A Balsa - Stephen King (Parte 1)
São uns sessenta e cinco quilômetros, da Universidade Horlicks, em Pittsburgh, até o Lago Cascade, e embora em outubro escureça cedo nessa parte do mundo, e apesar deles só partirem às seis horas, ainda havia uma ligeira claridade no céu quando chegaram lá. Tinham ido no Camaro de Deke. Deke não perdia tempo, se estava sóbrio. Após duas cervejas, fazia o Camaro caminhar e falar. Ele mal havia parado o carro junto à cerca de estacas, entre o pátio de estacionamento e a praia, quando saltou para o chão e tirou a camisa. Seus olhos esquadrinhavam a água, à procura da balsa. Randy saiu do banco ao lado do motorista, algo relutante. A idéia tinha sido sua, claro, porém nunca esperara que Deke a levasse a sério. As garotas se remexiam no banco traseiro, preparando-se para descer.Os olhos de Deke perscrutaram as águas incessantemente, de um lado para outro (olhos de atirador de tocaia, pensou Randy, desconfortavelmente), e então se fixaram em um ponto.
— Está lá! — gritou, dando um tapa no capô do Camaro. — Bem como você disse, Randy! Que barato! O último a chegar é um ovo podre!
— Deke... — começou Randy. Recolocava os óculos no nariz, mas isso foi tudo com que preocupar-se, porque Deke já pulava a cerca e descia correndo para a praia, sem se virar para trás, sem olhar para Randy, para Rachel ou LaVerne, concentrado apenas na balsa, ancorada no lago, a uns cinqüenta metros da margem.
Randy se virou, como se desculpando com as garotas por envolvê-las naquilo, mas elas olhavam para Deke — que Rachel olhasse para ele, tudo bem, porque era a namorada de Deke, mas LaVerne também o olhava, de modo que Randy sentiu uma quente e momentânea fagulha de ciúme, que o obrigou a movimentar-se. Despojou-se de sua camisa de malha para atletismo, deixou-a cair ao lado da de Deke e saltou a cerca.
— Randy! — chamou LaVerne.
Ele apenas estirou o braço naquele cinzento ar de crepúsculo de outubro, em um gesto de "vamos", odiando-se um pouco por agir assim — ela agora estava insegura, talvez pronta para desistir. A idéia de uma sessão de natação em outubro, no lago deserto, não havia sido apenas parte de uma bem iluminada reunião para conversa fiada no apartamento que ele e Deke não partilhavam mais. Randy gostava dela, porém Deke era mais forte. E uma ova, se LaVerne não estava caída por Deke, uma droga, aquilo ser irritante. Deke abriu o cinto do jeans, ainda correndo, deixando as calças descerem pelas coxas esguias. Conseguiu livrar-se delas no trajeto, sem parar para isso, uma façanha que Randy não conseguiria imitar em mil anos. Deke continuou correndo, agora apenas de sunga, os músculos das costas e nádegas funcionando harmoniosamente.
Randy ficou mais do que consciente de suas canelas finas, quando arriou sua Levi's e desajeitadamente a sacudiu dos pés. Com Deke, parecia balé, com ele, era burlesco. Deke chegou à água e deu um berro.
— Está gelada! Deus do céu!
Randy hesitou, mas apenas em pensamento, onde as coisas demoravam mais — aquela água deve estar a nove graus, dez no máximo, disse sua mente. Seu coração poderia parar. Ele cursava o pré-médico, sabia que isso era verdade... mas, no mundo físico, não vacilou, em absoluto. Saltou para a água e, por um momento, seu coração parou ou assim pareceu; a respiração congelou-se na garganta e ele precisou forçar a entrada de ar nos pulmões, enquanto sua pele submersa ficava entorpecida. Isto é loucura, pensou, e depois: Bem, a idéia foi sua, Pancho. Começou a nadar na esteira de Deke. As duas garotas entreolharam-se por um momento. LaVerne deu de ombros e sorriu.
— Se eles podem, nós também podemos! — exclamou, tirando sua blusa Lacoste e revelando um sutiã quase transparente. — Não dizem que as mulheres têm uma camada extra de gordura?
Em seguida, ela pulava a cerca e corria para a água, desabotoando as calças de brim. Rachel a seguiu um momento depois, mais ou menos como Randy havia seguido Deke.
As garotas tinham chegado ao apartamento pelo meio da tarde. Às terças-feiras, a aula de uma da tarde era a última que todos eles tinham. Chegara a mesada de Deke — um dos ex-alunos, maníaco por futebol (os jogadores os chamavam de "anjos") providenciava para que ele recebesse duzentos dólares mensais em dinheiro — havia uma embalagem de cerveja na geladeira e um álbum novo — Night Ranger — no surrado estéreo de Randy. Os quatro ficaram batendo papo e bebendo alegremente. Após algum tempo, a conversa girou para o final do prolongado veranico que estavam desfrutando. O rádio previa rajadas de vento para a quarta-feira. LaVerne opinou que meteorologistas prevendo rajadas geladas em outubro deviam ser liquidados a tiros, e ninguém discordou.
Segundo Rachel, os verões pareciam durar para sempre quando ela era criança, mas agora que se tornara adulta ("uma tremelicante senil de dezenove anos", brincou Deke, e ela lhe chutou o tornozelo), eles ficavam cada vez mais curtos, de ano para ano.
— Era como se eu tivesse passado a vida inteira no Lago Cascade — falou, cruzando o gasto linóleo da cozinha, até a geladeira. Vistoriou o interior, encontrou uma lata de cerveja escondida atrás de uma pilha de caixas azuis de plástico para guardar alimentos (a do meio continha um chili quase pré-histórico, agora espessamente orlado de mofo — Randy era um bom aluno e Deke um bom jogador de futebol, mas nenhum dos dois valia nada, em se tratando de serviços domésticos) e apoderou-se dela. — Ainda me lembro da primeira vez em que consegui nadar toda a distância até a balsa. Fiquei lá quase duas horas, apavorada, com medo de nadar para a margem.
Sentou-se junto a Deke, que passou um braço em torno dela. Rachel sorriu, recordando.De repente, Randy achou-a parecida com alguém famoso ou quase famoso. Não conseguia encaixar a semelhança. Lembrar-se-ia mais tarde, em circunstâncias menos agradáveis.
— Por fim, meu irmão teve que me rebocar com uma bóia. Puxa, ele ficou louco da vida! E eu tive uma queimadura de sol, que ninguém acreditaria...
— A balsa continua lá — falou Randy, mais para dizer alguma coisa. Percebia que LaVerne estava olhando outra vez para Deke; aliás, ultimamente ela vinha olhando bastante para ele. Agora, no entanto, era para Randy que olhava.
— Já é quase o Dia das Bruxas, Randy. A praia do Cascade esteve fechada desde o Dia do Trabalho.
— Ainda assim, provavelmente a balsa continua lá — disse Randy. — Faz umas três semanas, estivemos na outra margem do lago, em uma excursão geológica de campanha, e eu a vi. Era como... — Ele deu de ombros. — Como algo no verão, que alguém esqueceu de limpar e guardar no armário, até o ano seguinte. Randy pensou que achariam engraçado o que dissera, mas ninguém riu — nem mesmo Deke.
— Só porque a balsa estava lá o ano passado, não significa que ainda esteja — disse LaVerne.
— Falei nisso a um cara — disse Randy, terminando sua cerveja. — Billy DeLois, lembra-se dele, Deke?
Deke assentiu. — Jogava como segundo reserva, até machucar-se.
— Certo, acho que sim. De qualquer modo, ele era de lá e contou que os caras donos da praia só a tiravam de lá quando o lago estava quase congelado. Pura preguiça — pelo menos, foi o que ele disse. Contou que certo ano esperaram tanto, que a balsa ficou bloqueada pelo gelo.
Randy se calou, recordando a aparência da balsa, ancorada no lago — um quadrado brilhante de madeira branca, em toda aquela brilhante água azul do outono. Evocou o som das barricas sob ela — aquele som flutuante de clonk-clonk — que havia chegado até eles. Era um som suave, mas os sons viajam bem no ar imóvel em torno do lago. Houvera esse som e o de corvos grasnando sobre os remanescentes da colheita na horta de algum fazendeiro.
— Vai nevar amanhã — disse Rachel, levantando-se, quando a mão de Deke deslizou, quase alheada, para a curvatura superior de seu busto. Foi até a janela e espiou para fora. — Que droga!
— Pois eu sugiro uma coisa — disse Randy. — Vamos até o Lago Cascade. Nadamos até a balsa, dizemos adeus ao verão e depois nadamos de volta. Se não estivesse meio alto, jamais teria feito a sugestão e, certamente, não esperava que ninguém o levasse a sério. Deke, no entanto, exultou ao ouvi-lo.
— Boa pedida! Chocante, Pancho! Pra lá de chocante! — explodiu ele. LaVerne levantou-se subitamente, derramando sua cerveja. Contudo, ela sorriu — o sorriso que deixava Randy um pouco preocupado. — Iremos até lá!
— Você é louco, Deke — disse Rachel, também sorrindo, mas o riso era algo forçado e inquieto.
— Nada disso, nós vamos lá! — exclamou Deke. Excitado, mas temeroso ao mesmo tempo, Randy reparou no sorriso de Deke — inquieto e um pouco louco. Já fazia três anos que eles dividiam o mesmo quarto — o Atleta e o Cérebro, Cisco e Pancho, Batman e Robin — e Randy identificava aquele sorriso. Deke não estava brincando; resolvera mesmo ir ao lago. Em sua cabeça, já estava quase lá.
— Esquece isso, Cisco, comigo, não. — As palavras lhe chegaram aos lábios, mas antes de pronunciá-las, LaVerne já se tinha levantado, com a mesma expressão prazeirosa e amalucada nos olhos (ou talvez fosse cerveja em excesso).
— Pois eu topo! — exclamou ela.
— Então, a caminho! — Deke olhou para Randy — O que acha, Pancho?
Randy se virou para Rachel por um momento e viu qualquer coisa de quase frenético em seu olhar — no que lhe dizia respeito, Deke e LaVerne poderiam ir para o Lago Cascade e lá ficarem transando a noite inteira; não se alegraria sabendo que os dois estariam trepando como loucos, mas tampouco se surpreenderia. Contudo, aquela expressão no olhar de Rachel, aquele ar obcecado...
— Ohhh, Ciisco! — exclamou.
— Ohhh, Pancho! — gritou Deke, delicado
Um bateu na palma do outro.
Randy estava a meio caminho para a balsa, quando avistou a mancha negra na água. Ficava além da balsa, mais para a esquerda, na direção do meio do lago. Cinco minutos mais tarde, a claridade do entardecer não lhe teria deixado perceber se ali havia algo mais que uma sombra... se chegasse a vê-la, afinal. Mancha de óleo? pensou, ainda avançando com dificuldade na água, vagamente cônscio das garotas dando braçadas mais atrás. De qualquer modo, o que estaria fazendo uma mancha de óleo em um lago, naquele outubro deserto? Aliás, ela era estranhamente circular, pequena, não tendo mais de metro emeio de diâmetro...
— Uaaaan! — tornou a gritar Deke, e Randy olhou em sua direção. Ele subia a escada na lateral da balsa, sacudindo a água como um cão. — Como está se saindo, Pancho?
— Tudo bem! — gritou Randy, nadando com mais vigor.
Em verdade, a coisa não estava tão ruim como imaginara, pelo menos, depois de entrar na água e começar a mover-se. Seu corpo formigava de calor e agora seu motor estava em alta velocidade. Podia sentir o coração batendo com força, aquecendo-o de dentro para fora. Seus pais tinham uma casa em Cape Cod e, lá, a água era mais fria do que aquela, em meados de julho.
— Se acha que agora está ruim, Pancho, espere só até sair! — gritou Deke alegremente.
Estava dando pulos, fazendo a balsa balançar-se, enquanto friccionava o corpo. Randy esqueceu a mancha de óleo, até suas mãos tocarem a áspera madeira pintada de branco da escada virada para a praia. Então, tornou a vê-la. Estava um pouco mais perto. Uma mancha redonda e escura na água, como uma enorme verruga, subindo e descendo com as ondas mansas. Quando a vira pela primeira vez, a mancha estaria a uns quarenta metros da balsa. Agora, estava a metade dessa distância.
Como é possível? Como?
(Continua...)
fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/12/a-balsa-stephen-king-parte-1.html
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