Alucinação
– Sente-se, por favor. – Disse o Dr. Offenbach.
A mulher obedeceu.
Offenbach, de mãos em concha, uniu os longos dedos pelas extremidades e perscrutou a figura atentamente. A senhora Sílvia Anabel Pissarro de Quiroga era uma mulher na casa dos trinta anos. Gestos comedidos, poderia insinuar uma grave elegância, não fosse todo aquele esforço em conter as torrentes de um espírito atribulado. Estranhamente pálida, tinha o rosto oval e os cabelos quase negros. Os olhos eram uma escura sombra de cansaço. A aflição no olhar a deixava singularmente bela. Agradeceu ao médico com um leve arquear de sobrancelhas.
– Bom dia – disse o Dr. Offenbach. – Sônia Paes falou-me perfunctoriamente sobre o seu problema. A senhora deve estar a par de que estou praticamente aposentado. Não pego um caso há vários anos. Se tivermos que trabalhar juntos, exijo – note bem! –, exijo sinceridade absoluta. Quero toda a verdade. A senhora deve responder a tudo o quanto eu perguntar. E nada, nada mesmo, pode ser falseado ou omitido. Está disposta a colaborar?
A mulher limitou-se a concordar com a cabeça. Offenbach prosseguiu:
– Sônia Paes recusou-se a tratá-la porque é sua amiga íntima. E recorreu a mim porque acredita que eu sou um de seus melhores colegas. Sônia foi uma das mais brilhantes alunas que eu tive. Mas não sei se fez bem em passar o caso para mim. Estou muito velho, antiquado, e não sei se você confia em mim.
Pela primeira vez, a Sra. Pissarro abriu a boca para falar:
– Confio em Sônia. Se ela pediu que eu o procurasse, é porque posso confiar inteiramente no senhor.
– Muito bem, Sra. Pissarro. Conte-me tudo.
– Como assim?
– Comecemos com uma descrição. Faça-me uma síntese de seu problema.
O médico não pareceu nem um pouco consternado com a onda de aflição que atingiu o seu velho cais, vindo de uma mulher que parecia sinceramente surpreendida por um golpe de vento áspero e desleal.
– Sinceridade absoluta, Sra. Pissarro – continuou, enfático.
A jovem baixou os olhos, ansiosa.
– Eu vejo coisas – articulou, gélida e imóvel como uma bela estátua de bronze.
– Que coisas?
– Vejo pessoas que já morreram.
– Pessoas? – indagou o médico, inflexível. – Não está me omitindo algo?
– Pessoas, não. Mas uma determinada pessoa – Pissarro respondeu, trêmula.
– Quem?
– Horácio, meu marido.
– Em que circunstâncias o seu marido faleceu, senhora Pissarro?
O rosto dela crispou-se. Pareceu envelhecer em segundos. Ergueu o olhar para o psiquiatra, implorando:
– É mesmo necessário que eu conte? O senhor já deve saber. Sônia contou.
– Preciso ouvir de você mesma. Suas impressões pessoais são importantes. A leitura de sua expressão gestual é importante. Tudo em você é importante, senhora. O que você disser, ficará lacrado neste velho cofre. Eu sou o cofre. Só coisas importantes e secretas têm lugar num velho e seguro cofre como eu.
– Creio que eu o matei.
– Como assim, creio? Não tem certeza?
– Eu deveria ter descartado as ampolas. As malditas ampolas. Mas, sinceramente, não sei se o fiz. Não consigo me lembrar. Tenho a impressão que me desfiz delas. Mas é algo vago, ente o sonho e a realidade. Só sei que ele as encontrou.
– Com que frequência você vê Horácio?
A mudança de rumo na inquirição ofereceu um certo alívio a Sílvia Pissarro.
– A princípio, era algo ocasional. Ele apareceu a mim, pela primeira vez, em nosso aniversário de casamento. Depois, no meu aniversário. No aniversário de sua morte, eu me preparei. E não errei. Lá estava ele, de roupão, sentado em sua poltrona de veludo magenta, olhando para mim com os olhos espantados, em agonia. E não mais saiu de lá. Ele sempre está lá, recostado na poltrona, imóvel, silencioso, com a face desfigurada pelo assombro, pelo medo.
– Entendo – disse o doutor. – Há histórico de esquizofrenia em sua família?
– Não que eu saiba. Tenho pais, irmão, tios e avós saudáveis. O senhor acha...
– Tenha calma, Sílvia. Muita calma. Vamos aos poucos. Além do fantasma – digamos assim – de Horácio, algo mais a perturba?
– Não.
- Tem certeza?
– Tenho.
– Ouve vozes?
– Nunca.
– Já tomou barbitúricos? Anfetaminas?
– Não.
– LSD?
– Não.
– Bebe com frequência?
– Não.
– Tem ideias suicidas?
– Não antes de Horácio reaparecer. É difícil vê-lo todos os dias... naquele estado de agonia.
– Alguma vez, na sua vida, mesmo na infância ou adolescência, ouviu vozes ou viu fantasmas? – insistiu o doutor.
– Nunca tive amiguinhos imaginários ou vi seres de outros mundo. Até Horácio se instalar na poltrona magenta e não mais sair de lá.
– Às vezes, cara Sílvia, a mente nos prega umas pecinhas desagradáveis. Não creio que você seja esquizofrênica, mas não estou completamente certo disto. No que tange à mente, nada pode ser descartado e nada é impossível. Em tese, nem mesmo os estados de imensa tensão, nem mesmo o sentimento de culpa exacerbado, nada disso é potente demais para provocar alucinações tão intensas. Mas, sinceramente, não creio que esteja diante de uma mulher que instalou uma ruptura absurda e irremediável com o mundo exterior. Voltemos, pois, às tensões e ao sentimento de culpa. Talvez sua mente haja elaborado um traiçoeiro teatrinho. É preciso, então, reescrever o roteiro. Com a minha ajuda.
– É tudo o quanto eu quero.
– Horácio nunca lhe diz nada, certo?
– Certo.
– Está sempre letárgico, inerte, catatônico.
– Isto mesmo.
– Você acredita em fantasmas, senhora Pissarro?
– A princípio foi o que eu pensei. Imaginei que via um fantasma. Agora sei que estou doente. Sônia, que respira espiritismo e acredita nestas coisas, não acha que eu esteja vendo fantasmas ou espectros do outro mundo.
– Nessas tolas e vulgares histórias de fantasmas, os mortos voltam do além porque algo não ficou resolvido. O fantasma é um ente eminentemente irresoluto. Aparece para que certas coisas sejam cumpridas. Não é sempre assim?
– Nem sempre – objetou Sílvia Pissaro. – Às vezes querem nos dizer coisas que não puderam fazê-lo enquanto vivos. Já ouvi coisas assim.
– É verdade! É verdade!
– Mas o que têm os fantasmas a ver com o meu transtorno?
– Nada a ver. Todavia, podem nos inspirar um método.
– Não entendo.
– Lembra-se de nosso teatrinho? Façamos Horácio falar. É nele que reside o seu inconsciente, cara Sílvia. Então, é lá que estão as respostas. Façamos Horácio falar. Vejamos o que não ficou resolvido, ou o que ele tem a dizer.
– O senhor está me sugerindo que converse com uma ilusão?
– Exatamente.
– Quer que eu faça como os loucos? Que fique falando sozinha? Ou melhor, para uma poltrona vazia?
– Isto mesmo.
– Talvez faça sentido, afinal.
***
Sílvia Anabel Pissarrro de Quiroga girou as chaves do apartamento, empurrou a maçaneta e levou a mão para o interruptor. Fez tudo isso pensando no que diria à poltrona magenta, onde a sua imaginação enfermiça pusera a sentar-se, indefinidamente, o fantasma de um marido morto há quase três anos. A luz acendeu. A poltrona estava surpreendentemente vazia.
Apenas uma conversa sobre delírios fantasmagóricos com um ancião psiquiatra e tudo se resolvia, como por encanto? Era bom demais para ser verdade.
Sílvia deixou-se conduzir a cada um dos cômodos da casa. No quarto, viu que não estava só. Havia alguém em sua cama. Mas não era Horácio.
Uma mulher acabara de erguer-se. Caminhou em direção a Sílvia, passando por ela sem parecer notá-la. Mesmo sabendo que tudo não passava de uma alucinação, Sílvia sentiu um imenso calafrio. Com os pelos eriçados, foi no encalço daquela silhueta apavorante. Na sala, a luz estava acesa. Sílvia viu, terrificada, a si mesma dirigindo-se, quase cambaleante, à cozinha, usando a ridícula camisola de ursinhos dourados. A Sílvia-alucinação foi à geladeira. A outra ligou o interruptor, a tempo de ver a sua miragem examinar sonolentamente as ampolas. O fantasma acionou o pedal da lixeira e, preguiçosamente, mergulhou-as no saco, uma a uma.
O espectro de camisola de ursinhos passou novamente pela Sílvia de carne e osso e, de súbito, voltou-se para ela. Mas, agora, como num sonho de alucinógeno, não era a Sílvia-delírio quem retornava à cozinha. Era Horácio. Vestia um roupão cinza e parecia angustiado. Foi à geladeira. Mexeu, remexeu. A ávida procura resultou em imensa frustração, porque o homem bateu violentamente a porta da geladeira e a esmurrou com ambas as mãos. Sílvia viu o marido esquadrinhar todo o apartamento, numa busca frenética pelas ampolas, até encontrá-las no lixo da cozinha. Foi terrível ver o marido, reclinado na poltrona, com seringa na mão, mergulhar a agulha na veia do braço esquerdo, enquanto jogava a cabeça para trás e fechava os olhos, imprimindo na face uma outra face, uma face de morte, um esgar de alívio e pavor...
– Adeus – disse Horácio, olhando para Sílvia, enquanto esfumava, evanecente.
***
Disse o Dr. Offenbach:
– Sente-se, por favor.
A mulher obedeceu.
Offenbach, sempre de mãos em concha, com as pontas dos dedos unidas, mirou a figura com ar de aprovação. A senhora Pissarro era uma mulher bem mais jovem do que aquela trintona de um mês atrás.
– E então? – indagou o médico. – Parece que o nosso teatrinho surtiu efeito. Falou com o fantasma? O que ele lhe disse?
– Aconteceu uma coisa estranha. Ele não me disse nada. Mas me mostrou o que aconteceu. Eu deveria ter sido mais cautelosa, sem dúvida. Mas não poderia imaginar que ele fugiria da clínica, que ele voltaria para casa naquela mesma noite...
– Vamos com calma. A calma é sempre bem-vinda.
– No dia em que Horácio morreu, eu havia chegado do exterior, do Oriente, dois dias mais cedo do que o previsto. Não encontrei Horácio em casa. Liguei para ele, mas ele não atendeu. Disquei, então, para a minha sogra, e ela me disse que o filho tivera uma recaída e fora levado inconsciente à clínica de reabilitação na noite anterior. Em cada recaída, minavam as ampolas. E eu deveria me livrar delas, urgentemente. Sentei na cama para pensar em que fazer, mas estava cansada demais. Acabei adormecendo. Quando acordei, já era noite. Levantei-me e fui à cozinha. Estava semiadormecida, mas com sede. Vi as malditas ampolas e as joguei no lixo. Voltei à cama e apaguei. No dia seguinte, de manhã, encontrei o meu marido morto na poltrona magenta. Mas não me recordava precisamente de ter-me levantado durante a noite, e nem ao certo do que fizera. Tudo me parecia muito enevoado, confuso...
– Parece que o sentimento de culpa a abandonou. Ao menos o suficiente para desvelar a inevitabilidade dos acontecimentos. E, com a culpa, também se foi o seu marido.
– Acho que ele não voltará mais.
– Esteja certa disto – concluiu o médico. – Enquanto você tomava as suas, eu também tomava as minhas providências. Tenho certeza de que agora tudo está resolvido. Dou a minha palavra que Horácio jamais, nunca mais, voltará a sentar-se na cadeira magenta.
Quando os passos de Sílvia reverberaram no corredor, Offenbach sorriu, satisfeito. Este fora realmente um grande caso. Um caso difícil: recuperar uma alma em desespero, sem traumatizar uma outra, mergulhada no horror e na angústia. Desde que falecera, há mais de vinte anos, o velho psiquiatra continuara a exercer a sua profissão no outro escaninho da existência humana. Agora, dedicava-se a conduzir os espíritos perdidos – as almas penadas – às reconfortantes e luminosas pradarias das dimensões etéreas.
Pouco a pouco, a silhueta de Offenbach desvaneceu num redemoinho cintilante, que vagarosamente ascendeu em tênues estratos circunvolutos.
– Sente-se, por favor. – Disse o Dr. Offenbach.
A mulher obedeceu.
Offenbach, de mãos em concha, uniu os longos dedos pelas extremidades e perscrutou a figura atentamente. A senhora Sílvia Anabel Pissarro de Quiroga era uma mulher na casa dos trinta anos. Gestos comedidos, poderia insinuar uma grave elegância, não fosse todo aquele esforço em conter as torrentes de um espírito atribulado. Estranhamente pálida, tinha o rosto oval e os cabelos quase negros. Os olhos eram uma escura sombra de cansaço. A aflição no olhar a deixava singularmente bela. Agradeceu ao médico com um leve arquear de sobrancelhas.
– Bom dia – disse o Dr. Offenbach. – Sônia Paes falou-me perfunctoriamente sobre o seu problema. A senhora deve estar a par de que estou praticamente aposentado. Não pego um caso há vários anos. Se tivermos que trabalhar juntos, exijo – note bem! –, exijo sinceridade absoluta. Quero toda a verdade. A senhora deve responder a tudo o quanto eu perguntar. E nada, nada mesmo, pode ser falseado ou omitido. Está disposta a colaborar?
A mulher limitou-se a concordar com a cabeça. Offenbach prosseguiu:
– Sônia Paes recusou-se a tratá-la porque é sua amiga íntima. E recorreu a mim porque acredita que eu sou um de seus melhores colegas. Sônia foi uma das mais brilhantes alunas que eu tive. Mas não sei se fez bem em passar o caso para mim. Estou muito velho, antiquado, e não sei se você confia em mim.
Pela primeira vez, a Sra. Pissarro abriu a boca para falar:
– Confio em Sônia. Se ela pediu que eu o procurasse, é porque posso confiar inteiramente no senhor.
– Muito bem, Sra. Pissarro. Conte-me tudo.
– Como assim?
– Comecemos com uma descrição. Faça-me uma síntese de seu problema.
O médico não pareceu nem um pouco consternado com a onda de aflição que atingiu o seu velho cais, vindo de uma mulher que parecia sinceramente surpreendida por um golpe de vento áspero e desleal.
– Sinceridade absoluta, Sra. Pissarro – continuou, enfático.
A jovem baixou os olhos, ansiosa.
– Eu vejo coisas – articulou, gélida e imóvel como uma bela estátua de bronze.
– Que coisas?
– Vejo pessoas que já morreram.
– Pessoas? – indagou o médico, inflexível. – Não está me omitindo algo?
– Pessoas, não. Mas uma determinada pessoa – Pissarro respondeu, trêmula.
– Quem?
– Horácio, meu marido.
– Em que circunstâncias o seu marido faleceu, senhora Pissarro?
O rosto dela crispou-se. Pareceu envelhecer em segundos. Ergueu o olhar para o psiquiatra, implorando:
– É mesmo necessário que eu conte? O senhor já deve saber. Sônia contou.
– Preciso ouvir de você mesma. Suas impressões pessoais são importantes. A leitura de sua expressão gestual é importante. Tudo em você é importante, senhora. O que você disser, ficará lacrado neste velho cofre. Eu sou o cofre. Só coisas importantes e secretas têm lugar num velho e seguro cofre como eu.
– Creio que eu o matei.
– Como assim, creio? Não tem certeza?
– Eu deveria ter descartado as ampolas. As malditas ampolas. Mas, sinceramente, não sei se o fiz. Não consigo me lembrar. Tenho a impressão que me desfiz delas. Mas é algo vago, ente o sonho e a realidade. Só sei que ele as encontrou.
– Com que frequência você vê Horácio?
A mudança de rumo na inquirição ofereceu um certo alívio a Sílvia Pissarro.
– A princípio, era algo ocasional. Ele apareceu a mim, pela primeira vez, em nosso aniversário de casamento. Depois, no meu aniversário. No aniversário de sua morte, eu me preparei. E não errei. Lá estava ele, de roupão, sentado em sua poltrona de veludo magenta, olhando para mim com os olhos espantados, em agonia. E não mais saiu de lá. Ele sempre está lá, recostado na poltrona, imóvel, silencioso, com a face desfigurada pelo assombro, pelo medo.
– Entendo – disse o doutor. – Há histórico de esquizofrenia em sua família?
– Não que eu saiba. Tenho pais, irmão, tios e avós saudáveis. O senhor acha...
– Tenha calma, Sílvia. Muita calma. Vamos aos poucos. Além do fantasma – digamos assim – de Horácio, algo mais a perturba?
– Não.
- Tem certeza?
– Tenho.
– Ouve vozes?
– Nunca.
– Já tomou barbitúricos? Anfetaminas?
– Não.
– LSD?
– Não.
– Bebe com frequência?
– Não.
– Tem ideias suicidas?
– Não antes de Horácio reaparecer. É difícil vê-lo todos os dias... naquele estado de agonia.
– Alguma vez, na sua vida, mesmo na infância ou adolescência, ouviu vozes ou viu fantasmas? – insistiu o doutor.
– Nunca tive amiguinhos imaginários ou vi seres de outros mundo. Até Horácio se instalar na poltrona magenta e não mais sair de lá.
– Às vezes, cara Sílvia, a mente nos prega umas pecinhas desagradáveis. Não creio que você seja esquizofrênica, mas não estou completamente certo disto. No que tange à mente, nada pode ser descartado e nada é impossível. Em tese, nem mesmo os estados de imensa tensão, nem mesmo o sentimento de culpa exacerbado, nada disso é potente demais para provocar alucinações tão intensas. Mas, sinceramente, não creio que esteja diante de uma mulher que instalou uma ruptura absurda e irremediável com o mundo exterior. Voltemos, pois, às tensões e ao sentimento de culpa. Talvez sua mente haja elaborado um traiçoeiro teatrinho. É preciso, então, reescrever o roteiro. Com a minha ajuda.
– É tudo o quanto eu quero.
– Horácio nunca lhe diz nada, certo?
– Certo.
– Está sempre letárgico, inerte, catatônico.
– Isto mesmo.
– Você acredita em fantasmas, senhora Pissarro?
– A princípio foi o que eu pensei. Imaginei que via um fantasma. Agora sei que estou doente. Sônia, que respira espiritismo e acredita nestas coisas, não acha que eu esteja vendo fantasmas ou espectros do outro mundo.
– Nessas tolas e vulgares histórias de fantasmas, os mortos voltam do além porque algo não ficou resolvido. O fantasma é um ente eminentemente irresoluto. Aparece para que certas coisas sejam cumpridas. Não é sempre assim?
– Nem sempre – objetou Sílvia Pissaro. – Às vezes querem nos dizer coisas que não puderam fazê-lo enquanto vivos. Já ouvi coisas assim.
– É verdade! É verdade!
– Mas o que têm os fantasmas a ver com o meu transtorno?
– Nada a ver. Todavia, podem nos inspirar um método.
– Não entendo.
– Lembra-se de nosso teatrinho? Façamos Horácio falar. É nele que reside o seu inconsciente, cara Sílvia. Então, é lá que estão as respostas. Façamos Horácio falar. Vejamos o que não ficou resolvido, ou o que ele tem a dizer.
– O senhor está me sugerindo que converse com uma ilusão?
– Exatamente.
– Quer que eu faça como os loucos? Que fique falando sozinha? Ou melhor, para uma poltrona vazia?
– Isto mesmo.
– Talvez faça sentido, afinal.
***
Sílvia Anabel Pissarrro de Quiroga girou as chaves do apartamento, empurrou a maçaneta e levou a mão para o interruptor. Fez tudo isso pensando no que diria à poltrona magenta, onde a sua imaginação enfermiça pusera a sentar-se, indefinidamente, o fantasma de um marido morto há quase três anos. A luz acendeu. A poltrona estava surpreendentemente vazia.
Apenas uma conversa sobre delírios fantasmagóricos com um ancião psiquiatra e tudo se resolvia, como por encanto? Era bom demais para ser verdade.
Sílvia deixou-se conduzir a cada um dos cômodos da casa. No quarto, viu que não estava só. Havia alguém em sua cama. Mas não era Horácio.
Uma mulher acabara de erguer-se. Caminhou em direção a Sílvia, passando por ela sem parecer notá-la. Mesmo sabendo que tudo não passava de uma alucinação, Sílvia sentiu um imenso calafrio. Com os pelos eriçados, foi no encalço daquela silhueta apavorante. Na sala, a luz estava acesa. Sílvia viu, terrificada, a si mesma dirigindo-se, quase cambaleante, à cozinha, usando a ridícula camisola de ursinhos dourados. A Sílvia-alucinação foi à geladeira. A outra ligou o interruptor, a tempo de ver a sua miragem examinar sonolentamente as ampolas. O fantasma acionou o pedal da lixeira e, preguiçosamente, mergulhou-as no saco, uma a uma.
O espectro de camisola de ursinhos passou novamente pela Sílvia de carne e osso e, de súbito, voltou-se para ela. Mas, agora, como num sonho de alucinógeno, não era a Sílvia-delírio quem retornava à cozinha. Era Horácio. Vestia um roupão cinza e parecia angustiado. Foi à geladeira. Mexeu, remexeu. A ávida procura resultou em imensa frustração, porque o homem bateu violentamente a porta da geladeira e a esmurrou com ambas as mãos. Sílvia viu o marido esquadrinhar todo o apartamento, numa busca frenética pelas ampolas, até encontrá-las no lixo da cozinha. Foi terrível ver o marido, reclinado na poltrona, com seringa na mão, mergulhar a agulha na veia do braço esquerdo, enquanto jogava a cabeça para trás e fechava os olhos, imprimindo na face uma outra face, uma face de morte, um esgar de alívio e pavor...
– Adeus – disse Horácio, olhando para Sílvia, enquanto esfumava, evanecente.
***
Disse o Dr. Offenbach:
– Sente-se, por favor.
A mulher obedeceu.
Offenbach, sempre de mãos em concha, com as pontas dos dedos unidas, mirou a figura com ar de aprovação. A senhora Pissarro era uma mulher bem mais jovem do que aquela trintona de um mês atrás.
– E então? – indagou o médico. – Parece que o nosso teatrinho surtiu efeito. Falou com o fantasma? O que ele lhe disse?
– Aconteceu uma coisa estranha. Ele não me disse nada. Mas me mostrou o que aconteceu. Eu deveria ter sido mais cautelosa, sem dúvida. Mas não poderia imaginar que ele fugiria da clínica, que ele voltaria para casa naquela mesma noite...
– Vamos com calma. A calma é sempre bem-vinda.
– No dia em que Horácio morreu, eu havia chegado do exterior, do Oriente, dois dias mais cedo do que o previsto. Não encontrei Horácio em casa. Liguei para ele, mas ele não atendeu. Disquei, então, para a minha sogra, e ela me disse que o filho tivera uma recaída e fora levado inconsciente à clínica de reabilitação na noite anterior. Em cada recaída, minavam as ampolas. E eu deveria me livrar delas, urgentemente. Sentei na cama para pensar em que fazer, mas estava cansada demais. Acabei adormecendo. Quando acordei, já era noite. Levantei-me e fui à cozinha. Estava semiadormecida, mas com sede. Vi as malditas ampolas e as joguei no lixo. Voltei à cama e apaguei. No dia seguinte, de manhã, encontrei o meu marido morto na poltrona magenta. Mas não me recordava precisamente de ter-me levantado durante a noite, e nem ao certo do que fizera. Tudo me parecia muito enevoado, confuso...
– Parece que o sentimento de culpa a abandonou. Ao menos o suficiente para desvelar a inevitabilidade dos acontecimentos. E, com a culpa, também se foi o seu marido.
– Acho que ele não voltará mais.
– Esteja certa disto – concluiu o médico. – Enquanto você tomava as suas, eu também tomava as minhas providências. Tenho certeza de que agora tudo está resolvido. Dou a minha palavra que Horácio jamais, nunca mais, voltará a sentar-se na cadeira magenta.
Quando os passos de Sílvia reverberaram no corredor, Offenbach sorriu, satisfeito. Este fora realmente um grande caso. Um caso difícil: recuperar uma alma em desespero, sem traumatizar uma outra, mergulhada no horror e na angústia. Desde que falecera, há mais de vinte anos, o velho psiquiatra continuara a exercer a sua profissão no outro escaninho da existência humana. Agora, dedicava-se a conduzir os espíritos perdidos – as almas penadas – às reconfortantes e luminosas pradarias das dimensões etéreas.
Pouco a pouco, a silhueta de Offenbach desvaneceu num redemoinho cintilante, que vagarosamente ascendeu em tênues estratos circunvolutos.
fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/10/alucinacao.html
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