quarta-feira, 3 de maio de 2017

O Tradutor

Quando a proprietária do apartamento me disse, muito a contragosto, que o inquilino anterior havia morrido ali, na hora me ocorreu "O Inquilino", meu filme preferido do Polanski, apesar de não ter sido o caso. O inquilino anterior não tentara o suicídio. Foi encontrado morto depois de um mês quando o mau cheiro começou a impregnar o andar. Causa da morte: infarto fulminante. Segundo consta era solitário e anti-social. Como eu. Ela havia ocultado o fato dos pretendentes anteriores, mas não contara com a tagarelice dos vizinhos, o que resultou em sérias dores de cabeça. Desde então resolveu abrir o jogo logo de cara, rezando intimamente para encontrar um inquilino não supersticioso. Demorou, mas apareci.



Sou tradutor. Porque gosto e, principalmente, porque preciso. Nunca soube lidar com as pessoas e, para falar a verdade, nunca gostei. Durante a infância achavam que eu fosse autista. Houve uma época em que eu também achei. Parece desnecessário dizer como foram a adolescência e a vida universitária de alguém assim. Minha primeira opção de vida profissional foi processamento de dados. Era o início dos anos noventa e o tempo todo se falava na era da informática. Parecia interessante e eu não tinha nada contra os computadores. Mas aí descobri que também não sabia(e nem gostava) de lidar com máquinas. Mas gostava de livros. Adorava, desde criança. Então, rumei para a faculdade de Letras. Posso dizer que me dei bem. Nunca ganhei uma fábula de dinheiro mas, para alguém com minha personalidade e meu estilo de vida, até que tem dado para o gasto. Atualmente trabalho para três editoras.

Quando minha mãe morreu decidi vender o apartamento que ela comprou com tanto sacrifício e alugar outro bem longe dali. Quando chegamos àquele apartamento parecia o início de uma nova vida, mas um ano depois eu já queria me mudar. Resolvi alugar porque não teria para quem deixar após minha morte. Queria algo pequeno(nunca gostei de grandes ambientes). Então, encontrei este apartamento de cinqüenta metros quadrados, dois dormitórios e um passado sombrio. A proprietária tentou relatar o ocorrido apenas como uma fatalidade, algo natural que pode acontecer em qualquer lugar e, ainda mais, com um senhor com mais de cinqüenta anos. Mas era perceptível o temor de que o histórico de seu tão bem cuidado imóvel afastasse mais um interessado. Quase me beijou quando disse que alugaria.

Adoro cinema. Em especial o cinema de terror. Gosto de todos os gêneros, mas tenho uma ligação especial com o cinema do medo. As melhores lembranças que tenho de minha infância e minha adolescência são de estar em frente à tv à noite, geralmente sozinho, morrendo de medo, assistindo àqueles maravilhosos filmes de terror produzidos nos anos 60 e 70. "O Túmulo do Vampiro", "A Invasão das Rãs", "A Volta do Lobisomem", "O Monstro sem Alma", "A Casa Mal Assombrada", "O Expresso do Horror", "A Casa dos Sete Mortos", "O Fogo Diabólico", "A Casa da Noite Eterna", entre outras preciosidades. É doloroso pensar que a tv aberta, um dia, já foi de qualidade. Lembro, com intensa saudade, de estar encolhido no sofá, com a luz acesa, sobressaltando com qualquer ruído e de, após o filme, todo encolhido na cama, cabeça coberta, luz acesa, rezar para cair no sono ou para que amanhecesse logo. Conforme fui crescendo, este medo foi sendo substituído pelo medo de coisas reais, concretas, em parte devido ao meu jeito de ser. Nunca mais havia sentido medo de ruídos, sombras, escuro, de estar sozinho. Até ir morar naquele apartamento.

Começou com meu rádio gravador. Desde o final dos anos 80 tenho o hábito de ouvir rádio de madrugada. Geralmente da meia-noite às três da manhã. Flashbacks. Musicalmente parei nos anos 80. Tenho várias fitas cassetes com músicas que vão até aquele período. Certa madrugada ele simplesmente parou de funcionar. Achei que fosse falta de energia. Não era. Não estranhei, uma vez que ele era bem antigo. Levei para consertar. Lá, na frente do técnico, funcionou perfeitamente bem. Voltamos para casa. Não funcionava. Levei novamente ao técnico. Funcionou divinamente. Pedi a ele para dar uma olhada.

Em seguida foi o vídeo-cassete. Caramba, logo o vídeo. O aparelho de dvd eu nem me importaria. Ele recusou-se a reproduzir uma de minhas fitas e também a devolvê-la. Àquela altura ninguém mais consertava vídeos-cassetes. Tive de sacrificá-lo para recuperar a fita. Ele tinha doze anos. Meu último vídeo-cassete.

Aí então, foi a televisão. Eu havia encontrado um dvd duplo de "Era Uma Vez no Oeste". A televisão não quis nem saber. Recusou-se a funcionar. Ela também era bem antiga e achei que talvez não valesse a pena consertá-la. Deixei-a perto da lixeira do condomínio. Um funcionário me perguntou se podia levá-la. Eu disse que não estava funcionando, que ela já tinha uma certa idade, mas ele a quis mesmo assim. Dias depois eu voltava com meu rádio gravador(O técnico não havia encontrado defeito algum) e encontrei o funcionário que disse que a televisão estava ótima, que não houve necessidade de conserto. O rádio gravador permaneceu em seu silêncio. Seria algum problema de fiação? Informei o caso à proprietária, que enviou um eletricista. Não havia problemas com a fiação. Como eu estava com um certo acúmulo de trabalho(bons tempos) decidi dedicar-me totalmente a ele e deixar para resolver minha carência nostálgica depois.

Como já disse, o apartamento possuía dois dormitórios. Transformei um deles em meu ambiente de trabalho. Possuo dois pen drives(que saudade dos disquetes e saudade maior ainda de quando não havia nada disso). Em um, guardo cópias de meus trabalhos, em outro, lembranças(fotos, pôsteres, artigos que encontro na internet). Os dois ficavam em um compartimento da estante no quarto de trabalho. Certo dia, chegando do supermercado, indo em direção à cozinha, olhei de relance para o meu quarto e algo no chão, no meio do dormitório, chamou a minha atenção. Eram os pen drives, um sobre o outro. Fiquei em pé no meio do quarto segurando os dois e tentando imaginar como eles foram parar ali. Eu havia feito uma faxina no apartamento três dias antes, lembrava-me de tirar o pó da estante, de pegar os pen drives. Talvez os tivesse deixado cair sem perceber e...não, não fazia sentido. Um em cima do outro? Como vieram parar no meu quarto? E como só fui percebê-los ali três dias depois? Nem eu era tão distraído assim. Levei-os até a estante, torcendo para que os meu pen drives estivessem ali e que aqueles em minha mão fossem outros que eu tivesse esquecido que possuía(muito forçado, eu sei). Como eu temia, só havia dois pen drives naquele apartamento. Ao longo de minha existência houve momentos em que duvidei de minha sanidade(deve ser comum em pessoas como eu), mas aquele era o primeiro em que não havia a mais remota possibilidade de uma explicação racional.

Então, vieram as sombras. Pareciam ratos correndo pelo apartamento. Tenho pavor de ratos. Sempre tive, desde a infância. No dia em que me mudei para o meu(da minha mãe, na verdade) primeiro apartamento deixei este medo para trás. Há alguns anos assisti a uma reportagem sobre ratos de telhado. Monstros enormes. Não me assustei muito, já que eles eram comuns em casas e sobrados. Eu então morava no vigésimo andar. A rapidez com que as sombras se moviam fizeram-me cogitar a hipótese de ataques a edifícios também. Eu os localizava com o canto do olho e quando, assustado, voltava-me para sua direção, disparavam em fuga. Em minhas traumáticas experiências com ratos eles nunca fugiram de mim. A muito custo, abordei o zelador e perguntei se havia problemas com ratos no condomínio. Não havia. Até que uma noite avistei uma delas no teto da cozinha(?). Era uma sombra, e correu assim que olhei para ela. No entanto deu para ver que era uma sombra. Naquele instante lembrei-me(muito oportunamente) que há anos eu não voltava ao oculista.

Os barulhos noturnos. Sempre no meu quarto. Primeiro parecia que alguma coisa(um rato?) andava pelo quarto. Não foram poucas as vezes em que me levantei assustado, acendi as luzes e olhei pelos quatro cantos do cômodo procurando(e temendo encontrar) algo que justificasse aquilo. Depois veio o leve ruído de algo se rachando. Eu levantava e olhava todo o piso. Nada. Acontecia apenas no escuro. Então, passei a trabalhar até bem tarde e só parava quando estava caindo(literalmente) de sono. Passei também a dormir no sofá da sala. Estava ficando muito difícil morar naquele apartamento.

Enquanto morava com minha mãe eu passava boa parte do tempo trancado no quarto, fosse trabalhando ou qualquer outra coisa. Mesmo morando sozinho preservei o hábito. Certo dia eu estava trabalhando quando ouvi nitidamente a porta da sala se abrindo e alguém entrando no apartamento. Gelei. Era um roubo. Ouvi claramente esta pessoa andando pela sala. Passei os olhos pelo cômodo procurando algo que pudesse servir como arma e constatei que só poderia ameaçá-la com dicionários. Tomei coragem(o fato de ainda ser dia contribuiu muito para isso) e saí do quarto. Ninguém na sala e nem em outro cômodo. A porta da sala estava fechada. Estava trancada e a chave na mesinha de centro.

As lembranças. Não consigo lembrar com exatidão quando começaram. De repente, os momentos mais dolorosos da minha vida(erros graves, humilhações, pessoas que eu machuquei e não mereciam, momentos de covardia) começaram a dominar minha mente. Começavam quando eu acordava(às vezes antes, durante os sonhos) e me acompanhavam o dia todo. Eu não conseguia pensar em mais nada, não conseguia trabalhar. Só melhorava quando eu saía. Passei a freqüentar lugares movimentados e a passar horas lá. Eu, que passara a vida fugindo das pessoas, então procurava o seu convívio. Ficava horas fora. Tinha medo de voltar para o apartamento. Cheguei a tentar trabalhar em lan houses. Tentei me adaptar aos pensamentos(em especial às minhas culpas) e seguir adiante.

Aí então, o golpe de misericórdia. Ela. Passar grande parte de minha existência fugindo do convívio social não impediu que eu me apaixonasse. Amei, sim. Ainda amo. É claro que não houve nada, apenas na minha cabeça. Não por culpa dela, quero deixar bem claro. Ela nunca soube. Apesar de sua lembrança me machucar há anos, ela também é a mais doce e terna que possuo. Mas não foi este lado meigo que passou a me acompanhar todas as horas do dia. A saudade que há anos eu sentia fora ampliada de forma devastadora. Chegava a doer. Junto à saudade vinham lembretes de porque não havia dado certo e porque jamais poderia ser. Passei a chorar o tempo todo. Mesmo fora do apartamento eu sentia uma pontada de dor. Aí, ficar perto das pessoas voltava a me fazer sofrer. Ver casais, pessoas felizes, aumentava ainda mais meu sofrimento e então eu voltava para o apartamento, onde eu podia pelo menos chorar à vontade. Certa noite, encolhido na cama(só horas mais tarde percebi que havia voltado para o quarto), enrolado no cobertor, eu chorava a cântaros, como se eu nunca tivesse chorado em toda a minha vida. Chorava de saudade, por ser daquele jeito, por ter nascido. Estava tão absorto em meu sofrimento que custei a perceber que alguém segurava minha mão e levei um pouco mais de tempo para me lembrar de que aquilo era impossível. Petrifiquei. Eu sentia aquela mão forte segurando a minha direita. Não tive coragem de abrir os olhos. Levantei de um salto e fui tateando até a sala. Abri os olhos rapidamente para pegar a chave na mesinha, abri a porta e saí desesperado. Não parei para chamar o elevador e disparei pelas escadas. Saí correndo do edifício até uma pracinha que ficava em frente. Olhei para as janelas dos quartos do apartamento no vigésimo andar. Nada. O que realmente eu esperava ver, não sei. Sentei em um banco. Estava frio e eu vestia um shorts e uma camiseta. Não havia mais ninguém ali. Aquela região estava ficando conhecida por sua alta incidência de assaltos e estupros. Passei a noite ali, sem sair do lugar. Sem tirar os olhos das janelas do apartamento.

Passei o dia seguinte à procura de um novo lugar para morar. Encontrei uma kitchnette a um preço abusivo, mas eu não tinha escolha. Não passaria nem mais uma noite naquele apartamento. A rescisão de contrato de aluguel foi uma facada e tanto. Apesar dos atrasos em meus trabalhos, não cheguei a ter nenhum grande problema, uma vez que eu não traduzia Best Sellers. Meu rádio gravador voltou a funcionar e comprei uma tv LCD, já que as tvs com as quais eu sempre convivi praticamente não existem mais. Mas, a solidão hoje já não é mais a mesma. Não me sinto mais tão a vontade e seguro como durante toda a minha vida. À noite a luz fica acesa o tempo todo, mesmo quando assisto à televisão. Não vejo mais filmes de terror. Qualquer ruído me deixa em estado de alerta. Voltei a dormir com a luz acesa, todo encolhido, com a cabeça coberta, rezando para cair no sono ou para que amanheça logo.


fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/10/o-tradutor.html

domingo, 23 de abril de 2017

Os Vivos e os Mortos

Estava atrasado!

Quando cheguei ao velório, o primeiro fato que me chamou a atenção dizia respeito a presença de Helena, sentada e prostrada ao abandono no canto mais discreto da capela. Levei algum tempo até perceber que ela encontrava-se alheia ao que ocorria ao seu redor. A falta de percepção para aceitar o óbvio se constituía em uma das duas perspectivas sempre presentes naquelas ocasiões especialmente fúnebres: havia os que encontravam-se mortos, e sabiam disso, mas recusavam a partida derradeira por pendências pessoais mal resolvidas. Havia os que estando mortos, não se davam conta desta condição.

Helena, infelizmente, encontrava-se na segunda perspectiva: ela não sabia que estava morta!


No velório havia dois caixões: o dela e do marido. O acidente de carro que vitimara os dois acontecera bem próximo da casa deles naquela noite chuvosa. Ninguém soube exatamente como aconteceu a tragédia, mas por conta de um celular ligado dentro do veículo dizia-se, a boca pequena, que Vanderlei, o marido, estava transtornado com ela. Descobrira que Helena o estava traindo há bastante tempo. O casal discutiu muito. Trocaram xingamentos e acusações, que resvalaram inevitavelmente para a agressão física. Ele perdeu o volante na tentativa de aplicar uns bons sopapos nela. E deu no que deu: o carro saiu da estrada e acabou se chocando com um enorme muro de pedras maciças que ficava a um quarteirão dali.

De minha parte, acreditava piamente na hipótese da discussão no carro porque Vanderlei, o marido de Helena, era meu primo. Já o conhecia há muito para saber que ele tinha um temperamento instável. Tratava-se de uma pessoa violenta e arredia. Não entendia como Helena, uma mulher tão distinta, tão educada, fora contrair matrimônio com um troglodita daqueles. Custava-me crer que fosse apenas o dinheiro.

Minha família encontrava-se naquele pequeno santuário para o último adeus ao casal. Minhas tias, primos, sobrinhos, meus pais e todos os amigos de Vanderlei rodeavam os caixões. E Helena, a pobrezinha, sentada no canto da capela ainda não havia se dado conta por que ninguém, até então, viera-lhe oferecer as condolências. Talvez achasse que apenas Vanderlei tivesse morrido, ela não.

O dom de ver e falar com os mortos já se manifestava em mim desde pequeno. No início foi muito difícil lidar com a situação. Passei por dificuldades psicológicas extremamente estressantes que, creiam-me, quase me levaram à loucura. Não tive uma infância decente. Nem eu mesmo, às vezes, consigo acreditar como superei tudo sozinho. Mal saído da adolescência já havia perdido as contas do número de defuntos encontrados vagando nas ruas sem saber que tinham morrido. Adquiri o hábito de ajudá-los a realizar, como gostava de dizer, o “passamento derradeiro”. Confortava-me saber que, ao menos, esta qualidade inata tinha lá a sua serventia.

E, naquele momento, precisava ajudar Helena, a mulher com quem vivi uma relação amorosa intensa. Um relacionamento secreto que, descoberto, causara-lhe o infortúnio de morrer tão jovem. Um desperdício.

Apesar de morta, e não sabê-lo, a criatura continuava linda. Fui até ela decidido a não deixá-la mais acorrentada ao limbo incerto dos que ficam entre os vivos. Cheguei de manso e de fala baixa.

— Helena, minha querida.

— Oh, Alberto – disse ela levantando-se da cadeira assustada – o que está acontecendo? Ninguém quer falar comigo. Eles estão me ignorando. Não respeitam a minha dor! O que está acontecendo?

— Você já foi ver o Vanderlei?

— Claro que não! Eu... bem... não tenho coragem de olhar. Alberto, ele descobriu tudo sobre nós. Tudo! – Ela disse baixinho, como se alguém na igrejinha lhe pudesse ouvir.

— Helena, minha querida. – Disse-lhe sem me aproximar apontando o queixo para os caixões. - Você precisa ser forte e ir até lá.

— Oh, Alberto, eu não tenho coragem de olhar.

— Amor – falei no tom mais suave que me foi possível – você ainda não percebeu que há dois caixões sendo velados aqui na capela?

Ela olhou na direção do amontoado de pessoas em torno dos caixões, levantou as sobrancelhas levemente em tom de curiosidade, e voltou-se novamente para mim.

— Pode ser qualquer um – deu de ombros – afinal esta capela é para isso mesmo: velar os mortos.

Ia ser mais difícil do que eu pensei. Pobre Helena.

— Querida, observe que todos os membros da nossa família estão ao redor dos “dois” caixões! – Disse enfaticamente.

Ela se voltou, novamente, na direção do amontoado de parentes aflitos. Os olhos se inflaram de surpresa. As linhas da testa se contraíram rapidamente. O interesse tornou-se evidente. Deus três passos à frente ficando ao meu lado.

— Alberto, quem morreu, além do Vanderlei? – ela perguntou sem rodeios.

— Helena, meu amor.

— Quem?

Não tive outra opção.

— Você.

Ela se virou e me encarou buscando a verdade nos meus olhos. Não os desviei um centímetro sequer para não lhe oferecer falsas esperanças. No fundo, no fundo, talvez já soubesse. Sei lá. Não tive coragem de dizer mais nada. A conversa foi rápida. A conversa foi seca. Não esperava que fosse assim. Ela tomou a decisão. Passou por mim, na verdade, sua áurea perfeita me transpassou e seguiu na direção dos caixões. A única coisa que pude dizer enquanto ela ia para o seu destino foi “adeus”. Eu sabia o que ia acontecer. Já presenciara o fenômeno centenas de vezes. Quando Helena visse o seu próprio corpo dentro do esquife envernizado, aí sim, o “passamento derradeiro” fecharia o ciclo de vez e a sua presença seria levada à eternidade.

Helena, ao chegar diante de seu próprio caixão, levou as duas mãos à boca. Não gritou. Não fez escândalo. Virou-se, de súbito, para mim. Pude ver, pela última vez, o seu rosto assustado, irradiando aquele brilho intenso que, eu sabia, iria tomar-lhe o corpo todo. Ela flutuou por alguns centímetros. Foi a cena mais bela que já vi. Parecia um anjo sem asas! Como era de costume, aos que iniciam a passagem final, olhou para as próprias mãos. Eu nunca soube bem a razão, mas era a partir das mãos que o processo começava. E foi a partir das mãos de Helena que o brilho lhe tomou conta, ofuscando tudo ao seu redor, como uma janela em quarto escuro que se abre para os raios do sol a pino. Não se podia mais divisar o seu belo corpo. A luz se intensificou no seu máximo e sumiu abruptamente levando-a para sempre. Simples assim.

— Adeus, meu amor – disse não conseguindo deter uma lágrima que me escorreu pelo rosto.

Estava exausto. Então, sentei-me na cadeira.

Deixe-me ficar, naquele assento duro, a ruminar pensamentos de quando nos amávamos intensamente. Um riso fraco me escapou dos lábios ao lembrar-me dela. As raras oportunidades que tínhamos, investíamos sempre em um amor urgente. Um querer apressado. Tínhamos fome um do outro. Nunca a esquecerei. Helena. Nunca! Você sempre será...

— Alberto, seu desgraçado, traidor. Vou matá-lo com as minhas próprias mãos.

Pulei da cadeira feito uma mola. Havia esquecido completamente do Vanderlei! De fato, não o vira perambulando por ali. Outra pobre criatura que, decerto, desconhecia sua condição de falecimento. Não sei qual a razão, mas algo me dizia que Vanderlei sabia, sim, que estava morto, porém recusava-se a ir embora. Tinha uma pendência ainda por resolver e tal pendência era comigo! Os mortos que exigem vingança são os mais complicados de realizar a passagem derradeira. Podem ficar anos vagando dentro das casas, fazendo barulho, arrastando objetos, atrasando as vidas dos que considera culpados de sua desgraça. São muito mais difíceis de convencer a seguir o seu destino.

Fiquei de pé num piscar de olhos, resignado, em enfrentar a vergonha de ser escorraçado por um defunto, porque fisicamente, ele nada podia fazer contra mim.

Tudo aconteceu muito rápido. Vanderlei entrara atabalhoadamente dentro da capela. Ele estava com o braço esquerdo inteiramente enfaixado com gases. O rosto, bem machucado, trazia os minúsculos cortes dos vidros estilhaçados do para-brisa e mancava exageradamente em uma das pernas. Preparei-me para o confronto.

No entanto, ele não veio em minha direção!

Vanderlei partiu como uma fera acuada direto para os caixões, empurrando as pessoas que lhe queriam confortar a dor de sua perda e, usando o ombro ileso, num ímpeto de fúria, empurrou os dois ataúdes fúnebres com toda a força que lhe permitia o seu estado debilitado. Os dois esquifes caíram de lado e espatifaram-se no piso de mármore. Deu-se um barulho estrondoso de madeira rachando que vibrou até os candelabros de velas dependurados no teto da capela. Meus tios horrorizados caíram-lhe em cima para dominá-lo. Minhas tias gritavam e choravam histericamente. Mamãe, coitada, desmaiou caindo por cima de toda aquela bagunça. Um verdadeiro escândalo. Num dos caixões notei o cabelo de Helena aparecer na sua lateral, no outro, o impacto da queda havia expelido o seu conteúdo para fora: Aí, eu vi o outro morto estatelado no chão!

Pasmem, era eu.

Sim, era eu mesmo.

Morto! Eu estava morto!

A imagem do meu corpo me atingiu em cheio. Estremeci dos pés à cabeça. Pisquei diversas vezes, não porque quisesse enxergar melhor, mas porque fora acometido, de súbito, por um fluxo intenso de lembranças. Flashes de imagens entrecortavam-se me trazendo à memória as últimas oito horas de esquecimento. Algo como um filme passou em frente de mim em rotação acelerada. Helena chorando ao telefone. Helena me dizendo que Vanderlei descobrira toda a verdade. Helena dizendo que ele ia matá-la. Eu saindo de casa, bem apavorado, armado de revólver, em meio à noite chuvosa. Eu correndo pela rua em direção à casa deles. O carro deles aparecendo na curva em desabalada carreira. O carro deles vindo em minha direção. O rosto de Vanderlei retorcido de ódio atrás do para-brisa. Helena tentando tomar o volante do lunático. Levantei a arma e atirei. Acertei na cabeça dela, sem querer! Os faróis do carro me engolindo foi a última coisa que vi no mundo terreno.

O fim!

— Os desgraçados eram amantes! Eles eram amantes! Eles eram...

Os gritos de Vanderlei, aos poucos, iam ficando cada vez mais distantes. Estranhamente a paz me invadiu. Senti uma leveza em mim que nunca havia sentido antes. Olhei para as minhas mãos porque eram através delas que se iniciava o “passamento derradeiro”.

E elas começaram a brilhar!

Fonte:http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/10/os-vivos-e-os-mortos.html

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Prerrogativas

Ela jogou os cabelos para trás uma, duas, três vezes, no ritmo dos próprios gemidos. Atrás, o homem bufava, ia e vinha, eufórico. Ela fazia o que ele queria. Fazia tudo o que eles queriam. De frente, de lado, de costas, sobre o chão de folhas secas, acuada contra as árvores ou imersa no lamaçal. Em silêncio ou aos berros. Era sua prerrogativa.

Abordava-os no meio da estrada que atravessava o bosque. Nua, a pele de cera reluzindo ao luar, os cabelos de fogo fazendo espirais sobre seus seios, derramando-se em cascata nos quadris, lambendo-lhe mesmo os calcanhares. Uma visão. Uma Vênus. Braços estendidos. Venha. Faça de mim o que quiser.


Preferia os solitários, a quem a privacidade da mata roubava qualquer pudor. Os casados vacilavam, pensando na confiança das esposas. Aqueles que vinham em grupos eram ora tímidos, ora vorazes – isso dependia do que pretendiam provar uns aos outros. Mas todos, sem exceção, atiravam-se ao seu regaço. Por que fariam outra coisa? Experimentavam seus orifícios, faziam-se homens, copulavam por horas. Ela gostava sobretudo dos que pediam. Tinham mentes e línguas sujas. Tornavam seu labor mais fácil, ágil, prazeroso.

O homem dessa noite era vigoroso e indecente: ideal. Nada demorou, jogou-a na relva e possuiu-a ferozmente. As unhas muito longas da mulher rasgavam suas costas dos ombros aos quadris, deixando as marcas rubras do pecado. Mas ele terminou rápido demais e enterrou o rosto em seus seios, ofegante. Ergueu-se, refeito.

Ela sorriu. Palavras não eram necessárias. Estendeu uma vez mais os braços para ele, não para recebê-lo, mas para alcançar-lhe o pescoço, no qual fechou as mãos em garra. Apertou-o com uma força nunca vista em outras mulheres. Era sua prerrogativa também. Sua paga. Seu prazer após o prazer. Perfurou a carne com as unhas; sufocou-o e fê-lo sangrar. O corpo do homem estremeceu. Por fim, parou de mover-se para sempre.

Duas mãos apertaram o ventre do defunto, fazendo nele um rasgo, com num trapo que se parte em dois. Dedos habilidosos tatearam as entranhas ainda quentes, cavoucando. Retiraram de lá um órgão ovalado, do tamanho de um punho, e o embrulharam depressa na camisa do homem. As mãos penetraram mais fundo na carne morta, rasgando o caminho e fazendo espirrar o sangue, até alcançar um órgão maior, macio, que foi juntar-se ao outro na trouxa sangrenta. Então, o último, que encontrou bem protegido sob as costelas. Era maior do que esperava.

Um coração premiado.

Saciou-se rápido no que restava do sangue do homem. Tinha pressa e nada podia ser desperdiçado. Correu pelo bosque aos saltos, como a fera que já conhece todos os caminhos, atalhos, armadilhas. Logo chegou à caverna.

Três pares de olhos brilharam lá no fundo. Três rostos se adiantaram ao ver a mulher chegar. Rostos ainda infantis, pálidos como o dela, como se filhos da Lua. Lábios miúdos se arreganharam em sorrisos felizes, exibindo fileiras de dentes pontiagudos.

A mulher acariciou a cabeça do seu primogênito enquanto ele avançava para o banquete sanguinolento. Escolheu o fígado. Estava ficando forte; em poucos anos, seria um varão e ajudaria a mãe a caçar para os dois irmãos menores, que grunhiam de prazer, mordiscando e lambendo um baço e um coração. Também caçaria para a pequena fera que nesse instante se formava no ventre da mãe, filha do pai que, sem saber, os alimentava agora.

As bocas dos meninos estavam vermelhas; sua sede e sua fome, saciadas. Essa era sua prerrogativa.

fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/12/prerrogativas.html

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Quando Os Anjos Não Querem Voar

Quando desliguei o telefone, a minha vontade era apenas de chorar. Chorar como se minhas lágrimas pudessem lavar minha alma, meus pecados, minha tristeza. Chorar como se o próprio Deus tivesse me pedido para afogar de novo o mundo sob um dilúvio, desta vez proveniente de minhas lágrimas.

Quem estava do outro lado da linha era meu pai. Ele é zelador em um colégio de ricaços aqui em São Paulo. Graças a isso, eu e meu irmão tivemos educação de primeira classe quase que a custo zero. Ele havia ligado porque haviam problemas na escola, onde continuava trabalhando, mesmo depois de aposentado.

O problema todo tinha a ver com pessoas que eu conhecia. Dona Lucinda havia sido minha professora de educação artística. Foi uma das professoras que mais me influenciou pela vida toda, um ser humano fantástico. Só tinha um probleminha: fumava feito uma chaminé. Fora isso, e muito mais importante que isso, era um ser humano maravilhoso.


Fiz aula junto com a filha dela, Luísa. No segundo grau, ela foi uma das grandes paixões não correspondidas da minha vida. Vinda de uma classe muito mais abastada que a minha, acabei caindo no papel de pobrezinho bom para amigo, mas jamais bom o suficiente para namorado. Papel que, aliás, eu vivia interpretando enquanto estudei naquela escola. Fazer o quê? Felizmente, é um tempo que ficou para trás. Luísa, por sua vez, formou-se em Letras e foi dar aulas de Português e Inglês na escola onde sua mãe havia trabalhado e nós havíamos estudado juntos.

Lembro perfeitamente de quando Dona Lucinda morreu. Câncer de pulmão. Óbvio como dois mais dois serem quatro. Lutou muito, lutou até o último minuto. Mas há uma hora em que todos temos de ir.

Numa determinada hora do velório, lembro de ter saído para tomar um ar fresco e visto Luísa caminhando entre os túmulos, absorta em seus pensamentos, com um cigarro na mão. Apesar de odiar cigarro, normalmente não fico enchendo o saco de fumante, a menos que a fumaça esteja me incomodando. Mas, naquele dia, naquela situação, eu não consegui me conter:

- Já não é suficiente esta porcaria ter levado uma pessoa da sua família?

Ela me respondeu apenas:

- Fácil criticar. O vício não é seu...

Pouco tempo depois, Luísa morreu num incêndio, adivinhem só, provocado pelo cigarro que estava em sua mão quando ela adormeceu, bêbada. O divórcio com seu príncipe encantado acabara com os nervos dela. E a única coisa boa que resultou deste casamento foi uma menina linda chamada Maria Helena, para quem nunca consegui olhar sem pensar que ela deveria ter sido minha filha.

E era este mesmo o motivo da minha enorme vontade de chorar. Meu pai havia dito apenas uma frase ao telefone:

- Euller, a Maria Helena está com problemas. Ela precisa de você.



xxxx



Foi fácil encontrá-la. Terminei de subir a escada e virei à direita, na direção das salas de aula. Ela estava no ateliê das aulas de educação artística. Sentada no chão, entre papéis e giz de cera, desenhando. Eu procurei me aproximar com cuidado, não queria que ela se assustasse. Ao meu lado, o professor de educação artística, Professor Mazuka – do qual todos davam risada por ser talvez o único japonês no mundo a se chamar Sebastião. Sebastião Mazuka.

Eu estava apreensivo. Já é complicado quando se trata de adultos, fica pior ainda quando envolve crianças. Especialmente crianças que conhecemos e amamos. Mazuka, por sua vez, não conseguia disfarçar seu nervosismo. Eu entendia perfeitamente. Naquele momento ele era alguém que estava se sentindo fora de seu território, inseguro e se sentindo desafiado. E não podia fazer o que fazia habitualmente, se refugiar na sua autoridade de professor.

Chamei por ela com a maior suavidade que pude colocar em minha voz.

- Maria Helena?

Ela não virou o rosto em minha direção. Estava ocupada, desenhando. Apenas sorriu. E sorriso de criança é assim: um mais lindo que o outro. Aquilo doeu em meu coração.

 - Oi, Euller!

Eu não sabia o que dizer. Felizmente, ela mesma acabou quebrando o silêncio.

- Euller, por que o professor Mazuka nunca deu dez em desenho pra ninguém da minha classe?

Desta vez, eu sorri. Eu sabia a resposta para aquela pergunta. Mas achei que Mazuka precisava participar da conversa também.

- Então, professor Mazuka, por que você nunca deu dez para ninguém da sala da Maria Helena?

Mazuka estava realmente incomodado. E quase se precipitou.

- Ela...

Fui rápido em interrompê-lo.

- Professor Mazuka, não seja indelicado. Apenas responda a pergunta, sim?

Não me preocupei em ser gentil com ele porque já havíamos conversado antes. E ele quase estragara o que havíamos combinado.

- Sim, c,c, claro - gaguejou Mazuka - Desculpe... ahn, é que eu percebi que, quando eu dava dez nos desenhos, as crianças acabavam se acomodando depois. E não criavam mais como poderiam criar, entende?

Sorri de novo para ela.

- Está explicado?

Ela fez que sim, balançando a cabeça. Seus longos cabelos castanhos balançaram de maneira desajeitada.

- Euller, você quer desenhar comigo?

- Claro, Maria Helena! - Eu não queria que a situação se prolongasse, mas contrariá-la não ia ajudar em nada - O que eu devo desenhar?

- O que você quiser.

Apanhei papel e giz de cera. Mazuka fez menção de falar, mas fiz sinal para que silenciasse. Ele se calou a contragosto. Eu entendia o seu incômodo. Mas eu falaria com ele depois. Havia questões muito mais importantes em jogo no momento.

Sentei-me em uma das carteiras e comecei a desenhar, sem tirar os olhos dela. Mas também procurei caprichar no desenho. Nada ali poderia dar errado.

- Maria Helena, o que você acha do meu desenho? - coloquei o papel no chão, ao lado do desenho dela.

Ela olhou com um ar bastante crítico. Eu não pude deixar de sorrir, eu conhecia aquele ar de superioridade, como se o desenhista fosse um espécime inferior e que estivesse prestes a ser guardado num frasco ou jogado no lixo. Mazuka fazia isso com todos os alunos. Era muito ruim. Não era à toa que ela tinha tantas divergências com ele. Ele não era mau. Mas era uma pessoa difícil de se lidar, especialmente para uma criança vinda de um lar onde o conto de fadas acabara de falir.

- Eu achei seu desenho muito bom, Euller. Eu acho que você merece dez. O professor Mazuka concorda?

- Professor Mazuca, Helena acha que meu desenho merece um dez. O que você acha?

Ele fez o que sempre fazia. Levantou os óculos, fez aquela expressão desagradável e deu seu veredicto:

- Eu concordo com ela. Você se saiu muito bem. E ela fez uma excelente avaliação.

Cortei Mazuca antes que ele estragasse tudo, pecando agora pelo exagero.

- Obrigado, Professor Mazuka. Foi muito gentil de sua parte.

E, voltando-me mais uma vez para Maria Helena:

- Você não está cansada, querida? Não quer ir descansar?

Ela acenou que sim, com a cabeça.

- Mas antes quero terminar uma coisa.

Estendendo-se até onde estava meu desenho, ela escreveu algo nele com seu giz de cera. Depois levantou-se e, batendo a poeira do uniforme, ela finalmente virou-se de frente para mim. Pude então ver o outro lado de sua face, destruído pelo fogo.

Foi uma das poucas vezes que fiquei feliz por ter a experiência que tenho nestes assuntos. Apesar da visão da face desfigurada ter mexido comigo, pude disfarçar meu incômodo. Ela não precisava tomar consciência daquilo. Tampouco iria contar aquele detalhe para Mazuka. A cabeça dele já estava a mil com toda aquela situação.

- Bom, então eu vou indo, Euller. Estou tão cansada...

- Sim, querida, vá tranquila. Está tudo bem. Pode ir descansar agora. - Queria abraçá-la, beijá-la, dizer que eu queria muito ter sido pai dela e que eu ia sentir muitas, mas muitas saudades mesmo. Mas me limitei a sorrir. Eu não queria que nada lhe prendesse aqui, neste mundo, agora que ela já não pertencia mais a ele.

Ela fez um tchauzinho para mim, virou-se e seguiu andando em direção ao fundo da sala. Antes de chegar à parede, ela desapareceu.



xxxx



A copa estava vazia, afinal todos os professores tinham iniciado suas aulas naquele momento. Então eu e Mazuka podíamos conversar à vontade, sem precisar nos preocupar com ninguém, pelo menos pelos próximos quarenta e cinco minutos.

- Euller, você pode me explicar o que é toda esta confusão onde acabei me metendo?

- Embora pareça absurdo, é relativamente simples. - Minha vontade era aproveitar o momento para dar um sermão em Mazuka, porque eu também nunca havia gostado da pose que ele fazia e do modo pedante como tratava os alunos. Mas sabia que ele fazia tudo isso porque era tímido e inseguro. Tratar-lhe com dureza não o ajudaria a aprender nada com aquela situação.

Ajeitando meus óculos, continuei minha explicação:

- Maria Helena admirava muito você. Ela sempre foi uma excelente desenhista, você sabe disso. E admirava você, não apenas por sua habilidade em desenho, mas também por ser capaz de ensinar as pessoas a desenhar.

- Nunca percebi isso...

Acabei sentindo pena do pobre coitado. Tinha um talento enorme para desenho, pintura e design, mas era um zero à esquerda quando se tratava de pessoas.

- Mas é verdade. Ela me disse isso várias vezes, quando ainda era viva. Então, quando cheguei aqui e meu pai disse que algumas das suas alunas começaram a gritar no meio de sua aula que estavam vendo o fantasma dela, eu logo entendi o que estava acontecendo. Ela queria resolver suas diferenças com você antes de partir. Morrer pode ser uma coisa confusa, ainda mais quando se é criança e se parte de uma forma tão violenta assim, como no incêndio que vitimou Maria Helena

- O que foi que você viu lá em cima? Ela estava realmente lá?

Percebi onde ele estava querendo chegar:

- Você realmente não está acreditando em nada disso, não é?

Ele respirou fundo. E foi sincero:

- Não. Aceitei você aqui porque seu pai, a quem todo mundo admira nesta escola, me disse que você podia ajudar estas pobres meninas histéricas. Mas não achei que você ia acabar me fazendo passar por essa encenação, de ficar falando com o ar, como se fôssemos duas crianças brincando de faz de conta.

- Eu entendo. Mas há algo que você deveria ver, antes de chegar a qualquer conclusão.

E entreguei para ele o desenho que eu havia feito lá no ateliê de artes, quando conversamos com Maria Helena.

Quando ele olhou para o desenho, pude observar a surpresa em seu rosto. Ele estava estupefato. Afinal, escrito com giz de cera no canto inferior direito da página, estava escrito "Dez! Meus parabéns!" E ele conhecia bem aquela letra, sabia que pertencia a Maria Helena.

- Meu Deus, esse seu dom deve ser horrível, né? Ficar falando com os mortos....

- Existem raras vezes em que vale a pena. Esta foi uma delas. Bom, até logo, professor.

- Até logo e obrigado, Euller.

Deixei Mazuka na copa e fui até um banheiro que ficava nos fundos da oficina de manutenção, o pequeno império de meu pai dentro daquela escola. Fui lá porque sabia que ali eu não seria incomodado. Tranquei a porta e finalmente me permiti chorar.

Chorei como se minhas lágrimas pudessem lavar minha alma, meus pecados, minha tristeza. Chorei como se o próprio Deus tivesse me pedido para afogar de novo o mundo sob um dilúvio, desta vez proveniente de minhas lágrimas.

fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/09/quando-os-anjos-nao-querem-voar.html

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Rosa aos Mortos



Nos Longínquos anos de 18..., quando o mundo ainda era um lugar assaz aprazível de se viver, eu, em meus dezenove anos, travava conversa com Mr. Oliver, já em seus avançados noventa. Naquela época, viver tanto assim era uma dádiva, mas não para Mr. Oliver. Seus ataques epilépticos aconteciam com uma frequência cada vez maior: Os espasmos e acessos de tosse eram praticamente intermináveis. Eu, vendo-o definhar e sofrer, nada podia fazer senão visitá-lo sempre que possível, contando notícias sobre o mundo. Ele, com seus olhos fechados, ouvidos apurados, escutava a tudo, concordava vez ou outra e, raras vezes, adicionava algum comentário a nossa conversação. Então, quando, em certa ocasião de longo silêncio meditativo, ele falou-me em tom emocionado e voz límpida, não pude deixar de me surpreender.


      — Tu és um bom amigo, um ótimo amigo... – falava com ponderação, como se tivesse ensaiando as palavras em sua mente. – Sempre vens aqui quando podes, fala-me do mundo, areja-me o ambiente e até mesmo me acode quando meus ataques se tornam evidentes.

      Eu estava já a ponto de falar que aquilo eram besteiras, que qualquer bom amigo faria o mesmo, mas ele cortou-me antes que tivesse a oportunidade.

      — Ouça-me, depois fales o que quiseres. – Seu tom autoritário me surpreendeu, mas calei-me sumariamente. – Meu tempo neste mundo já não tardará a expirar, isso é claro e evidente a qualquer tapado que tenha dois olhos enfiados na cara. É por isso, meu amigo, que tenho um pedido a lhe fazer, talvez o meu último e mais importante.

      — Ora, homem, não gaste tuas energias em preâmbulos! – Eu disse logo, ao ver que ele se calara, de olhos fechados. Parecia descansar de tanto falar.

      — Quero que compres um buquê de rosas brancas, meu amigo, e me leves, da forma como achar melhor, até o túmulo de minha Isabelle.

      Das poucas vezes em que Mr. Oliver travou conversa comigo, muito falava sobre Isabelle. Eu sabia que ela era apenas uma menina quando veio a falecer – tinha pouco mais de dezessete ou dezoito anos, não me recordo bem. A tuberculose dera a ela três meses de sofrimento e agonia antes de elevá-la aos céus, e, durante todo o tempo, Mr. Oliver ficou ao lado dela, sendo uma bênção divina não ter contraído a doença infernalmente contagiosa.

      Era estranho Mr. Oliver falar sobre Isabelle agora. Das vezes em que falava sobre ela, geralmente, lembrava-se de seus momentos áureos: falava de seu sorriso, de seus olhos claros, de seu cheiro doce e seu bom humor contagiante. Não guardava tempo para falar de seus defeitos ou da causa de sua morte (o que acabo de relatar acima chegou ao meu conhecimento através de muita conversa com vizinhos e conhecidos de Mr. Oliver).

      — Para quando queres as flores? – Perguntei, resolvendo de imediato que atenderia ao pedido de meu amigo.

      — Para o quanto antes. – ele disse. – Assim que arranjares o dinheiro e comprá-las, venha até aqui. Ajude-me a tomar um bom banho. Preciso vestir uma roupa limpa e engomada. Não posso visitar minha querida do jeito que estou.

      Parecia mais animado!  Por um momento, parecia que a velhice existia apenas estampada em suas rugas, não em seu interior. Não sei o motivo, mas se senti momentaneamente mal. Na época, não entendi porque aquilo aconteceu – julguei até mesmo que estivesse sendo mesquinho ao vê-lo tão alegre –, mas o tempo deixou tudo claro como água.   Foi uma sensação que durou pouco. Logo, senti-me novamente bem e ele voltou a parecer cansado como sempre fora.

      — Providenciarei as flores o quanto antes. – eu disse, avançando até ele e segurando-lhe a mão esquerda. – Até lá, continue firme, meu amigo. Tu terás a oportunidade de visitar a senhorita Isabelle por uma última vez.

      — Obrigado, meu amigo. Obrigado.

      Logo no dia seguinte, contraí empréstimo de meu irmão – coisa boba e irrelevante, mas que não dispunha no momento – e parti para a floricultura mais próxima. Comprei o buquê mais lindo de rosas brancas que já vi em minha vida e, munido dele, fui até a casa de Mr. Oliver.

      — Então tu realmente vieste! – ele comemorou, sorrindo com seus dentes amarelados.

      — Nunca deixaria de cumprir minha palavra a um amigo. – disse. – Gostaste do buquê?

      — Mais lindo impossível. – ele comentou, arrastando-se na cama e sentando-se. – Vamos, ajude-me a tomar um banho e a trocar estas roupas de doente.

      Assim fizemos. Demorei muito tempo dando-lhe um bom banho, esfregando-lhe a pele flácida, tirando-lhe toda a sujeira acumulada durante os dias de cama. Lavei-lhe os cabelos ralos, acinzentados, o rosto cheio de rugas e tudo o mais.

      Já de banho tomado, troquei-lhe as roupas. Ele, falando pouco, tinha olhos brilhantes e um sorriso maroto no rosto. Era como se fosse de novo um adolescente, preparando-se para o primeiro encontro com seu futuro grande amor.

      Lá estava ele: Mr. Oliver, com sua cartola na cabeça, barba feita, cabelos penteados, roupa limpa e engomada. Parecia um barão pronto a entrar em uma festa de alta sociedade.

      — Tome. – disse, estendendo-lhe o buquê. Ele o pegou como se fosse um filho. – Agora vamos.

      Deslizei a cadeira de rodas por toda a cidade – com certa dificuldade, devo admitir, pois o homem, por muito tempo sem praticar nenhum tipo de exercício físico, havia engordado excessivamente –, falando-lhe sobre a cidade e sobre suas mudanças desde a última vez em que ele saíra de casa. Mr. Oliver parecia animado, olhando de um lugar para o outro, reservando sua fala apenas para os comentários mais entusiasmados.

      Por fim, chegamos até o cemitério. O grande portão de ferro estava aberto, convidando-nos a entrar naquele clima ao mesmo tempo mórbido e lindo. A grama dali era a mais verde que já vira em minha vida, e o silêncio me dava uma paz que não sabia explicar. Mas, em conflito com essa sensação boa, recorria-me o pensamento de que ali estavam enterradas pessoas, corpos putrefatos que serviam de combustível para aquela grama permanecer daquela cor. Sentia arrepios ao pensar naquilo – imagine só a confusão de sensações, paz e arrepios ao mesmo tempo. Minha nuca se eriçava quando pensava nos mortos. Lembrava-me das histórias de Allan Poe, onde eles apareciam com frequência, suas órbitas sem olhos, seu cheiro nauseabundo, seu hálito quente e sua pele esverdeada.

      — Onde fica? – perguntei, referindo-me ao jazigo da família da jovem Isabelle.

      — Por ali. – ele apontou. Mr. Oliver esquecia-se com facilidade das coisas, mas parecia haver guardado lugar especial em sua memória para aquela ocasião. – Um pouco mais a frente. Isso, vire na próxima direita.

      Segui suas instruções. Não tardou para que chegássemos ao jazigo. Silenciei naquele momento, dando ao vivo e a morta a intimidade que um casal merece. Ele ficou muito tempo ali, contemplando as palavras de pedra do epitáfio, com lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto. 

      — Ajude-me a levantar, amigo. – ele disse, estendendo a mão e segurando a minha. – Quero fazer as honras de pé.

      Mesmo sabendo que não o aguentaria por muito tempo, concordei. Peguei-o pelo braço e ele, fazendo-me de suporte, apoiou-se em mim. Revelou-se assombrosamente leve, como se estivesse apenas segurando a minha mão.

      Logo me senti fraco, da mesma forma que me senti da vez em que o vi sorrindo em seu quarto, mas dessa vez em maior intensidade. Olhei para Mr. Oliver, tentando me desvencilhar de suas mãos, mas elas revelaram-se como garras e não me soltavam de forma alguma. Senti ainda mais fraqueza, e, ao fitá-lo, ele tinha os olhos mais vivos que já vi em minha vida. Suas rugas não existiam mais: a flacidez de sua pele desaparecera.

      Sugou minha vida até a última centelha, e depois caí, mortificado, sentindo a grama em meu rosto.

      Pude ver que ele se abraçava ao túmulo de Ms. Isabelle, como se estivesse abraçando a própria mulher. Vi – não, meus olhos não poderiam me enganar naquele momento – como se um fio de vida saísse do coração de Mr. Oliver e entrasse no túmulo, atravessando a pedra e a madeira. Logo depois, percebi que ele empurrava a pedra do jazigo dela com aparente facilidade.

      — Eu disse que conseguiria, meu amor. – ele disse, puxando a mão de Ms. Isabelle do caixão. Apesar de suas roupas surradas e carcomidas pelo tempo, ela tinha a mesma beleza dos seus dezoito anos novamente.

      — Como você...? – ela perguntou, mas não terminou sua sentença. Viu meu corpo estendido ali, com os olhos abertos e fixos na cena, a pele esverdeada grudada aos ossos, as bochechas encovadas e expressão de puro terror. – A que preço, meu amor! A que preço!

      — Não te preocupes. – ele disse, pegando-lhe a mão. – Aprimorarei minhas técnicas, minha querida. Ele é um grande amigo, muito maior do que pensas. Voltarei assim que aprender tudo quanto for necessário.

      Partilhando de minha vitalidade com Ms. Isabelle, Mr. Oliver parecia ter cerca de quarenta anos. Eu não passava de uma massa centenária de ossos e pele apodrecida. Não foi com dificuldade que ele conseguiu me erguer e colocar-me no caixão. Antes de repor a pedra ao seu lugar, aproximou-se de meu rosto e sussurrou.

      — Não se preocupe, meu amigo. Você será recompensado. Desculpe por não tê-lo explicitado minhas intenções.   Senti uma lágrima dele cair em meu rosto antes que o túmulo fosse fechado.

      Não lhe guardo rancor. Sei que a paixão é muito maior do que o amor fraternal que um amigo nutre pelo outro. De início senti-me traído, mas, como dizem os sábios, o tempo é o senhor da razão. Refleti muito sobre todo o ocorrido e percebi que talvez a minha danação fosse a felicidade de duas grandes pessoas.

      Ainda o espero aqui, com meu corpo trancado a esse jazigo, enquanto minha alma vagueia pelo lugar, vendo as mudanças que se operam no mundo.

      Sei que um dia ele virá! Ele sabe que eu o espero; sei ainda que ele não tem noites tranquilas sem que eu lhe povoe os pesadelos, e esse é o meu conforto. Cedo ou tarde, mesmo que apenas para apaziguar sua consciência, ele virá e me tirará daqui.

Fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/10/rosa-aos-mortos.html