O Deus dos Desejos Sórdidos
A batida frase de que só damos valor a uma pessoa quando a perdemos é uma das premissas mais verdadeiras senão a mais verdadeira de todas as premissas. Talvez ninguém nunca tenha parado para pensar como a vida segue um ritmo cíclico mediante as nuances e fatos sobre o valor da perda. Muitas das vezes, estes fatos simplesmente são inferidos ao mero acaso. Porém, nada é por acaso, encontrar um velho amigo e uma antiga namorada depois de tanto tempo num coletivo ou numa fila de banco pode ser considerado um acaso, mas não a premissa de que só damos valor às pessoas quando as perdemos, pois no cíclico ritmo da vida, ora essa pessoa lhe é essencial, ora um objeto que pode ser substituído por uma aventura extraconjugal ou por uma obsessão desmedida por algo que no fim, acaba não valendo a pena. E quando todas as frustrações vêm à tona num verdadeiro e devastador tsunami de desolações, o cíclico ritmo da vida devolve a essência inicial a qual aquela pessoa representava, e ai, meu chapa, é tarde demais, pois a dor da ausência aperta o coração como se mãos espectrais atravessassem o peito. E foi nesse tsunami de desolações que eu dei falta de Maria Luíza, depois eu apenas quis matá-la.
Éramos jovens, eu nem tanto; já estava chegando aos 25 e fios brancos já contemplavam as laterais de meus cabelos. Em contrapartida, Marcelo Floriano e Maria Luíza estavam na soleira da porta que divisava a adolescência da vida adulta, na resplandecência de seus 20 e 19 anos respectivamente.
Formavam um casal interessante, gostavam praticamente das mesmas coisas, tinham ótimas relações com os familiares tanto dela quanto dele. Havia o peso da imaturidade, é verdade, aquele ímpeto incontrolável estimulado pelos hormônios que muitas das vezes nos impedem de pensar, de agir de maneira racional e qualitativa. No entanto, não poderia julgá-los sob hipótese nenhuma, até porque a juventude é uma época em que agimos mais e pensamos menos. Lembro-me de minha primeira namorada, dos nossos planos de viajar, casar, ter filhos e não precisou nem de um mês para que a vida mostrasse que quando se é jovem, ou se age ou se olha.
A primeira impressão que tive dela foi de uma menina mimada, daquelas que nada lhe era negado, não que eu estivesse totalmente errado a respeito, porém o prejulgamento em relação à Maria Luíza me fez ser um tanto quanto resignado a eles no começo. Jamais admitiria e relutei para mim mesmo que a resignação era motivada por um ciúme que eu tinha por Marcelo, meu melhor amigo na época. Todavia, o tempo fez com que as coisas se ajeitassem, percebi que a melhor coisa que poderia ter acontecido a ele foi tê-la conhecido.
A primeira vez que nos beijamos foi num fim de tarde de outubro quando o pôr do sol incendiava os céus numa tonalidade rubra alaranjada. As nossas sombras estendiam-se e se uniam formando uma só sobre o chão daquele mirante enquanto ao fundo, junto à linha do horizonte, as silhuetas das serras testemunhavam aquele gesto passional e acima de tudo, proibido.
Por duas noites mal consegui pregar os olhos, o peso da culpa era demasiado para meus frágeis ombros. Porra, Marcelo era meu melhor amigo e beijar a namorada dele era o mesmo que dar-lhe um tiro pelas costas. Entretanto, o passar dos dias me fez desejar ter aqueles lábios doces junto aos meus novamente e o desejo fez a culpa se abrandar como se me desse forças para carregar aquele fardo.
A ironia é a grande especialidade da vida, por isso, jamais subestime a sua capacidade inventiva e sua imaginação em reverter quadros aparentemente irreversíveis. Exemplos têm aos montes e a minha própria existência é um desses exemplos.
Nunca fui um homem bonito. Nem mesmo em minha adolescência eu conseguia me enxergar numa perspectiva agradável o bastante para elevar a minha autoestima. O fato de minha primeira namorada nunca ter sido cortejada a ponto de sequer ter ouvido um assobio presunçoso ao caminhar pela rua, corroborava com minha depreciação pessoal. Diante disso, jamais imaginei que um dia eu poderia me casar com uma mulher linda como Maria Luíza, mais do que isso, jamais imaginei que um dia eu pudesse ser capaz de roubá-la de alguém.
Até hoje me pergunto o que ela viu em mim a ponto de deixar Marcelo sem hesitações. Talvez tenha enxergado alguma espécie de segurança, um porto seguro como dizem (risadas sinceras). Eu não tive coragem de contar a ele que nos encontrávamos assim que eles terminaram o namoro, e se hoje me perguntassem se eu teria coragem de contar mesmo após tudo o que aconteceu, eu diria que não. Pois aquilo era um detalhe que podia facilmente ser varrido para debaixo do tapete a fim de preservar a nossa amizade. Contudo, Marcelo era jovem, mas não era idiota, ele sabia, mesmo que nunca tivesse provas sobre o nosso adultério podia facilmente conjecturar que um sentimento não surge de uma hora para outra. Assim nossa amizade de longa data fora desfeita, mas o cíclico ritmo da vida junto de sua grande e especial capacidade inventiva haveria de cruzar nossos caminhos novamente.
Os pais de Maria Luíza não aceitaram com bom grado o nosso relacionamento. Tal coisa era totalmente justificada pela boa relação que tinham com Marcelo que era um filho para eles. Minha mãe que já era uma mulher doente naquela época dera de ombros, aliás, como sempre fazia em relações aos minhas atitudes e atos, sua feição sempre impassível com aquele olhar perscrutador que me dissecava como se algo ruim o bastante vivesse dentro de mim.
Minha mãe e eu não tínhamos uma ordinária relação entre mãe e filho. Meu pai falecera três dias após o meu nascimento e acredito que a frieza dela com relação a mim se devia ao fato de ter-me como um mau agouro, uma maldição que ao sair de sua caixa de Pandora, trouxesse todas as coisas ruins para sua vida. Coincidência ou não, não há como negar que após o meu nascimento ela ficou viúva e adoeceu misteriosamente por uma doença degenerativa que nenhum médico foi capaz de identificar. Um caso estritamente misterioso, publicado em quatro revistas médicas e duas psiquiátricas.
Minha mãe já não andava direito quando Maria Luíza e eu nos casamos. A cerimônia aconteceu numa estrelada noite de maio acompanhada por ela sobre uma cadeira de rodas. O casamento foi algo simples, poucos convidados, uma bela, ofuscante e deslumbrante lua perigeu que ornava o céu estrelado do topo de seu trono celestial.
Aliás, a frieza de nossa relação foi determinante para que queimasse algumas etapas no processo entre namoro/noivado/casamento. Por mais que mantivéssemos as aparências, era evidente o ódio que existia entre nós, mesmo que venha a duvidar que possa existir ódio entre mãe e filho, digo-lhe com toda propriedade que é perfeitamente possível. A situação não era insuportável, longe disso, porém era bastante incômoda.
Os pais de Maria Luíza foram deliberadamente contra o nosso casamento, a julgavam jovem demais para casar, no entanto o que mais pesava em suas negações era o fato de não termos um background financeiro para uma vida a dois. Na verdade nunca os culpei por irem contra a nossa decisão, afinal de contas, eu não tinha um senhor emprego que me permitiria formar uma família tampouco Maria que trabalhava meio período para bancar a faculdade de administração que cursava a noite. Creio que nenhum pai que deu tudo de bom e do melhor para a filha gostaria de vê-la saindo de seus domínios para uma vida repletas de incertezas. Não obstante, Maria Luíza surpreendeu a todos, inclusive a mim ao apresentar uma personalidade de que era ela quem decidiria o rumo de sua vida. Suas palavras ásperas sobre isso aos pais ocasionaram um silêncio sepulcral e olhares acusatórios contra mim.
Não precisou de muito tempo para que certas mágoas fossem postas numa caixa e que essa caixa fosse guardada sobre um móvel qualquer, porém sempre a vista para que ela pudesse ser aberta no momento mais oportuno. Os pais de Maria Luíza foram ao casamento da filha além de terem bancado toda a festa. Em contrapartida, certas feridas ficam eternamente sem cicatrizar como um céu dilacerado. Marcelo não só rejeitou o convite que mandamos de um modo totalmente sincero, apostando que não guardaria mágoas, como nos devolveu com a imagem de Judas impressa numa folha A4 cortada pela metade. Eu não lamentei o fato, ao contrário de Maria.
Alugamos um bom apartamento num bairro suburbano, não era um palácio árabe, mas certamente havíamos tirado a sorte grande em tê-lo por aquele preço. Não obstante, Maria teve de trancar a matrícula na faculdade para que pudesse trabalhar em tempo integral e para que também pudesse ajudar nas despesas, principalmente com o aluguel. A caxumba que tive na infância bastante lamentada por alguns tios e tias (não por minha mãe, diga-se de passagem, e antes de me tornar um pária familiar) era comemorada por mim e talvez por Maria Luíza naquela época, embora ela jamais admitisse. Era um período instável demais para uma gravidez não planejada e minha esterilidade era uma segurança sobre esse quesito.
A rotina não demorou a nos envolver com a sua manta enfadonha e sem escapatória. O pouco tempo que tínhamos um para o outro era raramente aproveitado. O dinheiro encurtava cada vez mais e me via na necessidade de tentar dar uma guinada em nossas vidas numa decolagem abrupta e definitiva. Porém, eu tentei da maneira mais complicada nos mais incertos dos ramos.
Desenhar sempre foi o meu passatempo favorito, desde criança já se percebia um talento inato em meus traços e se investissem em mim, eu poderia ir longe. Obviamente que nunca fui investido em meu dom, contudo eu nunca desisti e melhorava cada vez mais. Criava heróis e vilões, cenários colossais com criaturas ancestrais sempre espreitando de algum lugar. Por muitas das vezes me assombrei mediante ao meu próprio talento, tinha bons roteiros em mente, mas nenhum público para contemplar a minha arte. Porém, com a internet à tona, enxerguei uma possibilidade real de aproveitar o meu talento ganhando um bom dinheiro, mesmo que tivesse total consciência de que se tal coisa me possibilitasse fama e alguns prêmios, eu não me transformaria num homem rico, entretanto, pode-se privar um homem de tudo, exceto de sonhar.
Não consultei Maria sobre deixar de pagar algumas prestações para investir em meu novo projeto. Assim, ela também se sentiu no direito de não pagar certas coisas para comprar algumas roupas e sapatos de modo que animasse um pouco a sua cinzenta vida de casada. Uma bola de neve fora criada, credores sujaram os nossos nomes e a companhia de luz nos deixou sem energia por quatro dias.
Num determinado ponto, Maria Luíza teve que recorrer aos pais para que pudéssemos pagar o aluguel. Aquilo foi demasiado infame para mim, porém creio que a vergonha deveria ter sido bem maior para ela, afinal de contas, no outro canto da cidade, Marcelo Floriano progredia meteoricamente se tornando um homem bem sucedido capaz de fazer qualquer mulher feliz e realizada.
O empréstimo para pagar o aluguel não fora o único que tivemos de recorrer aos pais de Maria Luíza e quando tudo parecia estar ruim o bastante, aprendíamos que poderia ficar bem pior. Ela apresentou um atestado médico falso no trabalho por uma razão que não me recordo no momento, ao descobrirem a fraude, despediram-na por justa causa. Segurar a onda sozinho foi uma tremenda dureza, prometi aos pais dela que aquela situação seria algo temporário, porém o olhar sardônico de seu pai fez-me sentir um lixo, um fracassado de mão cheia. Apesar dos pesares, em nenhum momento abdiquei dos desenhos. Consegui publicar uma pequena sequencia num blog que me rendeu muitos elogios e nenhum dinheiro. Fui convidado a participar de um projeto em outro estado, porém era algo tão incerto quanto o futuro entre Maria Luíza e eu.
As brigas ficaram cada vez mais frequentes, a minha obsessão pelos desenhos a irritava. Por noites eu não a procurei por estar focado em minha escrivaninha ou diante do cavalete que usava para criar imagens numa escala maior. Meu próprio desempenho no trabalho estava sendo afetado até ao ponto de ser despedido.
O pior de ter perdido o emprego foi por ter encarado tal coisa como uma oportunidade em me dedicar aos meus projetos em tempo integral. Usei parte de meu fundo de garantia para quitar a dívida que tínhamos com os pais dela, isso era uma questão de honra, a outra parte injetei na compra de equipamentos, incluindo um caríssimo tablet gráfico, o que gerou dias de reclamações por parte de Maria.
Todavia, a melhora em meus desenhos fora significativa. Tal coisa me rendeu um pequeno trabalho para uma empresa de eventos. Não era bem o que eu almejava, é verdade, no entanto, era algo que me permitiu sonhar um pouco mais. Os meses passaram e nada de e-mails, telefonemas e telegramas. O dinheiro ia acabando na mesma amplitude em que as contas iam aumentando, precisava arranjar um novo emprego antes que tudo fosse por água abaixo uma vez que não me restavam menos de duas parcelas do seguro desemprego a receber.
Após quase um ano desde o seu último emprego, Maria Luíza finalmente conseguira um novo trabalho, não era lá grandes coisas, porém não conseguiria coisa melhor com a carteira profissional manchada por uma justa causa. Todavia, quando o novo emprego dela parecia que amenizaria os nossos problemas, ela simplesmente limitou-se a dizer que acabou.
Senti-me apunhalado pelas costas, pois quando ela estava sem dinheiro eu havia segurado as pontas, e no momento que ela deveria segurá-las, simplesmente me deixou. Contudo, demorei a perceber que nunca o dinheiro foi a questão, a verdade é que um relacionamento é bem mais do que bens materiais, óbvio que ninguém quer morar debaixo de um viaduto, mas o que ela estava farta era a falta de amor, amor que eu tinha jurado dar diante daquele altar.
Maria Luíza voltou à casa dos pais que a receberam de braços abertos e fizeram questão de arcar com todo o processo de divórcio. Acredito que comemoraram com um belo churrasco quando tudo terminou, afinal era bom ter a filha de volta e com o velho sobrenome da família. Nesse período consegui me manter fazendo um bico aqui e outro acolá, e foi nesse período solitário que tanto havia me habituado antes de conhecê-la, que me dei conta do quanto eu a amava.
A ficha que minha obsessão pelo meu absurdo projeto havia destruído meu casamento e parte de minha vida demorou a cair. Consegui um trabalho fixo que pagava tão mal que sequer pude me manter com a internet. Pouco a pouco o sonho de ganhar a vida como meu talento artístico ia se esmorecendo como o sol no fim da tarde. O emprego mal me possibilitava pagar o aluguel e sem escolhas, me vi obrigado a vender os equipamentos para arcar com gastos imprevistos.
Com o meu grande sonho sepultado, assenti que poderia começar do zero, e por que não reconquistá-la? Liguei para casa dela diversas vezes e nunca a encontrava. Soube que ela voltara à faculdade numa das poucas vezes que foram solícitos em me atender, porque na maioria das vezes, o telefone era desligado pelo simples fato de ouvirem a minha voz. Decidi encontrá-la em sua faculdade, ela se surpreendeu ao me ver, aceitou ir até uma pizzaria nas proximidades e conversar de maneira amistosa. Eu peguei em sua mão e disse que queria recomeçar ao lado dela, disse que só a distância me fez perceber o quanto eu a amava e o quanto eu me sentia idiota por não ter percebido antes, prometi ser diferente. Maria não soube o que dizer e as palavras pareciam entaladas em sua garganta, replicou dizendo que precisava de um tempo para pensar e as lágrimas em seus olhos fez meu coração se encher de esperança. No entanto, o tempo que ela me pedira para pensar nada mais foi do que a falta de coragem em me dizer a verdade.
Quando o convite do casamento entre Maria Luíza e Marcelo Floriano chegou as minhas mãos dois dias depois de maneira vingativa por parte dele, o amor dardejante que existia por ela de imediato se tornou um ódio profundo e ácido. Talvez haja uma linha tênue separando estes dois sentimentos, mas o fato dela se casar com Marcelo foi algo demasiado para aceitar e conviver, eu queria que os dois morressem, talvez apenas ela.
Marcelo era o que posso chamar de amante da era clássica, aquele tipo de cara que pela amada, seria capaz de esperá-la até o momento derradeiro, que não se permitia deixar existir outra mulher que não fosse aquela que sempre desejou. E foi assim que ele a esperou, não até a morte, mas de uns oito anos do dia que eu a roubei até que a vida em seu habitual ritmo cíclico a devolvesse.
Ao contrário dele, eu fui ao casamento. Sentei-me nas últimas fileiras dos bancos da igreja a fim de evitar olhares avaliativos e inquisidores. Porém, mesmo sendo o mais discreto possível, fora impossível escapar dos comentário e dos tais olhares. Maria Luíza estava linda, mais linda do que a primeira vez que entrou naquele vestido branco de véu e grinalda. A maturidade lhe dava uma beleza peculiar e quando ela cruzou a igreja sobre o tapete vermelho até o altar, foi o último desejo que provocara em mim; a partir daquele momento eu apenas a odiei.
Não consegui me manter em meu velho e solitário apartamento com aquele emprego. O aluguel sofria reajustes absurdos e o proprietário disse que me perdoaria os três meses que eu lhe devia se saísse o quanto antes. Retornei à casa de minha mãe mesmo contra a minha vontade e especialmente, contra a vontade dela.
Ela já não mais conseguia andar, sua misteriosa doença a sentenciou a passar seus últimos anos sobre uma cama. Uma senhora negra de traços fortes e olhar acusador cuidava dela, e pela cara que fez ao abrir a porta me vendo com o caminhão de mudanças ao fundo, denotava que minha mãe não havia lhe dado boas referências sobre mim.
Obviamente que minha mãe não ficou nada satisfeita em ver o maldito filho de volta. Embora seu dual olhar entre um repúdio resignado e uma insatisfação bestial me fitasse a ponto de sair centelhas dos olhos, pude ler através deles que ela apenas queria morrer em paz e que minha inesperada volta não lhe deixaria realizar este desejo.
A mudança não foi fácil apenas no quesito sentimental alimentado por um ódio mútuo e latente entre mãe e filho. Não havia espaço na casa para minhas coisas e por muita sorte, tudo coubera mesmo que empilhado a esmo no antigo porão que tanto me causava arrepios na infância. Como o meu velho quarto era agora o quarto da empregada, não me restou outro lugar para dormir do que aquele velho porão.
A princípio, tentei dormir no sofá, no entanto os gemidos de dor que minha mãe dava durante as madrugadas ecoavam por toda a casa. A empregada se levantava e suas passadas fortes em direção ao quarto de minha mãe se uniam aos sons dos gemidos e arquejos completando assim a sinfonia infernal. Tão logo que as dores cessavam e o silêncio tornava a reinar, ainda havia o olhar cor de jabuticaba da negra que cuidava dela, um olhar que dizia que minha volta trouxera novos problemas para a velha doente.
O porão ainda me dava arrepios, mesmo aos 32 anos, descer aquelas escadas sob uma tímida e mortiça luz fosco amarelada me trazia sentimentos premonitórios e supersticiosos. Porém o lugar era silencioso e de certa forma blindava quem lá embaixo estivesse de todas as aporrinhações que aconteciam lá em cima. Sempre me perguntei quantas casas no Brasil possuíam um porão, o de minha casa havia sido construído pelo meu avô, um homem que não era tão benquisto na família, assim como eu me tornei conforme fui crescendo, um homem que segundo os dizeres baixos como sussurros ao vento, passava dias nesse mesmo porão. O local era sombrio mesmo a luz do dia, entretanto, a disparidade do ambiente alimentava certos desejos vagos, tornando-os obsessivos. Matar Maria Luíza.
As minhas férias do trabalho possibilitaram-me dar uma pequena arrumação no local. O porão era relativamente espaçoso, se eu tivesse espaço lá em cima para por as minhas coisas poderia muito bem transformá-lo em um estúdio desenterrando o velho sonho ou apenas tê-lo como um velho hobby. Num canto, havia um gradil que bloqueava um pequeno buraco na parede, tal buraco se assemelhava a uma lareira e tijolinhos o ladeavam. Defronte ao gradil, um velho baú coberto por uma camada tão grossa de poeira que o fazia se apresentar quase absorto as paredes daquele canto. Nada pode despertar tamanha curiosidade do que um baú fechado e abandonado em um velho porão, abri-lo seria uma questão de necessidade histórica como a violação de uma tumba faraônica. Porém um cadeado mantinha seus segredos trancados naquele interior, destarte nada que um pé de cabra pudesse dar um jeito.
Os trincos rangeram lugubremente assim que o baú fora aberto. De lá de dentro veio uma onda de mofo que me fez espirrar incontáveis vezes. O que eu imaginava estava lá, as velhas coisas de meu avô, no entanto, não eram coisas comuns como sapatos velhos, antigas cartas em papéis amarelados e souvenir de umas poucas viagens, tratavam-se de livros ocultos com capas bizarras feitas a peles de animais, pedras lisas com inscrições rúnicas talhadas de maneira meticulosa, cadernos e mais cadernos de anotações que continham as traduções e anotações daquelas inscrições. Aquele novo fato sobre o meu avô explicava o motivo pelo qual era considerado a ovelha negra da família; uma pessoa fascinada e obcecada pelas artes ocultas em um meio predominante católico. Certamente jamais seria visto com bons olhos.
Todavia, em meio a todos aqueles símbolos macabros, inscrições em tons de um vermelho que lembrava sangue coagulado e páginas que induziam a mente a divagar os gemidos dos animais sendo esfolados vivos, o que mais me sobressaltou foi um retrato em uma moldura de bronze. Aquele retrato era a explicação para o latente ódio existente entre minha mãe e eu, não haveria outros motivos para tal coisa, olhar para aquele retrato era como se olhar diante de um espelho. Era algo estarrecedor a semelhança entre nós, o mesmo olhar tirando a cor dos olhos, os mesmos traços. Éramos tão parecidos que se eu quisesse saber como seria alguns anos era só procurar uma foto mais recente dele.
Os manuscritos de meu avô me fascinaram de imediato. Havia tantas coisas que faziam os mais ínfimos pelos de meu corpo se arrepiarem. Evocações, feitiços, maldições. Todos ilustrados perfeitamente de próprio cunho. Assenti que meu talento em criar figuras e formas veio dele, uma espécie de dom hereditário. Era um material fantástico, sobretudo por um meio mitológico a respeito de deuses e semideuses desconhecidos e obscuros. Não eram muitos, talvez a morte houvesse deixado o seu trabalho inacabado, porém os poucos que ali continham eram entidades deveras relevantes, principalmente o Deus dos Desejos Sórdidos. Asgototh.
Todo crime tem suas consequências. Mesmo que você saia impune pelos âmbitos judiciais, a vingança é um prato muito apreciado pelas pessoas. Além disso, as chances de uma pessoa que comete um assassinato saia impune sem um excelente advogado são quase nulas. Por isso, por mais que ansiasse em vê-la morta, eu não poderia me expor a tal coisa. Minha vida era ruim o bastante para passá-la o resto numa cadeia a mercê de tantas coisas que a gente ouve por ai. Contudo, diante de meus olhos estava uma oportunidade hediondamente fantástica. Algo que realizaria o meu dantesco desejo de acabar com a vida de Maria Luíza.
Sob a luz de oito velas, eu lia atentamente as catorze páginas do trabalho do meu avô sobre Asgototh. Tratava-se de um bizarro deus vivente no vão entre dois mundos, os dos mortais e o submundo dos mortos e demônios. Em nenhum momento cheguei a duvidar de sua existência. Algo dentro de mim falava que meu avô não dedicaria parte de sua vida em algo onírico e irrelevante. Por isso, eu perscrutava cada linha de sua caligrafia irregular fazendo as minhas próprias anotações. Desse modo cheguei à conclusão que Asgototh não poderia ser evocado e intermediado, o único meio de contatá-lo seria indo até o seu mundo.
Baseado nos traços que meu avô fez daquele deus, eu desenhei a minha própria versão que no fim das contas, não ficou tão distinto da dele. Desenhei seu trono num patamar superior de uma imensa abóboda feita de ossos colossais e inimagináveis. Servos ladeavam o longo corredor, todos envolvidos por mantas esquálidas que dissimulavam seus medos mesclados ao respeito exagerado e submisso. Frondes vinha lá do alto ficando a uma meia altura do piso, assim como de lá de cima, vinha um feixe de luz oriundo de uma luxuriante lua cheia. Aquele era o cenário ao qual imaginei encontrar Asgototh e quando o terminei, fitei com avidez com os olhos incendiados por um ardor inexplicável.
Senti meu cérebro intumescido a ponto de ter a impressão que ele sairia completamente pelas minhas delgadas narinas. Uma dor parcialmente assassina apertava minha cabeça como se um ser humano quisesse sair de dentro dela. O desenho em minha frente ficava turvo e dividia-se em várias pequenas imagens disformes. A inconsciência estava no próximo andar.
Assim que abri os olhos o horror tomou conta de mim junto da mais impressionante das surpresas, embora eu não estivesse de todo surpreso estabelecendo um paradoxo. Era uma cidade colossal, repletas de construções monumentais que se estendiam em silhuetas escuras até a linha do horizonte. Todavia, por mais gigantesca que fosse aquela cidade de pedra, a sensação era que a vida há muito tempo deixara de existir. Não havia uma vivalma, sequer espectros perambulantes e ululantes. Uma lua cheia iluminava aquele perímetro. Uma lua gigantesca que vista de meu ângulo dava a impressão de ser um imenso olho odioso. No centro de toda aquela loucura silenciosa, imponente como uma montanha que se ergue para o céu, estava o templo do Deus dos Desejos Sórdidos, o tempo de Asgototh.
O lugar era idêntico ao meu desenho, tão idêntico que eu não conseguia estabelecer se havia de alguma forma penetrado nele ou se ele havia penetrado em mim substituindo toda a conhecida realidade a qual me habituei. Os corredores que levavam a nave principal do templo eram terrivelmente lúgubres, conforme meus passos ecoavam explosivamente, eu podia ouvir criaturas rastejando pelas pilhas de ossos. Criaturas que eu não podia imaginar, criaturas que fariam você recuar num medo pleno e devastador. Asgototh estava lá, sob o feixe da odiosa e luxuriante luz da lua cheia, contemplando o silêncio sepulcral que apenas a morte pode proporcionar. As figuras que se limitavam a fica sob os auspícios das trevas atrás de colunas de ossos, me observavam e de certa forma invejavam a minha imprudência destemida em me aproximar dele, esgueirando-me das frondes que vinham das rachaduras do alto da abóboda.
Assim que cheguei diante de seu altar, Asgototh em sua voz trovejante e gutural deixou claro que se estava ali para ficar rico, poderoso ou para conquistar um amor perdido, era melhor eu dar a volta e nunca mais aparecer. Assenti com as pernas trêmulas e a bexiga dando pontadas em meu baixo ventre. Seus olhos eram terríveis, jamais estive diante de um olhar tão absurdo como aquele, eram olhos que ao mesmo tempo seduziam, te horrorizavam. Após me recuperar do mórbido fascínio daquele olhar circunspecto, deixei claro numa voz oscilante as minhas reais intenções.
Asgototh pareceu avaliar o meu desejo e escancarou um sorriso brutal ao concordar em realizá-lo. Sorriso que era tão assustador quanto seus olhos, aliás, quanto a sua própria presença imponente. Como era um deus fascinado pela morte, sempre pedia em troca de qualquer desejo, uma vida para saciar o seu prazer fúnebre, era assim que as coisas funcionavam com ele, sem barganhas, ou se tem algo a oferecer ou é melhor rezar para que deixe você retornar com vida. O meu desejo em especial lhe proporcionava o dobro deste prazer, todavia, a escolha não poderia ser uma pessoa aleatória e sim uma que tivesse estreitas relações com você, um laço forte como por exemplo um laço entre mãe e filho. Esses eram os termos, sucintos e cruéis.
O Deus dos Desejos Sórdidos aceitou de muito bom grado a minha proposta e antes de me expulsar de seu templo, perguntou-me se já não estive lá em outros tempos. Respondi que não notando certa desconfiança em seu terrível olhar, porém assenti que a semelhança entre meu avô e eu, o fez imaginar que éramos um. Pensei em quem meu avô tinha oferecido em troca de seu desejo insano e perverso e o que havia desejado. Meu pai e seu abrupto ataque do coração? Uma morte lenta e dolorosa para minha mãe? Contudo era uma coisa que poderia ser conjecturada mais tarde. Tinha que pensar numa maneira de voltar enquanto Asgototh gargalhava estrondosamente.
Deixei o templo de Asgototh sentindo ser outra pessoa. Era uma sensação estranha, porém despercebida, afinal o que poderia ser considerado estranho estando num lugar estranho?
Não tive dificuldades em voltar, após um minuto a minha saída do templo, toda a cidade começou a se esmorecer diante de meus olhos. Uma parede branca vinha de cada hemisfério se afunilando até o centro numa devastação silenciosa , lenta e agradável. Quando a parede chegou próximo o bastante do templo, tudo se ofuscou e manter os olhos abertos foi impossível.
Quando os abri estava diante da escuridão do porão de minha casa. O ambiente cheirava a parafina; as oito velas haviam se derretido até não restar nada além do que uma pasta branca e solidificada. Uma tímida luz vinha pelas frestas do batente da porta lá em cima, uma luz natural que dizia que o dia já havia raiado.
Havia uma distinção de tempo entre o nosso mundo e o mundo oculto de Asgototh, os poucos minutos que estive lá representaram horas aqui. Olhei para o cavalete diante de minha cama com o desenho do templo do Deus dos Desejos Sórdidos e seu hediondo e imponente deus e vi a folha cuja havia desenhado se incinerar ao som da gutural gargalhada daquele ser insano e demoníaco. Se um dia quiser fazer um acordo com ele, terá que criar o seu próprio cenário, pois o vão entre os mundos, a residência de Asgototh é um lugar escuro e ausente de formas, um lugar que nenhuma mente consegue precisar ao certo.
Alguém batia à porta bruscamente. Subi as escadas imaginando ser a empregada que cuidava de minha mãe e estava certo. Assim que abri a porta, me deparei com uma mulher insegura com a tez pálida mesmo sendo negra. Trazia a notícia como um mensageiro da morte que minha mãe havia falecido. Fingi um choque, porém acho que não me sai muito bem, afinal atuar jamais foi o meu forte.
Segundo a empregada, ela não sofrera ao morrer. Não sei o que a motivou dizer isso, pois os olhos arregalados ainda fitando (mesmo após de mortos) a coisa mais assustadora do mundo, a boca escancarada emitindo um berro horrorizado e silenciosamente agônico junto dos dedos crispados denotando uma luta a qual não podia vencer, diziam que foi uma morte bastante dolorosa. Abaixei as suas pálpebras solenemente e sentindo-me tão estranho até mais quando deixei o templo de Asgototh. Por mais que houvesse um ódio latente entre nós, jamais haveria motivos para sentir aquela euforia que por pouco não me fez gargalhar diante de seu corpo morto. Deus sabia que apesar de tudo, eu sentia pena de seu estado degenerativo, quase vegetativo, era como se eu simplesmente não fosse eu.
O funeral de minha mãe foi um processo cansativo e quase tão burocrático quanto o processo do divórcio entre Maria Luíza e eu. Maria Luíza por sua vez apareceu no velório para minha desagradável surpresa. Será que a vida de minha mãe não havia sido o suficiente? Por que diabos ela ainda estava viva? Pensei naquele momento. Ela veio em minha direção, condolente em seu belo rosto lupino e iluminado de tal forma. Usava um corte novo que realçava aquela expressão. O simples contato dela fez me lembrar de vagamente os desejos carnais que minha obcecada vingança havia escondido. Aquela mulher um dia fora minha e eu faria de tudo para que não fosse de mais ninguém. O ódio em vê-la com aquela aliança com suas iniciais e as de Marcelo aflorou-se e acabei sendo ríspido com ela. Houve comentários em meio ao velório e Maria me repudiou por aquela atitude mesquinha. Ela se foi e obviamente não nos acompanhou ao cemitério.
Novamente me vi sob aquela sensação de não ser eu. Olhares enviesados eram lançados contra mim devido a minha face crispada segurando uma risada que saia em assopros flatulentos de meus lábios. Foi irresistível a comicidade da cena do caixão de minha mãe descendo para a eternidade, tive que pedir licença para não cair na gargalhada ali mesmo, sai do funeral sob olhares perplexos e desaprovadores.
Alguma coisa do templo de Asgototh estava dentro de mim, seria o próprio? Pensei de momento, no entanto, os estudos ocultos de meu avô diziam que possessões não eram do feitio daquele deus. Entretanto, ainda não era o momento de pensar naquilo. Havia uma coisa a ser feita, um acordo a ser cumprido.
Da mesma maneira que eu me transportei ao bizarro mundo de Asgototh, Maria teria de ser morta. E foi assim que meu lápis deslizava sobre a superfície daquela folha de papel trazendo de volta a vida um velho personagem.
O Sombra era um personagem simples de ideias absurdamente primordiais, foi o meu primeiro vilão e limitava-se a ser uma silhueta negra com olhos injetados de ódio. Olhos que no entanto, não passavam de duas fendas brancas e fulgurantes. Fendas que buscavam a sua vítima acuada no canto de seu quarto com a luz do abajur delineando a sua expressão de sumo pavor. A beira da cama, que se despontava no canto da página, um pequeno enxoval para uma pequena menina. Estaria Maria Luíza grávida? Era bem possível, imaginei; seu rosto estava devidamente iluminado no velório de minha mãe. A vítima tinha a mão espalmada para o Sombra, um gesto que denotava entrega, rendição, um gesto que indicava que ninguém apareceria para ajudá-la.
Foi naquela mesma noite, aquela noite estival de relâmpagos no horizonte que sucedeu à tarde que minha mãe tinha sido sepultada. Uma suave brisa sacolejava brandamente as folhas das árvores trazendo perfumes indecifráveis e agradáveis. Atrás de uma dessas árvores, eu observava a casa dela, a janela de seu quarto aberta com a cortina de renda branca escapando pelo lado de fora, sacolejando como o véu de uma noiva fantasma. As luzes do quarto se acenderam e a silhueta de Maria Luíza surgiu cruzando a janela. Vestia um roupão de banho azul que pude reconhecer muito bem, pois era uma veste que usava quando ainda éramos casados. Senti o meu pênis enrijecer involuntariamente e não entendia o porquê. Eu não a desejava naquele momento, tampouco numa situação que antecedia algo terrivelmente fantástico. Assenti que aquela excitação digna de um voyeur tinha a mesma explicação que a vontade de gargalhar durante o funeral de minha mãe. Quando ameacei a conjecturar o que estava acontecendo comigo, uma silhueta surgiu numa das janelas a esquerda do quarto de Maria. Era alta demais para ser a silhueta de Marcelo Floriano ou de qualquer outra pessoa, assustadora demais. O sombra esgueirou-se pelos corredores indo até o quarto ficando visível para mim através da sequencia de janelas, exalando a mesma quintessência maligna que apresentava em meus desenhos.
Maria provavelmente não notou quando o lúgubre invasor adentou o seu quarto. Quando vi aquela silhueta hedionda parada sob o umbral da porta senti uma onda de remorso tomando-me de assalto. Apesar de todo ódio que parecia estar acabando naquele momento, um ódio sem sentido por sinal, eu simplesmente não podia ficar e presenciar mesmo que de longe, a cena que eu mesmo arquitetei. Deixei o local em passadas longas e a brisa noturna trouxera até meus ouvidos o seu grito agudo e desesperado. Naquela altura do campeonato era tarde demais para arrependimentos.
Adormeci no sofá assim que cheguei a minha casa. Havia sido um dia demasiado longo e o céu relampeava ao fundo como o flash de uma máquina fotográfica. Antes de me deitar fechei as janelas a fim de evitar que a iminente chuva molhasse o interior. Senti uma tristeza me aninhando em um abraço gelado e fraternal, no entanto, por mais que eu havia tentado, nenhuma lágrima fora derramada.
Um som estrondoso me acordou no meio da madrugada, na verdade foram dois sons, porém o rimbombar de um fulminante trovão se destacou do ruído da janela chocando-se contra o batente devido ao forte vento da tempestade. Era como se o próprio Júpiter bombardeasse a terra com os seus raios mais poderosos.
A casa estava mergulhada num mar negro quase fuliginoso. As silhuetas dos móveis não foram visualizadas no primeiro momento que abri os olhos. A cabeça doía e o sono parecia ter me deixado mais cansado ao invés de ter reposto as minhas energias. A escuridão estendia-se pelo lado de fora, certamente um galho caíra por sobre a rede elétrica deixando a região sem luz. O vento era forte, ululante e trazia consigo os maiores mistérios da noite.
Avaliei-me antes de me levantar, o mundo girava ao meu redor exatamente como um mundo de um embriagado. Com dificuldades caminhei até a janela para fechá-la, eram passos trôpegos, oscilantes e acima de tudo ébrios. Meus olhos já adaptados à escuridão permitiu perceber que toda a mobília da sala realmente não estava mais ali, e tal coisa assombrosa me fez esquecer a porra da janela e me concentrar naquele novo e insólito fato.
Alguém estava em minha casa, esse foi o pensamento de momento, no entanto a primeira vista da porta, mesmo no escuro, era que não havia sinais de arrombamento, uma vez que era impossível entrar pela janela devido às grades. O vento lá fora fazia os galhos das árvores rangerem e se partirem, a cortina sacolejava rispidamente e farfalhava como uma bandeira no alto de um mastro. Não havia nenhuma explicação aparente para o sumiço da mobília, contudo, após caminhar sete passos à direita, pude notar que ela não tinha sido roubada e sim transferida para outros cômodos. O rack se encontrava no corredor que levava ao porão, porém mesmo com um dos mistérios revelados, o mistério maior ainda pairava sem resposta. Quem teria arrastado os móveis? Seria o espírito vingativo de minha mãe? O espírito de Maria Luíza? Asgototh? Todavia um gesto brusco que fez minhas costas lancinarem numa seta de dor que desceu até a região lombar me deu um palpite deveras pertinente.
Outro ribombante trovão fez a sala piscar numa curta intermitência entre um cinza e um preto. Naquele curto ínterim de iluminação, meus olhos fitaram escrituras nas paredes, teto e piso. Caminhei apressado até a cozinha tropeçando numa garrafa de uísque deixada vazia pelo caminho. A mesinha de centro fora arrastada até ali, por um triz não bati com a canela em sua quina. Após dois minutos tateando as gavetas, finalmente havia encontrado a lanterna que por sorte funcionava.
A sala estava repleta de inscrições rúnicas que evocavam uma espécie de litania oculta. A tinta cheirava a mofo, de onde é que ela tinha vindo, estava há anos armazenada. Tudo estava relativamente claro. As minhas curtas conjecturas estavam certas; minhas unhas e meu hálito de álcool mesclado a carvalho as confirmavam.
O dia já havia raiado e eu ainda buscava explicações para o que acontecia comigo. Novamente perscrutava cada linha nos trabalhos de meu avô. Surpreendentemente, aqueles símbolos rúnicos passaram a ser compreendidos por mim como se fosse uma segunda língua. Algumas páginas eram naturalmente lidas, outras requeriam um trabalho mais minucioso de interpretação. Sentia-me ludibriado enquanto as pessoas contabilizavam o prejuízo da tempestade da noite passada, além de me sentir uma outra pessoa, pois nada nas velhas pesquisas de meu avô explicavam o que de fato estava acontecendo. Apenas ele poderia explicar pessoalmente, afinal esteve no templo de Asgototh e talvez tivesse tido o mesmo problema que eu, contudo, ele não tinha como um hábito relatar as nuances de sua vida, ou seus atos eram simplesmente tão impróprios e insalubres que não poderiam ser deixados à mercê de qualquer pessoa.
O cavalete em minha frente oferecia uma oportunidade única. Tomei o lápis em mãos e comecei a tracejar sobre a folha branca. Nenhum detalhe daquele canto do porão escapava, desde os mais ínfimos aos mais substanciais. Embora a cabeça latejasse pela embriaguez, nunca fui tão minucioso e perfeccionista em um desenho como fui naquele.
O gradil estava inundado pela tímida luz da manhã que vinha lá de cima. Sob o feixe natural do sol, aquela espécie de lareira com dentes de aços se apresentava como uma atração em um palco. Com todas as minhas esperanças depositadas naquela perspectiva, me aproximei. Diante dela, tateei um dos tijolinhos que a ladeava conforme a indicação de meu desenho. Quando o tal tijolinho cedeu num simples toque, o coração acelerou em expectativa, e quando o puxei, encontrei o diário de meu avô numa espécie de compartimento secreto, exatamente como em meu desenho.
Vislumbres e clarividências surgiram em minha mente a cada página lida, sentia como se tivesse vivido todos aqueles relatos, todavia, os relatos de meu avô poderiam ficar para outra hora, pois o que me interessava era a parte de sua vida que contava o seu encontro com Asgototh. E as páginas estavam lá, relatando todos os detalhes do encontro, o cenário, o pavor inicial, os entraves e o famigerado acordo.
Nunca o acordo me seria de interesse naquele momento, as páginas seguintes sim. Porém, após uma rápida lida nos termos de seus desejos, o peso de meu corpo simplesmente deixou de existir a ponto de não ter forças para manter o diário em mãos. Mesmo que minha ação fosse uma coisa dantesca, a de meu avô superava a apoteose de todas as maldades.
A morte sempre é a certeza que encadeia uma sequencia de mistérios. Os mais simples são as circunstanciais: para onde vamos? Existe realmente um céu e um inferno? Ou se reencarnaremos um dia? Diante desses parâmetros mais espirituais do que propriamente de outra esfera, há aqueles que a encaram como o fim de tudo e a rejeitam veementemente. Isso faz com que a busca pela imortalidade seja o anseio mais obscuro dos homens. O perpétuo existencialismo carnal vem desde as épocas mais imemoriais. Tal como os personagens de H.G Wells, Mary Shelley e Stephen King, meu avô foi tomado pela obsessão de vencê-la, em quebrar o castigo de Deus dado aos primeiros dos homens, ao deturpar o conceito mais básico e antagônico dos seres viventes. Porém não no intuito de trazer de volta uma amada, um filho morto prematuramente, ou qualquer pessoa que fosse, mas no intuito de trazer a si mesmo do mundo dos mortos. Esse foi o seu genial e sórdido acordo com Asgototh, a vida do próprio filho junto da trágica doença de sua nora que a mataria num enfado cruel e meticuloso em troca da sua vil continuidade. E ele não haveria de se levantar de sua sepultura como numa clássica cena de um filme de terror barato, mas em mim; eu era a sua sepultura, não a sepultura de seu corpo que os vermes houveram de consumir, mas a sepultura de seu espírito. Talvez estivesse dentro de mim desde o ventre de minha mãe aguardando o momento para ressurgir. Seria a minha ida ao templo do Deus dos Desejos Sórdidos o estímulo que faltava para o seu ressurgimento? Era algo que não podia imaginar e ainda não posso. Às vezes evito pensar nisso aceitando uma ideia de que eu nunca teria escolha, é uma perspectiva mais confortável, pois a assombrosa realidade é tão inaceitável quanto à própria morte.
Não sei quando ele me assumirá em definitivo. Sinto-me cada vez mais envolto por involuntariedades, se permite inventar esta palavra e capacidades que nunca me foram concedidas. Memórias de uma época que sequer presenciei também são uma constante. Algumas mudanças físicas me foram atribuídas de maneira veemente, meus olhos que eram castanhos claros agora são verdes – os olhos dele. Diante dessa insólita maneira de sucumbir a uma morte de espírito, me vêm à mente duas certezas. A primeira é que minha mãe sempre soube da existência dele em mim, de alguma forma, sabia que eu nunca fui seu filho legítimo. A segunda certeza, nada mais é do que uma síntese do que escrevi no primeiro parágrafo desse relato, a premissa de que só damos valor a uma pessoa quando a perdemos. Mesmo que o ressurgimento de meu avô fosse inevitável e ele afetasse Maria de alguma forma, estabelecendo uma dúvida mortal que me consumirá em culpa, eu sinto a falta dela, mais do que nunca. Assim segue o cíclico ritmo da vida.