O Tradutor
Quando a proprietária do apartamento me disse, muito a contragosto, que o inquilino anterior havia morrido ali, na hora me ocorreu "O Inquilino", meu filme preferido do Polanski, apesar de não ter sido o caso. O inquilino anterior não tentara o suicídio. Foi encontrado morto depois de um mês quando o mau cheiro começou a impregnar o andar. Causa da morte: infarto fulminante. Segundo consta era solitário e anti-social. Como eu. Ela havia ocultado o fato dos pretendentes anteriores, mas não contara com a tagarelice dos vizinhos, o que resultou em sérias dores de cabeça. Desde então resolveu abrir o jogo logo de cara, rezando intimamente para encontrar um inquilino não supersticioso. Demorou, mas apareci.
Sou tradutor. Porque gosto e, principalmente, porque preciso. Nunca soube lidar com as pessoas e, para falar a verdade, nunca gostei. Durante a infância achavam que eu fosse autista. Houve uma época em que eu também achei. Parece desnecessário dizer como foram a adolescência e a vida universitária de alguém assim. Minha primeira opção de vida profissional foi processamento de dados. Era o início dos anos noventa e o tempo todo se falava na era da informática. Parecia interessante e eu não tinha nada contra os computadores. Mas aí descobri que também não sabia(e nem gostava) de lidar com máquinas. Mas gostava de livros. Adorava, desde criança. Então, rumei para a faculdade de Letras. Posso dizer que me dei bem. Nunca ganhei uma fábula de dinheiro mas, para alguém com minha personalidade e meu estilo de vida, até que tem dado para o gasto. Atualmente trabalho para três editoras.
Quando minha mãe morreu decidi vender o apartamento que ela comprou com tanto sacrifício e alugar outro bem longe dali. Quando chegamos àquele apartamento parecia o início de uma nova vida, mas um ano depois eu já queria me mudar. Resolvi alugar porque não teria para quem deixar após minha morte. Queria algo pequeno(nunca gostei de grandes ambientes). Então, encontrei este apartamento de cinqüenta metros quadrados, dois dormitórios e um passado sombrio. A proprietária tentou relatar o ocorrido apenas como uma fatalidade, algo natural que pode acontecer em qualquer lugar e, ainda mais, com um senhor com mais de cinqüenta anos. Mas era perceptível o temor de que o histórico de seu tão bem cuidado imóvel afastasse mais um interessado. Quase me beijou quando disse que alugaria.
Adoro cinema. Em especial o cinema de terror. Gosto de todos os gêneros, mas tenho uma ligação especial com o cinema do medo. As melhores lembranças que tenho de minha infância e minha adolescência são de estar em frente à tv à noite, geralmente sozinho, morrendo de medo, assistindo àqueles maravilhosos filmes de terror produzidos nos anos 60 e 70. "O Túmulo do Vampiro", "A Invasão das Rãs", "A Volta do Lobisomem", "O Monstro sem Alma", "A Casa Mal Assombrada", "O Expresso do Horror", "A Casa dos Sete Mortos", "O Fogo Diabólico", "A Casa da Noite Eterna", entre outras preciosidades. É doloroso pensar que a tv aberta, um dia, já foi de qualidade. Lembro, com intensa saudade, de estar encolhido no sofá, com a luz acesa, sobressaltando com qualquer ruído e de, após o filme, todo encolhido na cama, cabeça coberta, luz acesa, rezar para cair no sono ou para que amanhecesse logo. Conforme fui crescendo, este medo foi sendo substituído pelo medo de coisas reais, concretas, em parte devido ao meu jeito de ser. Nunca mais havia sentido medo de ruídos, sombras, escuro, de estar sozinho. Até ir morar naquele apartamento.
Começou com meu rádio gravador. Desde o final dos anos 80 tenho o hábito de ouvir rádio de madrugada. Geralmente da meia-noite às três da manhã. Flashbacks. Musicalmente parei nos anos 80. Tenho várias fitas cassetes com músicas que vão até aquele período. Certa madrugada ele simplesmente parou de funcionar. Achei que fosse falta de energia. Não era. Não estranhei, uma vez que ele era bem antigo. Levei para consertar. Lá, na frente do técnico, funcionou perfeitamente bem. Voltamos para casa. Não funcionava. Levei novamente ao técnico. Funcionou divinamente. Pedi a ele para dar uma olhada.
Em seguida foi o vídeo-cassete. Caramba, logo o vídeo. O aparelho de dvd eu nem me importaria. Ele recusou-se a reproduzir uma de minhas fitas e também a devolvê-la. Àquela altura ninguém mais consertava vídeos-cassetes. Tive de sacrificá-lo para recuperar a fita. Ele tinha doze anos. Meu último vídeo-cassete.
Aí então, foi a televisão. Eu havia encontrado um dvd duplo de "Era Uma Vez no Oeste". A televisão não quis nem saber. Recusou-se a funcionar. Ela também era bem antiga e achei que talvez não valesse a pena consertá-la. Deixei-a perto da lixeira do condomínio. Um funcionário me perguntou se podia levá-la. Eu disse que não estava funcionando, que ela já tinha uma certa idade, mas ele a quis mesmo assim. Dias depois eu voltava com meu rádio gravador(O técnico não havia encontrado defeito algum) e encontrei o funcionário que disse que a televisão estava ótima, que não houve necessidade de conserto. O rádio gravador permaneceu em seu silêncio. Seria algum problema de fiação? Informei o caso à proprietária, que enviou um eletricista. Não havia problemas com a fiação. Como eu estava com um certo acúmulo de trabalho(bons tempos) decidi dedicar-me totalmente a ele e deixar para resolver minha carência nostálgica depois.
Como já disse, o apartamento possuía dois dormitórios. Transformei um deles em meu ambiente de trabalho. Possuo dois pen drives(que saudade dos disquetes e saudade maior ainda de quando não havia nada disso). Em um, guardo cópias de meus trabalhos, em outro, lembranças(fotos, pôsteres, artigos que encontro na internet). Os dois ficavam em um compartimento da estante no quarto de trabalho. Certo dia, chegando do supermercado, indo em direção à cozinha, olhei de relance para o meu quarto e algo no chão, no meio do dormitório, chamou a minha atenção. Eram os pen drives, um sobre o outro. Fiquei em pé no meio do quarto segurando os dois e tentando imaginar como eles foram parar ali. Eu havia feito uma faxina no apartamento três dias antes, lembrava-me de tirar o pó da estante, de pegar os pen drives. Talvez os tivesse deixado cair sem perceber e...não, não fazia sentido. Um em cima do outro? Como vieram parar no meu quarto? E como só fui percebê-los ali três dias depois? Nem eu era tão distraído assim. Levei-os até a estante, torcendo para que os meu pen drives estivessem ali e que aqueles em minha mão fossem outros que eu tivesse esquecido que possuía(muito forçado, eu sei). Como eu temia, só havia dois pen drives naquele apartamento. Ao longo de minha existência houve momentos em que duvidei de minha sanidade(deve ser comum em pessoas como eu), mas aquele era o primeiro em que não havia a mais remota possibilidade de uma explicação racional.
Então, vieram as sombras. Pareciam ratos correndo pelo apartamento. Tenho pavor de ratos. Sempre tive, desde a infância. No dia em que me mudei para o meu(da minha mãe, na verdade) primeiro apartamento deixei este medo para trás. Há alguns anos assisti a uma reportagem sobre ratos de telhado. Monstros enormes. Não me assustei muito, já que eles eram comuns em casas e sobrados. Eu então morava no vigésimo andar. A rapidez com que as sombras se moviam fizeram-me cogitar a hipótese de ataques a edifícios também. Eu os localizava com o canto do olho e quando, assustado, voltava-me para sua direção, disparavam em fuga. Em minhas traumáticas experiências com ratos eles nunca fugiram de mim. A muito custo, abordei o zelador e perguntei se havia problemas com ratos no condomínio. Não havia. Até que uma noite avistei uma delas no teto da cozinha(?). Era uma sombra, e correu assim que olhei para ela. No entanto deu para ver que era uma sombra. Naquele instante lembrei-me(muito oportunamente) que há anos eu não voltava ao oculista.
Os barulhos noturnos. Sempre no meu quarto. Primeiro parecia que alguma coisa(um rato?) andava pelo quarto. Não foram poucas as vezes em que me levantei assustado, acendi as luzes e olhei pelos quatro cantos do cômodo procurando(e temendo encontrar) algo que justificasse aquilo. Depois veio o leve ruído de algo se rachando. Eu levantava e olhava todo o piso. Nada. Acontecia apenas no escuro. Então, passei a trabalhar até bem tarde e só parava quando estava caindo(literalmente) de sono. Passei também a dormir no sofá da sala. Estava ficando muito difícil morar naquele apartamento.
Enquanto morava com minha mãe eu passava boa parte do tempo trancado no quarto, fosse trabalhando ou qualquer outra coisa. Mesmo morando sozinho preservei o hábito. Certo dia eu estava trabalhando quando ouvi nitidamente a porta da sala se abrindo e alguém entrando no apartamento. Gelei. Era um roubo. Ouvi claramente esta pessoa andando pela sala. Passei os olhos pelo cômodo procurando algo que pudesse servir como arma e constatei que só poderia ameaçá-la com dicionários. Tomei coragem(o fato de ainda ser dia contribuiu muito para isso) e saí do quarto. Ninguém na sala e nem em outro cômodo. A porta da sala estava fechada. Estava trancada e a chave na mesinha de centro.
As lembranças. Não consigo lembrar com exatidão quando começaram. De repente, os momentos mais dolorosos da minha vida(erros graves, humilhações, pessoas que eu machuquei e não mereciam, momentos de covardia) começaram a dominar minha mente. Começavam quando eu acordava(às vezes antes, durante os sonhos) e me acompanhavam o dia todo. Eu não conseguia pensar em mais nada, não conseguia trabalhar. Só melhorava quando eu saía. Passei a freqüentar lugares movimentados e a passar horas lá. Eu, que passara a vida fugindo das pessoas, então procurava o seu convívio. Ficava horas fora. Tinha medo de voltar para o apartamento. Cheguei a tentar trabalhar em lan houses. Tentei me adaptar aos pensamentos(em especial às minhas culpas) e seguir adiante.
Aí então, o golpe de misericórdia. Ela. Passar grande parte de minha existência fugindo do convívio social não impediu que eu me apaixonasse. Amei, sim. Ainda amo. É claro que não houve nada, apenas na minha cabeça. Não por culpa dela, quero deixar bem claro. Ela nunca soube. Apesar de sua lembrança me machucar há anos, ela também é a mais doce e terna que possuo. Mas não foi este lado meigo que passou a me acompanhar todas as horas do dia. A saudade que há anos eu sentia fora ampliada de forma devastadora. Chegava a doer. Junto à saudade vinham lembretes de porque não havia dado certo e porque jamais poderia ser. Passei a chorar o tempo todo. Mesmo fora do apartamento eu sentia uma pontada de dor. Aí, ficar perto das pessoas voltava a me fazer sofrer. Ver casais, pessoas felizes, aumentava ainda mais meu sofrimento e então eu voltava para o apartamento, onde eu podia pelo menos chorar à vontade. Certa noite, encolhido na cama(só horas mais tarde percebi que havia voltado para o quarto), enrolado no cobertor, eu chorava a cântaros, como se eu nunca tivesse chorado em toda a minha vida. Chorava de saudade, por ser daquele jeito, por ter nascido. Estava tão absorto em meu sofrimento que custei a perceber que alguém segurava minha mão e levei um pouco mais de tempo para me lembrar de que aquilo era impossível. Petrifiquei. Eu sentia aquela mão forte segurando a minha direita. Não tive coragem de abrir os olhos. Levantei de um salto e fui tateando até a sala. Abri os olhos rapidamente para pegar a chave na mesinha, abri a porta e saí desesperado. Não parei para chamar o elevador e disparei pelas escadas. Saí correndo do edifício até uma pracinha que ficava em frente. Olhei para as janelas dos quartos do apartamento no vigésimo andar. Nada. O que realmente eu esperava ver, não sei. Sentei em um banco. Estava frio e eu vestia um shorts e uma camiseta. Não havia mais ninguém ali. Aquela região estava ficando conhecida por sua alta incidência de assaltos e estupros. Passei a noite ali, sem sair do lugar. Sem tirar os olhos das janelas do apartamento.
Passei o dia seguinte à procura de um novo lugar para morar. Encontrei uma kitchnette a um preço abusivo, mas eu não tinha escolha. Não passaria nem mais uma noite naquele apartamento. A rescisão de contrato de aluguel foi uma facada e tanto. Apesar dos atrasos em meus trabalhos, não cheguei a ter nenhum grande problema, uma vez que eu não traduzia Best Sellers. Meu rádio gravador voltou a funcionar e comprei uma tv LCD, já que as tvs com as quais eu sempre convivi praticamente não existem mais. Mas, a solidão hoje já não é mais a mesma. Não me sinto mais tão a vontade e seguro como durante toda a minha vida. À noite a luz fica acesa o tempo todo, mesmo quando assisto à televisão. Não vejo mais filmes de terror. Qualquer ruído me deixa em estado de alerta. Voltei a dormir com a luz acesa, todo encolhido, com a cabeça coberta, rezando para cair no sono ou para que amanheça logo.
fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/10/o-tradutor.html