O Mágico e o Mago
Praça da Sé, São Paulo. O jovem de roupas pretas, camisa aberta e maquiagem negra nos olhos sabe que, naquele momento, a multidão à sua volta está torcendo para que tudo dê errado e eles tenham uma bela história de desgraça para contar, sobre um idiota aveadado metido a mágico que foi parar no hospital.
Ele respira fundo e se concentra no truque que vai executar. Afinal, se der errado, ele realmente pode acabar no hospital.
A imensa cruz em X está deitada no chão. Ele caminha e se deita sobre ela. Seus assistentes se aproximam e, com auxilio de pesadas marretas, começam a pregá-lo na cruz, com grossos pregos, que fazem jorrar sangue de suas mãos.
Seu rosto se cotorce como se suportasse uma dor lancinante em silêncio. A platéia se admira, pois a visão de alguém sendo crucificado tem sempre um apelo muito forte.
Seus assistentes levantam a cruz do chão e a colocam de pé. Ato contínuo, a cobrem com um grosso e enorme pano negro.
Alguns instantes depois, eles removem o pano e pronto - não há mais ninguém pregado na cruz.
A platéia se admira com o truque e fica ainda mais admirada quando, educadamente, o jovem pede licença e abre passagem entre a atônita platéia, voltando ao lado da cruz e exibindo as mãos, com um ferimento em cada palma.
A multidão explode em aplausos.
Com excessão de um homem de expressão séria, que observa tudo sem se emocionar com o truque.
De certa forma, ele lamenta a má sorte do jovem mágico.
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A fama era cada vez mais inebriante, a mais deliciosa das drogas.
O aplauso do público, fascinado com os truques, incapaz de conceber como aquele rapaz era capaz de realizar todos aqueles prodígios.
Aquilo era melhor do que sexo!
E foi com aquela sensação orgástica que ele entrou no camarim e se jogou num pequeno sofá, exausto.
Aliás, precisava lembrar sua secretária de comprar mais daqueles suplementos vitamínicos. Estava cada dia mais e mais cansado.
Talvez devesse ir ao médico...
- Está começando. Você está cada dia mais cansado, não é?
Ele sentiu o coração quase pular pela boca com o susto.
O velho surgira por detrás de uma das araras onde suas fantasias ficavam penduradas.
- A cada dia o ídolo vai cobrar um pouco mais pelo que lhe deu, ate que ele corroa completamente a sua alma.
"Merda" - ele pensou - "Como esse velho entrou aqui? E como ele sabe da estátua?"
- E ele não pode ser dado ou jogado fora. Ele só aceita ser roubado. Que, aliás, foi o jeito que você o retirou de mim.
A expressão do jovem foi se enchendo de ódio.
- Saia daqui, velho filho da puta. Não roubei merda nenhuma nem de você, nem de ninguém!
O velho sorriu.
- Fique tranquilo. Eu não vim para tentar recuperar o ídolo.
E se dirigiu para a porta do camarim. Ao sair, disse para o jovem:
- Eu só vim agradecer.
E se foi.
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Na verdade, ele não mentiu para o velho quando disse que não roubara nada. Ele receptara o que um de seus assistentes roubara.
Ser mágico de rua não é uma carreira que pague bem e, ao contrário do que os Beatles diziam, amor não é tudo que você precisa.
Então eles roubavam, receptavam e revendiam coisas roubadas.
Ele mesmo não sabia porque mantivera aquela estatueta horrorosa consigo. Tem sempre um imbecil disposto a comprar objetos de arte, por mais impossível que seja enxergar arte numa estátua que mais parecia um hipopótamo sentado, com a boca aberta numa gargalhada cheia de dentes pontiagudos.
Fato é que não apenas ficou com o ídolo, como ainda tratou de escondê-lo o melhor que pode.
Coincidência ou não, foi nessa época que a boa sorte começou a soprar para o seu lado.
Ele viu num aparelho de TV que estava exposto numa loja das casas Bahia: o tal americano que fazia mágica no meio da rua, mas não truques bobos, truques elaborados.
Ele pirou no visual do cara, nada daquela coisa de capa e cartola. Uma roupa preta tipo emo, maquiagem preta no rosto.
Ele tinha certeza que ninguém no Brasil estava fazendo nada parecido e que iam adorar se alguém fizesse.
E foi o que ele fez.
Dois anos depois, lá estava ele. Não dormia mais em quartos de pensão, muito menos em banco de praça, quando o dinheiro faltava.
Morava num flat na região dos Jardins, em São Paulo. Estava rico e famoso. Recebera até um convite para visitar a Ilha de Caras.
Mas fora obrigado a recusar o convite. Seu físico estava cada dia pior. Tivera de começar a se apresentar de camisa fechada.
Estava cada dia mais magro. Mais cansado.
Precisava fazer alguma coisa...
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O velho não se surpreendeu ao olhar a tela do porteiro eletrônico e ver que o rapaz estava em sua porta.
Era normal, um padrão que se repetia, mostrando que a Humanidade sabia como insistir nos seus erros.
Apertou o botão que destravou a tranca eletrônica e deixou seu visitante subir.
O rapaz foi bastante direto:
- O ídolo: é ele que está me matando?
O velho apenas balançou a cabeça.
- Eu lhe avisei. Ele irá consumí-lo aos poucos, não só seu corpo, mas principalmente sua alma.
Vendo o olhar de desespero do mais jovem, o velho foi direto:
- Eu já respondi sua pergunta na primeira vez que nos vimos: você só pode se livrar dele se alguém roubá-lo de você.
O jovem encolheu-se em desespero mudo sobre o sofá da sala do velho.
- Pelo seu desespero, vejo que já procurou os médicos. E eles não acharam nada errado com você...
O jovem continuou mudo, olhando fixamente para a frente. Estava morrendo e não sabia o que dizer.
- Não posso fazer mais nada por você, meu jovem. A não ser lhe desejar que tenha a mesma sorte que eu e alguém o roube de você.
O jovem nessa hora levantou-se de supetão: já sabia o que fazer. Dirigiu-se para a porta, sem sequer despedir-se do velho, que limitou-se a apertar o botão que abria o portão.
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O jovem saiu e o velho ficou sozinho com seus pensamentos.
Estava realmente feliz. Seus planos estavam muito próximos de sua conclusão. E ele sairia vitorioso.
Havia muitas coisas que ele não contara ao jovem mágico.
A primeira delas era que enquanto o mágico nada sabia, perdido num labirinto de sombras, ele era um mago e o conhecimento era sua maior arma.
Ele estudara a história do ídolo profundamente.
Osteogoroth, o mercador de almas, fora adorado como um deus quando a humanidade ainda era jovem.
Mas Osteogoroth, como todo mercador, só trabalhava com trocas. Ele trazia boa sorte, mas exigia em troca coisas preciosas. Nos tempos e lugares onde era cultuado, sacrifícios de sangue eram realizados em seu nome.
Com o tempo, a civilização deixou para trás os sacrifícios e o ídolo passou por várias mãos e trouxe muita sorte, sempre paga com desgraças e tristezas. Mas o ser humano sempre acredita que o mal só acontece para os outros, então lá ia o ídolo para novas mãos, repetir a mesma história.
Osteogoroth, como toda força maligna, trapaceia em suas negociações. O velho soube disso ao estudar sua história e, quando o roubou de seu dono anterior, sabia o que pedir para ser bem sucedido naquele jogo.
Onde muitos pediam riqueza, ele pediu conhecimento. E usou esse conhecimento para fazer sua riqueza.
Claro que logo o ídolo começou a se alimentar dele, mas ele já estava pronto para aquilo e já havia preparado o caminho de quem roubaria o ídolo dele muito antes de se envolver com o mercador de almas.
Anos antes de roubar o ídolo, ele hipnotizou uma criança, um menino morador de rua, para que viesse procurá-lo no futuro. Para que viesse roubá-lo.
Fez isso porque sabia que, se tentasse qualquer coisa para desfazer o pacto depois de selado, a fúria de Osteogoroth cairia sobre ele.
Era um detalhe importante, que o jovem mágico não sabia.
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Não há honra entre ladrões.
O jovem mágico colocou o ídolo bem à vista, sobre um aparador da sala de jantar do hotel onde estava hospedado e que possuía uma casa de shows onde ele estava se apresentando.
Ato seguinte, foi conversar com um de seus assistentes, o mesmo que roubara o ídolo anos antes.
- Olha, você sempre foi muito gente fina comigo, então também vou ser legal com você: naquela estatueta tem um papel escondido, com os números e senhas das minhas contas no Brasil e no exterior. Se acontecer alguma coisa comigo, fique com ele para você. É melhor do que um testamento, porque aí você não vai ter que dividir nada com o governo, certo?
Enquanto seu assistente se desmanchava em agradecimentos, o jovem mágico sabia que o outro assistente ouvia tudo atrás da porta. Algum dos dois não resistiria a tentação de roubá-lo. Um, porque com certeza estava se sentindo traído; o outro, porque com certeza não iria esperar que algo acontecesse para se apossar da fortuna.
E toda esta cena se desenrolou perante os atentos olhos e ouvidos de Osteogoroth.
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O final do show era uma variação mais assustadora do truque da crucificação.
O início foi igual: ele deitou-se sobre a cruz em forma de X e os grandes cravos foram martelados em suas mãos. A seguir, o grosso pano preto foi colocado sobre a cruz e o crucificado.
O assistente se aproximou com a surpresa final: ele também teria uma estaca cravada no peito.
O apelo visual do truque era enorme, pois a enorme estaca atravessava completamente o corpo do mágico e a cruz, fazendo com que grossos filetes de sangue escorressem para o chão. Da última vez que haviam apresentado o truque, houve duas senhoras que passaram mal ao ver a cena.
Ao final, o grosso pano negro seria puxado, deixando cair cravos e estacas e revelando que o mágico fora novamente bem sucedido em seu truque.
Seguindo o script, o pano foi puxado e lá estava o corpo de um homem crucificado e com uma grossa estaca cravada no peito.
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O velho não resistira a curiosidade e fora ver o show do jovem mágico. E seu instinto não falhara. Sem saber, o jovem tentara desfazer o pacto que sequer sabia que havia feito, e pagara com a vida por isso. Pelos estudos do velho mago, não apenas com a vida: quem faz tratos com um demônio, paga com a própria alma.
Mas não ele. Ele era um dos poucos no mundo que trapaceara um demônio e vivera para contar a história.
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Os dois assistentes tiveram a mesma idéia e correram de volta para a suíte do jovem mágico.
Ambos tentavam desesperadamente se apossar do ídolo que o jovem mágico dissera conter as senhas de suas contas bancárias. Claro que a disputa degenerou em briga. Agarrados ao ídolo de pedra, acabaram por disputá-lo na sacada do prédio.
Agarra daqui, puxa de lá, o ídolo despencou da cobertura.
Uma queda de vinte e oito andares.
É claro que a polícia não permitiu a saída de ninguém da casa de espetáculos, e estavam revirando o hotel em busca dos dois assistentes do jovem mágico.
Mas para quem dominava os segredos da magia como ele, furar o bloqueio da polícia foi brincadeira de criança.
Estava feliz, já que o sacrifício do tolo mágico indicava que seus planos haviam dado perfeitamente certo, só lhe restava agora aproveitar a vida, sem medo da vingança de Osteogoroth.
Foi nesse clima de felicidade interior que o ídolo atingiu-lhe após cair de vinte e oito andares. Sua morte foi instantânea.
O mago se esquecera de que um dos muitos títulos que os antigos adoradores de Osteogoroth lhe davam era o de "senhor da vingança."
fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/09/o-magico-e-o-mago.html