praia, puxando o corpo. Sorriu quando a primeira onda molhou seu rosto. Olhou para os lados e viu cadáveres; o caminho até o mar interrompido pela asfixia. A humanidade, como amante traída pelos ares que a sequestrara das águas, tateava o retorno ao berço Paleozóico.

Continuou a se arrastar até que as ondas lhe submergissem a cabeça.

João engoliu o primeiro gole, o segundo, o terceiro, enquanto procurava pelos olhos brilhantes dos afogados e pelas mãos que fechariam de vez sua garganta.

Fonte: contosdelitfan.blogspot.com

Eu lhes devo uma explicação

Então, a minha falta de internet virou um cisto pilonidal, que virou uma cirurgia com vinte dias de repouso e só a pouco tempo atrás que eu consegui levantar da cama. Peço desculpas, vamos voltar ao que interessa.