segunda-feira, 6 de abril de 2015

Piloto Automático


Já esqueceu o celular alguma vez? 
Quando foi que percebeu que o havia esquecido? Creio que simplesmente não bateu com a mão na cabeça e exclamou “droga” do nada. A percepção provavelmente não veio de maneira espontânea. Seria mais provável que você, ao checar o próprio bolso, encontrou-se momentaneamente confuso por não haver algo ali. Então, mentalmente, refaria todos os passos do dia.
Merda.
No meu caso, o alarme do celular acordou-me como sempre, mas percebi, de antemão, que a bateria estava mais baixa do que esperava. Era um celular novo, e eu tinha esse hábito ridículo de deixar os aplicativos ativos, consumindo bateria noite adentro. Então o coloquei no carregador por um momento, e fui para o banho. Isso foi apenas um pequeno acaso, nada além disso. E, durante o banho, meu cérebro voltara à rotina matinal.
Esquecido.
Não era como se estivesse sendo desatencioso, pois conforme pesquisei depois, isto é reconhecido como uma função normal do cérebro. Explicando melhor, os neurônios não funcionam com simplesmente “um nível”, mas sim vários. Como, por exemplo, quando você não precisa pensar em locomover as pernas para que elas se movimentem normalmente.
Não estive pensando na minha respiração, mas sim se deveria pegar um copo de café no caminho para o trabalho (o que acabei fazendo). Não estive pensando em mover o café pelos meus intestinos, mas sim se conseguiria acabar a tempo de buscar a minha filha Emily na creche depois do trabalho, ou se me atrasaria e tivesse de pagar a multa pela hora extra. Enfim, o que quero dizer é que existe um nível do cérebro que lida com a rotina, para que todo o resto possa se preocupar com as outras coisas.
Pense sobre isso. Pense sobre a última vez que dirigiu para o trabalho. Você consegue se lembrar de todos os detalhes? A maioria dessas memórias se torna opaca, emergidas em algo comum, tornando-se difícil lembrar-se de algo em específico. Faça qualquer coisa regularmente, todos os dias, e isso se transformará em rotina. Continue fazendo e, eventualmente, o cérebro não o processará como uma condição pensante, mas sim o realocará para o nível em que lida com a rotina. Seu cérebro continua perpetrando isto sem sequer pensar sobre. Consequentemente, você pensa em sua ida ao trabalho da mesma forma que pensa em suas pernas se movendo enquanto anda. Ou seja, não pensa.
A maioria das pessoas chama isto de piloto automático. Mas há um perigo aí, pois se houver uma quebra na rotina, a sua habilidade de lembrar-se, ou perceber algo, é tão ruim quanto à habilidade de fazer o cérebro parar de pensar no modo rotina. Minha habilidade para lembrar-me do celular em cima do meu balcão é a mesma que a minha habilidade em impedir que o meu cérebro entre no modo “rotina matinal”, do qual me diria, erroneamente, que o celular estaria no meu bolso. Mas eu não detive o meu cérebro de entrar no modo rotina. Simplesmente fui tomar meu banho, como normalmente o faria. A rotina começou. A exceção foi esquecida.
Piloto automático: ligado.
Assim, meu cérebro estava de volta à rotina. Tomei banho. Barbeei-me. O rádio transmitia as condições do tempo. Dei a Emily o seu café da manhã e levei-a até o carro (ela estava adorável, reclamando sobre o “sol malvado” da manhã que atrapalhava o seu cochilo durante o caminho para a creche) e saí. Isso era a minha rotina. Não importava que o meu celular estivesse no balcão, carregando as baterias silenciosamente. Meu cérebro estava no modo rotina e na minha rotina o meu celular estava na meu bolso. É por isto que esqueci o celular. Não foi desatenção. Nem negligência. E sim nada mais do que o meu cérebro entrando em modo rotina e sobrescrevendo a exceção.
Piloto automático: ligado.
Eu saí para o trabalho. Era um dia quente e o sol estava escaldante antes mesmo do meu traidor e absente celular acordar-me. A direção estava ardente ao toque quando entrei no carro. Acho que ouvi Emily trocar de lado no assento, alocando-se atrás do meu para escapar da luz do sol. Segui com a minha rotina. Fui para o trabalho. Submeti o relatório. Compareci a reunião. Não foi até que parei para tomar um rápido café, e colocar a mão no bolso para pegar o meu celular, que a ilusão estilhaçou-se diante de meus olhos. Refiz mentalmente os meus passos. Lembrava-me da bateria fraca. Lembrava-me de colocá-lo para carregar. E me lembrava de deixá-lo.
Meu celular estava no balcão.
Piloto automático: desligado.
De novo, é aí que se encontra o perigo. Até que você tenha esse momento – onde tenta pegar o celular e a ilusão desaparece – essa parte do cérebro continua em modo de rotina. Não há razões para questionar os fatos, é por isto que é uma rotina. Fricção da repetição. Não é como se alguém poderia lhe perguntar: “Por que você não se lembrou do seu celular? Isso não lhe ocorreu? Como você pôde esquecer? Você deve ter sido negligente”; pois isto sairia do ponto.
Meu cérebro me dizia que a rotina estava completamente normal, com exceção ao fato de que não estava. Não é que eu havia esquecido o celular. De acordo com o meu cérebro, de acordo com a rotina, meu celular estava comigo. “Por que eu iria questionar isto?” “Por que eu deveria checar?” “Como iria me lembrar, absolutamente do nada, que o meu celular estava no balcão?” Meu cérebro permanecia ligado no modo rotina, e no modo rotina o meu celular continuava no bolso.
O dia alongou-se. E a manhã deu espaço para o calor implacável da tarde. O asfalto borbulhava, e o pavimento parecia prestes a quebrar-se sob os raios de sol. As pessoas trocavam os seus cafés por drinks gelados. As jaquetas, guardadas. Cachecóis, enrolados. Gravadas, afrouxadas. Testas, esfregadas. Os parques gradualmente encheram-se com pessoas se bronzeando e assando churrascos. Janelas dilatavam com o calor. O termômetro continuava a subir... Graças a Deus pelo ar-condicionado do escritório.
Mas, como sempre, a fornalha do dia dissipou-se, dando lugar ao frescor do anoitecer. Outro dia, outro dólar. Ainda amaldiçoando-me por ter esquecido o celular, dirigi para casa. O calor havia transformado o interior do carro em um forno, trazendo um cheiro horrível de algum lugar. Quando cheguei à garagem, e as pedras do asfalto esmagaram-se confortavelmente sob os pneus, minha esposa cumprimentou-me da porta.
“Onde está Emily?”
Porra.
Não bastasse o meu celular, depois de tudo, ainda esqueci-me de buscar Emily na porcaria da creche. Imediatamente dirigi de volta para o local. Enquanto caminhava até a porta, comecei a praticar as minhas desculpas, me perguntando, em vão, se conseguiria escapar de pagar o tempo extra. Vi um pedaço de papel preso à porta.
“Em razão do vandalismo ocorrido durante a noite passada, por favor, solicitamos que utilize a porta ao lado. Apenas por hoje”.
Noite passada? O que? A porta estava bem esta manh-.
Paralisei. Meus joelhos tremiam.
Vândalos. Uma mudança na rotina.
Meu telefone estava no balcão.
Não estive aqui esta manhã.
Passei direto porque estava bebendo meu café. Eu não deixei Emily aqui.
Meu telefone estava no balcão.
Ela se moveu no assento. Eu não podia vê-la no retrovisor.
Meu telefone estava no balcão.
Ela adormeceu. Não disse uma palavra quando eu passei em frente à creche.
Meu telefone estava no balcão.
Ela mudou a rotina.
Meu telefone estava no balcão.
Nove horas. O carro. O sol quente. Sem ar. Sem água. Sem energia. Sem ajuda. O calor. Uma direção muito quente ao toque.
Aquele cheiro.
Andei até a porta do carro. Entorpecido. Em choque.
Abri a porta.
Meu telefone estava no balcão e a minha filha estava morta.
Piloto automático: desligado. 

Um comentário: