A Guilhotina
Pio Neto despertou com a impressão de uma torquês espremendo os miolos, um sentimento de urgência indefinível lhe abarcava o peito, sentia a necessidade de encontrar uma perspectiva para a vida que escorreria imutável e desolada nas próximas vinte e quatro horas – durante toda a eternidade. Permeando a irrealidade estabelecida entre o sono e o despertar, a angústia era tão intensa que teve ímpetos de gritar como se o som de sua voz fosse uma lança de libertação exigindo arremesso.
O dia nascia, anunciado pelos pardais na árvore da calçada, uma maldita árvore que despejava camadas de flores na primavera, dilúvio de folhas no outono, torrentes de bagas inúteis e estalantes no verão e, no inverno, apresentava a tristeza de cão sarnento. Veio-lhe aos ouvidos batidas fortes numa porta e em seguida a voz possante, autoritária, do pai:
– Eleonora, quer sair já desse banheiro!
– Já vou, que diabo!
– Saia já! Vou perder o avião!
Mentalmente Pio Neto reproduziu a cena: seu pai, o influente deputado, grande como hipopótamo, a andar nervoso à frente do banheiro, as cuecas quase escondidas pela imensa barriga, a toalha jogada displicentemente sobre um dos ombros peludos. Por que o velho não se dirigia a outro banheiro? Na casa havia vários.
Minutos após a porta abriu-se e – splash! – o tapa ribombou seco pelo ambiente e quase no mesmo instante – splash! – veio a réplica. Pio encolheu-se na cama, os ouvidos queimando com as altercações dos dois, os palavrões, as mágoas, as acusações, o ódio explícito. Aquela violência o punha doente, fraco, desprotegido. Uma violência que muitas vezes extrapolava aquele universo dual e acabava sobrando para si – e tal coisa Pio sabia desde que se conhecia por gente.
Só muito tempo depois, quando o pai saiu junto com a mãe, ambos no mesmo carro – ela o levaria ao aeroporto e em seguida iria para sua loja, um antiquário – é que Pio Neto teve forças para mover-se. Sentou-se na borda da cama e com mãos trêmulas alisou os cabelos de um castanho avermelhado, cortado à escovinha. Esfregou o rosto, fervilhando de espinhas, onde a barba primeva atenuava as crateras e relevos furunculares – uma barba fulva e estacionada no mesmo ponto de crescimento há quase um ano. Como em todas as manhãs, acudiu-lhe o conselho lido numa revista pseudocientífica para que a raspasse diariamente, só assim os pêlos tonificar-se-iam. Mas, e as espinhas? Se metesse um aparelho de barbear nas faces, em pouco seu rosto se transformaria numa pasta sangrenta.
O corpo de Pio Neto içou-se da cama. De pé, apoiou as mãos à cintura e fez um pequeno exercício pendular – doíam-lhe as pernas, os braços e, sobretudo, a região do pescoço. Sabia que todas aquelas sensações estavam relacionadas ao sonho que tivera no decorrer da madrugada – um sonho repetitivo que jamais era capaz de reconstituir. Calçou os chinelos, ali, sobre o tapete felpudo e, vacilante como um junco em meio a ventanias, dirigiu-se ao banheiro. Quando ia arriar as calças do pijama, notou uma correição, um batalhão de formigas negras, cabeçudas, surgindo da fresta dum cantinho junto à banheira – um orifício minúsculo, do tamanho de um grão de ervilha. O batalhão cruzava toda a parede, subia no armarinho de Eleonora com seus produtos de beleza e higiene pessoal, infiltrava-se pior detrás do espelho e perdia-se em seus recônditos.
Tomado pela curiosidade, resolveu investigar o fenômeno. Abriu o armarinho e viu que a correição alojava-se numa caixa onde, presumivelmente, deveria haver uma escova para cabelos. Retirou a caixa e despejou o conteúdo na cuba da pia. Ao invés da escova caiu um crucifixo enorme, de prata lavrada. A mãe, ele sabia, era uma mulher que se apegava à fé porque não conseguia dominar seus demônios íntimos – o que ela precisava era de um psiquiatra, não de padres, sentenciou de si para si. Com vago sentimento de piedade, Pio Neto recolocou tudo de volta ao armarinho.
Pio Neto banhou-se; no quarto vestiu uma calça de brim, uma camiseta branca. Na cozinha preparou no micro-ondas uma xícara de chá, desses de saquinho, que tomou acompanhado de uma fatia de queijo. Pegou uma pêra no refrigerador e foi comê-la lá fora, sentado na guia da calçada. O inverno ainda não terminara, mas o vento matutino e o sol cálido e excessivamente brilhante eram de primavera. Notou que alguém estava de mudança para a casa vizinha – homens com uniforme de uma empresa transportadora retiravam móveis do caminhão: uns baús misteriosos, uma cama de ferro enorme, um guarda-roupa monstruoso envernizado de negro e, pelo jeito, de madeira maciça, dado ao esforço que faziam para carregá-lo. Uns móveis antigos, remotos, seculares.
Anteriormente naquela casa residiam os seus avós maternos – o velhinho morrera e no dia seguinte ao enterro Eleonora metera a mãe num asilo e no quintal da residência plantou uma placa de Aluga-se.
Da cabina do caminhão saltou uma mulher vestida de negro, um traje absurdo, mas a Pio Neto vagamente reconhecível: um chapéu emplumado, o vestido longo todo em veludo e rendas, tão armado que ele interrogou-se sobre como tudo aquilo coubera na boleia do veículo – o negror era faiscante. A mulher, vendo-o, acenou com a mão sem um sorriso nos olhos ou boca. O rosto era inacreditavelmente pálido e de supetão um calafrio percorreu a espinha dorsal de Pio Neto: Deus, aquela era a mulher que aparecia em seu sonhos obscuro que vinha tendo nas últimas noites!
No sonho ele, Pio Neto, estava ali mesmo, no quarto, envolto em penumbra – pela fresta da porta entreaberta filtrava a luz que na cozinha devia ser feérica. Com a luz, vinham as vozes ásperas de seus pais na eterna discussão surgida dos assuntos os mais triviais. Trêmulo, Pio Neto sabia que aquela violência acabaria convergindo para si. Então a porta era totalmente aberta com estrépito e seu pai, gordo como um capado, e sua mãe, de magreza histérica, apontavam-no em muda e acusação. Pio Neto conseguia fugir do quarto, alcançava o quintal, a rua. Uma chuva súbita começava a cair, o vento oscilava furiosamente as árvores – abocanhava o mundo. Era preciso proteger-se do tempo feroz, dos pais raivosos, de si mesmo. Dirigia-se à casa dos avós, penetrava por um alçapão aos fundos e que dava para o porão. Ali, no porão, o passatempo do avô: a coleção de objetos relacionados a Maria Antonieta, rainha de França: relógios, talheres, algumas cadeiras, sapatos, perucas, anéis, tiaras, fivelas, cintos, telas de pintura – no centro do porão, uma réplica da guilhotina. Pio Neto, tiritando de frio, encolhia-se num canto e logo surgia o avô, transcendental, sorrindo-lhe com doce e aconchegante ternura.
– Quer vir morar comigo? – perguntava o ancião.
– Quero sim, vovô – respondia Pio Neto, a voz ungida de felicidade e agradecimento. O avô então apontava a guilhotina – ao lado do instrumento de execução postava-se a mulher de negro. A soberana Maria Antonieta fazia um gesto convidativo e para o lado dela Pio Neto se encaminhava, determinado. Nesse preciso momento, acordava.
Eleonora chegou para o almoço por volta do meio-dia, ligou a um restaurante pedindo marmitex e trancou-se no quarto. Não tinham empregadas, exceto a mulher que aparecia três vezes por semana para a limpeza geral, cobrando diária. Empregadas fixas não ficavam nem duas semanas na casa, incompatibilizadas com o gênio de Eleonora. A última estava movendo ação criminal contra os patrões – fora sadicamente agredida por Eleonora, e como prova da violência trazia no busto a marca de quatro furos de um garfo.
– Para quem você alugou a casa do vovô? – indagou Pio Neto. Eleonora ergueu uns olhos interrogativos.
– Minha casa, você quer dizer. E quem falou que a casa foi alugada? – como a voz dela estava prenhe de acidez, Pio Neto respondeu baixinho:
– Eu vi a mudança.
Eleonora sorriu e, sarcástica:
– Viu? Ora, meu rapaz, você não tem mais idade para ficar criando fantasias.
– Eu vi – teimou Pio Neto.
– Viu porra nenhuma.
– Se eu disse que vi, foi porque vi.
Eleonora perdeu a paciência. Jogou os talheres sobre a comida e levantou-se. Foi ao quarto. Em dois minutos estava de volta, um molho de chaves na mão.
– Então vamos verificar essa mudança, seu retardado.
A mãe tinha razão. Além de um gasto chinelo esquecido num canto e das brancas teias de aranha nos ângulos das paredes – a casa estava fechada há dois anos – só o silêncio persistia nos aposentos invadidos pelas sombras. Eleonora esbofeteou o garoto e deixou o local, furiosa. Pio Neto pegou no chão o chinelo, com delicadeza limpou-o do pó e levou-o ao nariz, sentindo o cheiro dos pés do avô, um odor que lhe lembrava os córregos barrentos da fazenda onde iam pescar bagres e lambaris. Resolveu visitar o porão. Dirigiu-se ao quarto que fora de despejos e desceu pela escadinha, pressionou o interruptor de luz na parede e a forte claridade expôs aos seus olhos a desolação do ambiente. Eleonora havia levado para o seu antiquário a preciosa coleção do velho – mas a guilhotina continuava, solene e inquisitiva, imperando no centro do vasto cômodo. Seu avô sempre gostara de marcenaria e aquela guilhotina, construída por ele ali mesmo, era um colosso artístico. Para desmontá-la seria preciso alguém especializado – tantos encaixes, pinos, parafusos, arruelas – e Eleonora, talvez por inércia, foi adiando sua remoção e por fim dela acabara se esquecendo.
Pio Neto caminhou para o centro do porão e pôs-se a acariciar a guilhotina, suas colunas de sustentação. Riu saudosamente para si mesmo ao tocar a longa corda que liberava a grossa lâmina de aço cujo fio agudíssimo continuava rebrilhando. Embalado por nostálgicas lembranças do avô, Pio Neto vasculhou o ambiente com o olhar, a cata de outros detalhes memoriais. A um canto viu a velha manta de lã – a cama do cão Carnaval. Foi sentar-se onde o boxer do avô costumava dormir, lembrando-se do dia em que o velho surgira com o cachorro, um bicho miseravelmente magro e sarnento. A avó, odiando todo e qualquer animal doméstico, fizera um escarcéu monumental. Então, para que pudesse dividir o porão com o companheiro, que em pouco tempo ganhou pelugem brilhante e peso acima do normal, o avô fizera uma escadinha ligando o cômodo subterrâneo ao jardim através de um alçapão – o alçapão atualmente estava com a portinhola apodrecida. Com a morte do avô, fulminado por um ataque cardíaco, o cão não teve melhor sorte. Eleonora enterrou o pai, jogou a mãe num asilo e mandou um veterinário muito filho da mãe sacrificar o animal. Pio Neto a tudo assistira incapaz de um gesto de revolta, um grito de desespero – só teve lágrimas por sua irremediável covardia perante aquelas ações tão desumanas. Por que não brigara para que, ao menos, enviassem o bicho para a fazenda?
Pio Neto já estava a um bom tempo encolhido naquele canto quando começou a ouvir sons lamentosos, um cão gania, velhos choravam, crianças gritavam. Tapou os ouvidos com as mãos, encolheu-se ainda mais e começou a chorar baixinho.
Às dez da noite Pio Neto chegou à conclusão de que sua mãe não viria jantar em casa. Abriu o refrigerador: ali, um pedaço de queijo, verduras, legumes – só. Foi ao quarto de Eleonora em busca de algum dinheiro para um lanche qualquer. Encontrou no porta-jóias sobre a penteadeira alguns trocados – mas onde estavam os brincos de diamante, os anéis de variadas pedras preciosas, o colar de rubis e esmeraldas, as pulseiras, o reloginho Cartier de ouro cravejado de brilhantes?
Se bem que intrigado com o desaparecimento de tais preciosidades, achou que não tinha motivos para maiores preocupações: a mãe certamente as guardara no cofrinho ali na parede, sob um pequeno e autêntico quadro de Guignard – não lhe chamou a atenção o fato de, no lugar da tela, haver agora a foto emoldurada de Eleonora e o deputado, ele vestindo fraque, ela com o vestido de noiva.
Na lanchonete pediu pedaços de pizza e guaraná. Enquanto esperava o serviço, ficou a examinar o local e foi assim que deu com os olhos no artista plástico Antônio Palmeira, um mulato forte que, sabia Pio Neto, fora substituído nos lençóis de Eleonora pelo poeta José Petrarca – Pio Neto não compreendia o fascínio da mãe por pessoas assim: jovens dizendo-se artistas e inexoravelmente fadados ao fracasso. Palmeira, sozinho numa mesa e tendo à frente um copinho de cachaça e uma garrafa de cerveja, fez-lhe sinal, solicitando companhia.
Só depois de ver Pio Neto acabar de comer a pizza e tomar o guaraná, é que Palmeira deixou de falar de si mesmo e do futuro majestoso que o aguardava para dar vazão à mágoa.
– A vaca da sua mãe finalmente fez a maior besteira da vida... – E ante o olhar perplexo de Pio Neto, exclamou: – Vai dizer que não sabe?
Pio Neto apenas balançou a cabeça, não, não sabia de nada.
– Mas que vagabunda! – indignou-se Palmeira, bebadamente. – A cadela nem deixou um bilhete para o filho! Pois eu lhe digo, garoto: ela deu no pé com o Petrarca, o poetinha de merda. Foi embora, sumiu, escafedeu-se!
Pediu um conhaque à garçonete.
– Politicamente, seu pai vai se foder. Se pouca gente sabia que ele era um corno manso, agora a coisa vai sair nos jornais, a merda vai feder. Eu, pelo menos, espero que assim aconteça, torço feito um desgraçado. Vem cá, garoto, ela tem mesmo toda aquela dinheirama que arrota? Porque, é o que digo, o poetinha não tem onde cair morto. Tem fiado em todos os botecos da cidade... Vai moer toda a grana da ordinária e depois dar um solene pontapé naquele traseiro de tábua. É o que digo: a biscate da sua mãe se ferrou...
Um relâmpago riscou o céu, seguido dos trovões.
– Que tempo mais cagado – disse Palmeira –, durante o dia um sol de assar miolos, de noite esse vômito da natureza. Aliás, tudo isso tem a ver com meu estado de espírito... Porra, eu gostava demais da prostituta da sua mãe, garoto... – Súbito, começou a chorar. Chorou por uns dois minutos e em seguida limpou as lágrimas com a barra da camisa. – Eu estou bêbado, garoto, não tenha nojo de mim. Acho que já bebi mais de um litro de conhaque, não sei quantas pingas, dúzias de cerveja. Daqui a pouco o pessoal dessa espelunca vai ter que me arranjar um táxi, ora, eles já estão acostumados, regalias de freguês especial...
Pio Neto levantou-se. O artista plástico olhou-o, pela primeira vez tomando consciência do drama a desenrolar-se naquele cérebro juvenil. Quis dizer alguma coisa reconfortante, chegou a grunhir um lamento ininteligível, depois, com um sorriso compassivo, acenou um desolado adeus.
Assim que pôs os pés na calçada, o dilúvio começou.
A chuva estava tão forte, tão gélida, que o mundo era apenas uma espessa mortalha branca. O vento uivava e as árvores estalavam, um e outro galho eram arrancados e iam de roldão à enxurrada com mais de palmo de altura, fazendo rio das ruas. Uma mão forte segurou o braço de Pio Neto e arrastou-o para baixo de uma marquise de cimento armado de uma farmácia.
– Que faz no meio desse temporal, menino? – perguntou o guarda-noturno, embrulhado em sua capa de chuva. De repente lembrou-se de que por certo Pio Neto já deveria estar sabendo da fuga da mãe com o poeta. Acabrunhou-se.
– A vida é assim mesmo, garoto. Talvez aqueles dois a esta hora já estejam arrependidos. O Petrarca não vai aguentar sua mãe, pode ter certeza. Como ela é geniosa! – Calou-se, consciente de estar falando um monte de besteiras. Deu um tapinha nas costas de Pio Neto, e ordenou: – Vá, menino, vá para casa, toma um banho quente e se enfie debaixo das cobertas. Tudo vai acabar bem, você vai ver...
Mergulhado de novo no aguaceiro, Pio Neto aproximou-se da casa dos avós. Saltou o muro, deu a volta na residência e, aos fundos, ergueu a tampa apodrecida do alçapão e penetrou no porão. Dirigiu-se ao interruptor na parede e acendeu a luz.
– Quer morar comigo? – indagou o avô.
– Sim – disse Pio Neto. E determinado caminhou para o estrado, enfiou a cabeça na abertura entre as balizas do aparelho de execução. A rainha Maria Antonieta surgiu de repente a seu lado, suavemente tomou-lhe a mão e a conduziu para a corda que destravava a lâmina da guilhotina.
O dia nascia, anunciado pelos pardais na árvore da calçada, uma maldita árvore que despejava camadas de flores na primavera, dilúvio de folhas no outono, torrentes de bagas inúteis e estalantes no verão e, no inverno, apresentava a tristeza de cão sarnento. Veio-lhe aos ouvidos batidas fortes numa porta e em seguida a voz possante, autoritária, do pai:
– Eleonora, quer sair já desse banheiro!
– Já vou, que diabo!
– Saia já! Vou perder o avião!
Mentalmente Pio Neto reproduziu a cena: seu pai, o influente deputado, grande como hipopótamo, a andar nervoso à frente do banheiro, as cuecas quase escondidas pela imensa barriga, a toalha jogada displicentemente sobre um dos ombros peludos. Por que o velho não se dirigia a outro banheiro? Na casa havia vários.
Minutos após a porta abriu-se e – splash! – o tapa ribombou seco pelo ambiente e quase no mesmo instante – splash! – veio a réplica. Pio encolheu-se na cama, os ouvidos queimando com as altercações dos dois, os palavrões, as mágoas, as acusações, o ódio explícito. Aquela violência o punha doente, fraco, desprotegido. Uma violência que muitas vezes extrapolava aquele universo dual e acabava sobrando para si – e tal coisa Pio sabia desde que se conhecia por gente.
Só muito tempo depois, quando o pai saiu junto com a mãe, ambos no mesmo carro – ela o levaria ao aeroporto e em seguida iria para sua loja, um antiquário – é que Pio Neto teve forças para mover-se. Sentou-se na borda da cama e com mãos trêmulas alisou os cabelos de um castanho avermelhado, cortado à escovinha. Esfregou o rosto, fervilhando de espinhas, onde a barba primeva atenuava as crateras e relevos furunculares – uma barba fulva e estacionada no mesmo ponto de crescimento há quase um ano. Como em todas as manhãs, acudiu-lhe o conselho lido numa revista pseudocientífica para que a raspasse diariamente, só assim os pêlos tonificar-se-iam. Mas, e as espinhas? Se metesse um aparelho de barbear nas faces, em pouco seu rosto se transformaria numa pasta sangrenta.
O corpo de Pio Neto içou-se da cama. De pé, apoiou as mãos à cintura e fez um pequeno exercício pendular – doíam-lhe as pernas, os braços e, sobretudo, a região do pescoço. Sabia que todas aquelas sensações estavam relacionadas ao sonho que tivera no decorrer da madrugada – um sonho repetitivo que jamais era capaz de reconstituir. Calçou os chinelos, ali, sobre o tapete felpudo e, vacilante como um junco em meio a ventanias, dirigiu-se ao banheiro. Quando ia arriar as calças do pijama, notou uma correição, um batalhão de formigas negras, cabeçudas, surgindo da fresta dum cantinho junto à banheira – um orifício minúsculo, do tamanho de um grão de ervilha. O batalhão cruzava toda a parede, subia no armarinho de Eleonora com seus produtos de beleza e higiene pessoal, infiltrava-se pior detrás do espelho e perdia-se em seus recônditos.
Tomado pela curiosidade, resolveu investigar o fenômeno. Abriu o armarinho e viu que a correição alojava-se numa caixa onde, presumivelmente, deveria haver uma escova para cabelos. Retirou a caixa e despejou o conteúdo na cuba da pia. Ao invés da escova caiu um crucifixo enorme, de prata lavrada. A mãe, ele sabia, era uma mulher que se apegava à fé porque não conseguia dominar seus demônios íntimos – o que ela precisava era de um psiquiatra, não de padres, sentenciou de si para si. Com vago sentimento de piedade, Pio Neto recolocou tudo de volta ao armarinho.
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Pio Neto banhou-se; no quarto vestiu uma calça de brim, uma camiseta branca. Na cozinha preparou no micro-ondas uma xícara de chá, desses de saquinho, que tomou acompanhado de uma fatia de queijo. Pegou uma pêra no refrigerador e foi comê-la lá fora, sentado na guia da calçada. O inverno ainda não terminara, mas o vento matutino e o sol cálido e excessivamente brilhante eram de primavera. Notou que alguém estava de mudança para a casa vizinha – homens com uniforme de uma empresa transportadora retiravam móveis do caminhão: uns baús misteriosos, uma cama de ferro enorme, um guarda-roupa monstruoso envernizado de negro e, pelo jeito, de madeira maciça, dado ao esforço que faziam para carregá-lo. Uns móveis antigos, remotos, seculares.
Anteriormente naquela casa residiam os seus avós maternos – o velhinho morrera e no dia seguinte ao enterro Eleonora metera a mãe num asilo e no quintal da residência plantou uma placa de Aluga-se.
Da cabina do caminhão saltou uma mulher vestida de negro, um traje absurdo, mas a Pio Neto vagamente reconhecível: um chapéu emplumado, o vestido longo todo em veludo e rendas, tão armado que ele interrogou-se sobre como tudo aquilo coubera na boleia do veículo – o negror era faiscante. A mulher, vendo-o, acenou com a mão sem um sorriso nos olhos ou boca. O rosto era inacreditavelmente pálido e de supetão um calafrio percorreu a espinha dorsal de Pio Neto: Deus, aquela era a mulher que aparecia em seu sonhos obscuro que vinha tendo nas últimas noites!
No sonho ele, Pio Neto, estava ali mesmo, no quarto, envolto em penumbra – pela fresta da porta entreaberta filtrava a luz que na cozinha devia ser feérica. Com a luz, vinham as vozes ásperas de seus pais na eterna discussão surgida dos assuntos os mais triviais. Trêmulo, Pio Neto sabia que aquela violência acabaria convergindo para si. Então a porta era totalmente aberta com estrépito e seu pai, gordo como um capado, e sua mãe, de magreza histérica, apontavam-no em muda e acusação. Pio Neto conseguia fugir do quarto, alcançava o quintal, a rua. Uma chuva súbita começava a cair, o vento oscilava furiosamente as árvores – abocanhava o mundo. Era preciso proteger-se do tempo feroz, dos pais raivosos, de si mesmo. Dirigia-se à casa dos avós, penetrava por um alçapão aos fundos e que dava para o porão. Ali, no porão, o passatempo do avô: a coleção de objetos relacionados a Maria Antonieta, rainha de França: relógios, talheres, algumas cadeiras, sapatos, perucas, anéis, tiaras, fivelas, cintos, telas de pintura – no centro do porão, uma réplica da guilhotina. Pio Neto, tiritando de frio, encolhia-se num canto e logo surgia o avô, transcendental, sorrindo-lhe com doce e aconchegante ternura.
– Quer vir morar comigo? – perguntava o ancião.
– Quero sim, vovô – respondia Pio Neto, a voz ungida de felicidade e agradecimento. O avô então apontava a guilhotina – ao lado do instrumento de execução postava-se a mulher de negro. A soberana Maria Antonieta fazia um gesto convidativo e para o lado dela Pio Neto se encaminhava, determinado. Nesse preciso momento, acordava.
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Eleonora chegou para o almoço por volta do meio-dia, ligou a um restaurante pedindo marmitex e trancou-se no quarto. Não tinham empregadas, exceto a mulher que aparecia três vezes por semana para a limpeza geral, cobrando diária. Empregadas fixas não ficavam nem duas semanas na casa, incompatibilizadas com o gênio de Eleonora. A última estava movendo ação criminal contra os patrões – fora sadicamente agredida por Eleonora, e como prova da violência trazia no busto a marca de quatro furos de um garfo.
Ao meio dia e meia Pio Neto e a mãe estavam frente a frente à mesa, comendo em silêncio. Era o que mais atingia Pio Neto: aquele silêncio sepulcral o punha nervoso, apreensivo, constrangido. Gostaria de ouvir a voz da mãe – quem sabe vislumbrar um sorriso? Já vira Eleonora sorrir às amigas, ao poeta José Petrarca – o jovem que se esgueirava para o quarto dela de madrugada, na ausência do marido, e que desaparecia invariavelmente às cinco da manhã, ao apito combinado com o guarda-noturno. Já vira a mãe sorrir para o entregador de pizza, para desconhecidos que eventualmente a cumprimentavam na rua. Mas dentro de casa era aquilo: silêncio e cara fechada – um abismo inexplicável de ódio e rancor.
– Para quem você alugou a casa do vovô? – indagou Pio Neto. Eleonora ergueu uns olhos interrogativos.
– Minha casa, você quer dizer. E quem falou que a casa foi alugada? – como a voz dela estava prenhe de acidez, Pio Neto respondeu baixinho:
– Eu vi a mudança.
Eleonora sorriu e, sarcástica:
– Viu? Ora, meu rapaz, você não tem mais idade para ficar criando fantasias.
– Eu vi – teimou Pio Neto.
– Viu porra nenhuma.
– Se eu disse que vi, foi porque vi.
Eleonora perdeu a paciência. Jogou os talheres sobre a comida e levantou-se. Foi ao quarto. Em dois minutos estava de volta, um molho de chaves na mão.
– Então vamos verificar essa mudança, seu retardado.
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A mãe tinha razão. Além de um gasto chinelo esquecido num canto e das brancas teias de aranha nos ângulos das paredes – a casa estava fechada há dois anos – só o silêncio persistia nos aposentos invadidos pelas sombras. Eleonora esbofeteou o garoto e deixou o local, furiosa. Pio Neto pegou no chão o chinelo, com delicadeza limpou-o do pó e levou-o ao nariz, sentindo o cheiro dos pés do avô, um odor que lhe lembrava os córregos barrentos da fazenda onde iam pescar bagres e lambaris. Resolveu visitar o porão. Dirigiu-se ao quarto que fora de despejos e desceu pela escadinha, pressionou o interruptor de luz na parede e a forte claridade expôs aos seus olhos a desolação do ambiente. Eleonora havia levado para o seu antiquário a preciosa coleção do velho – mas a guilhotina continuava, solene e inquisitiva, imperando no centro do vasto cômodo. Seu avô sempre gostara de marcenaria e aquela guilhotina, construída por ele ali mesmo, era um colosso artístico. Para desmontá-la seria preciso alguém especializado – tantos encaixes, pinos, parafusos, arruelas – e Eleonora, talvez por inércia, foi adiando sua remoção e por fim dela acabara se esquecendo.
Pio Neto caminhou para o centro do porão e pôs-se a acariciar a guilhotina, suas colunas de sustentação. Riu saudosamente para si mesmo ao tocar a longa corda que liberava a grossa lâmina de aço cujo fio agudíssimo continuava rebrilhando. Embalado por nostálgicas lembranças do avô, Pio Neto vasculhou o ambiente com o olhar, a cata de outros detalhes memoriais. A um canto viu a velha manta de lã – a cama do cão Carnaval. Foi sentar-se onde o boxer do avô costumava dormir, lembrando-se do dia em que o velho surgira com o cachorro, um bicho miseravelmente magro e sarnento. A avó, odiando todo e qualquer animal doméstico, fizera um escarcéu monumental. Então, para que pudesse dividir o porão com o companheiro, que em pouco tempo ganhou pelugem brilhante e peso acima do normal, o avô fizera uma escadinha ligando o cômodo subterrâneo ao jardim através de um alçapão – o alçapão atualmente estava com a portinhola apodrecida. Com a morte do avô, fulminado por um ataque cardíaco, o cão não teve melhor sorte. Eleonora enterrou o pai, jogou a mãe num asilo e mandou um veterinário muito filho da mãe sacrificar o animal. Pio Neto a tudo assistira incapaz de um gesto de revolta, um grito de desespero – só teve lágrimas por sua irremediável covardia perante aquelas ações tão desumanas. Por que não brigara para que, ao menos, enviassem o bicho para a fazenda?
Pio Neto já estava a um bom tempo encolhido naquele canto quando começou a ouvir sons lamentosos, um cão gania, velhos choravam, crianças gritavam. Tapou os ouvidos com as mãos, encolheu-se ainda mais e começou a chorar baixinho.
Às dez da noite Pio Neto chegou à conclusão de que sua mãe não viria jantar em casa. Abriu o refrigerador: ali, um pedaço de queijo, verduras, legumes – só. Foi ao quarto de Eleonora em busca de algum dinheiro para um lanche qualquer. Encontrou no porta-jóias sobre a penteadeira alguns trocados – mas onde estavam os brincos de diamante, os anéis de variadas pedras preciosas, o colar de rubis e esmeraldas, as pulseiras, o reloginho Cartier de ouro cravejado de brilhantes?
Se bem que intrigado com o desaparecimento de tais preciosidades, achou que não tinha motivos para maiores preocupações: a mãe certamente as guardara no cofrinho ali na parede, sob um pequeno e autêntico quadro de Guignard – não lhe chamou a atenção o fato de, no lugar da tela, haver agora a foto emoldurada de Eleonora e o deputado, ele vestindo fraque, ela com o vestido de noiva.
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Na lanchonete pediu pedaços de pizza e guaraná. Enquanto esperava o serviço, ficou a examinar o local e foi assim que deu com os olhos no artista plástico Antônio Palmeira, um mulato forte que, sabia Pio Neto, fora substituído nos lençóis de Eleonora pelo poeta José Petrarca – Pio Neto não compreendia o fascínio da mãe por pessoas assim: jovens dizendo-se artistas e inexoravelmente fadados ao fracasso. Palmeira, sozinho numa mesa e tendo à frente um copinho de cachaça e uma garrafa de cerveja, fez-lhe sinal, solicitando companhia.
Só depois de ver Pio Neto acabar de comer a pizza e tomar o guaraná, é que Palmeira deixou de falar de si mesmo e do futuro majestoso que o aguardava para dar vazão à mágoa.
– A vaca da sua mãe finalmente fez a maior besteira da vida... – E ante o olhar perplexo de Pio Neto, exclamou: – Vai dizer que não sabe?
Pio Neto apenas balançou a cabeça, não, não sabia de nada.
– Mas que vagabunda! – indignou-se Palmeira, bebadamente. – A cadela nem deixou um bilhete para o filho! Pois eu lhe digo, garoto: ela deu no pé com o Petrarca, o poetinha de merda. Foi embora, sumiu, escafedeu-se!
Pediu um conhaque à garçonete.
– Politicamente, seu pai vai se foder. Se pouca gente sabia que ele era um corno manso, agora a coisa vai sair nos jornais, a merda vai feder. Eu, pelo menos, espero que assim aconteça, torço feito um desgraçado. Vem cá, garoto, ela tem mesmo toda aquela dinheirama que arrota? Porque, é o que digo, o poetinha não tem onde cair morto. Tem fiado em todos os botecos da cidade... Vai moer toda a grana da ordinária e depois dar um solene pontapé naquele traseiro de tábua. É o que digo: a biscate da sua mãe se ferrou...
Um relâmpago riscou o céu, seguido dos trovões.
– Que tempo mais cagado – disse Palmeira –, durante o dia um sol de assar miolos, de noite esse vômito da natureza. Aliás, tudo isso tem a ver com meu estado de espírito... Porra, eu gostava demais da prostituta da sua mãe, garoto... – Súbito, começou a chorar. Chorou por uns dois minutos e em seguida limpou as lágrimas com a barra da camisa. – Eu estou bêbado, garoto, não tenha nojo de mim. Acho que já bebi mais de um litro de conhaque, não sei quantas pingas, dúzias de cerveja. Daqui a pouco o pessoal dessa espelunca vai ter que me arranjar um táxi, ora, eles já estão acostumados, regalias de freguês especial...
Pio Neto levantou-se. O artista plástico olhou-o, pela primeira vez tomando consciência do drama a desenrolar-se naquele cérebro juvenil. Quis dizer alguma coisa reconfortante, chegou a grunhir um lamento ininteligível, depois, com um sorriso compassivo, acenou um desolado adeus.
Assim que pôs os pés na calçada, o dilúvio começou.
A chuva estava tão forte, tão gélida, que o mundo era apenas uma espessa mortalha branca. O vento uivava e as árvores estalavam, um e outro galho eram arrancados e iam de roldão à enxurrada com mais de palmo de altura, fazendo rio das ruas. Uma mão forte segurou o braço de Pio Neto e arrastou-o para baixo de uma marquise de cimento armado de uma farmácia.
– Que faz no meio desse temporal, menino? – perguntou o guarda-noturno, embrulhado em sua capa de chuva. De repente lembrou-se de que por certo Pio Neto já deveria estar sabendo da fuga da mãe com o poeta. Acabrunhou-se.
– A vida é assim mesmo, garoto. Talvez aqueles dois a esta hora já estejam arrependidos. O Petrarca não vai aguentar sua mãe, pode ter certeza. Como ela é geniosa! – Calou-se, consciente de estar falando um monte de besteiras. Deu um tapinha nas costas de Pio Neto, e ordenou: – Vá, menino, vá para casa, toma um banho quente e se enfie debaixo das cobertas. Tudo vai acabar bem, você vai ver...
Mergulhado de novo no aguaceiro, Pio Neto aproximou-se da casa dos avós. Saltou o muro, deu a volta na residência e, aos fundos, ergueu a tampa apodrecida do alçapão e penetrou no porão. Dirigiu-se ao interruptor na parede e acendeu a luz.
– Quer morar comigo? – indagou o avô.
– Sim – disse Pio Neto. E determinado caminhou para o estrado, enfiou a cabeça na abertura entre as balizas do aparelho de execução. A rainha Maria Antonieta surgiu de repente a seu lado, suavemente tomou-lhe a mão e a conduziu para a corda que destravava a lâmina da guilhotina.
fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/08/a-guilhotina.html