O Trem de Carne da Meia-Noite - Clive Barker (Parte3)
Às onze horas, uma hora além do que havia prometido a si mesmo, Kaufman ainda não havia terminado. Mas a irritação e o tédio dificultavam o trabalho, e os números se embaralhavam na frente dos seus olhos. As onze e dez entregou os pontos e admitiu a derrota. Esfregou os olhos ardentes com as palmas das mãos até enxergar um verdadeiro calidoscópio sob as pálpebras fechadas.
— Que se fodam! — disse.
Nunca dizia palavrões na frente de outras pessoas. Mas uma vez ou outra dizer “que se fodam” era um grande consolo. Saiu do escritório com o sobretudo úmido no braço e foi para o elevador. Sentia as pernas e os braços dormentes e mal podia manter os olhos abertos.
Lá fora estava mais frio do que esperava, e o ar da noite expulsou em parte sua letargia. Caminhou para o metrô da Rua 34. Tomaria um expresso até Park Rockaway e estaria em casa dentro de uma hora. Nem Kaufman nem Mahogany sabiam, mas na esquina da Rua 96 com a Broadway a polícia acabava de prender o que julgava ser O Assassino do Metrô, depois de cercá-lo num dos trens que iam para a cidade. Era um homem pequeno, de origem européia, que empunhava um martelo e uma serra e encurralara uma jovem no segundo carro, ameaçando cortá-la pelo meio em nome de Jeová. Se era ou não capaz de cumprir a ameaça, ninguém sabia. Mas, em verdade, nem teve chance de provar. Enquanto o resto dos passageiros (incluindo dois fuzileiros navais) observava, a vítima em potencial deu-lhe um pontapé certeiro nos testículos. Ele deixou cair o martelo. Ela o apanhou e quebrou-lhe o maxilar inferior e o osso da face antes que os fuzileiros pudessem intervir.
Quando o trem parou na Rua 96, os policiais estavam à espera para efetuar a prisão do Açougueiro do Metrô. Entraram correndo no carro, gritando como almas penadas e morrendo de medo. O Açougueiro estava deitado num canto, com o rosto em mísero estado. Eles o levaram triunfantes. A mulher, depois de ser interrogada, foi para casa com os fuzileiros. Uma confusão que lhe viria a ser muito útil, embora Mahogany dela não tivesse a menor notícia ainda. A polícia levou boa parte da noite para determinar a identidade do prisioneiro, especialmente porque ele mal podia falar, com o maxilar quebrado. Só às três e meia da manhã um certo Capitão Davis, que entrou de serviço naquela hora, reconheceu o homem como um vendedor de flores aposentado do Bronx, chamado Hank Vasarely.
Aparentemente Hank fora preso muitas vezes por comportamento ameaçador e exposição indecente, tudo em nome de Jeová. As aparências enganam; Hank era tão perigoso quanto o coelhinho da Páscoa. Não era O Açougueiro do Metrô. Mas quando os policiais chegaram a essa conclusão Mahogany já estava fazendo seu trabalho há muito tempo.
******
Eram onze e quinze quando Kaufman entrou no expresso para a Avenida Mott. Havia mais dois passageiros no carro. Uma mulher negra de meia-idade, vestindo um púrpura, e um adolescente pálido e cheio de acne, que olhava fixamente para os grafitti do teto, onde havia um que dizia “Beije meu traseiro”.
Kaufman estava no primeiro carro. Tinha uma viagem de trinta e cinco minutos pela frente. Fechou os olhos, embalado pelo balanço ritmado do trem. Era uma viagem tediosa, e ele estava cansado. Não viu quando as luzes se apagaram no segundo carro. Não viu o rosto de Mahogany, no vidro entre os dois carros, a procura de mais carne.
Na Rua 14 a mulher negra desceu. Ninguém embarcou. Kaufman abriu os olhos brevemente, olhou para a plataforma vazia da Rua 14 e os fechou de novo. As portas se fecharam com um zumbido... Ele pairava naquele morno lugar entre a vigília e o sono com o adejar de sonhos nascentes envolvendo-o. Uma sensação agradável. O trem andou outra vez, chacoalhando nos túneis. Talvez no fundo da mente adormecida Kaufman tenha registrado o fato de que as portas entre o primeiro e o segundo carro haviam sido abertas. Talvez tenha sentido o cheiro da rajada repentina do ar do túnel, registrando também o barulho mais acentuado das rodas do trem. Mas ignorou tudo isso.
Talvez tivesse até mesmo ouvido o ruído da luta quando Mahogany dominou o jovem de olhar perdido. Mas o som era distante, e a promessa do sono, tentadora. Kaufman dormiu de novo.
Por alguma razão sonhou com a cozinha da mãe. Ela estava picando nabos e sorrindo docemente. No sonho Kaufman era muito pequeno e olhava para o rosto radiante enquanto ela trabalhava. Corta. Corta. Corta. Abriu os olhos bruscamente. Sua mãe desapareceu. O carro estava vazio.
O jovem havia desaparecido. Durante quanto tempo tinha dormido? Não se lembrava de o trem ter parado na Rua 4. Levantou-se, sonolento ainda, e quase caiu com um balanço mais violento do carro. Parecia ter aumentado muito a velocidade. Talvez o maquinista tivesse pressa de chegar em casa, de ir para a cama abraçado à mulher. Estavam voando, na verdade. E era apavorante. Kaufman viu uma persiana baixada sobre o vidro entre os dois carros, que não tinha notado antes. Ficou um pouco preocupado. Será que havia dormido demais, e o guarda não o vira no carro? Talvez tivessem passado por Park Rockaway, e o trem corresse agora para onde quer que fosse guardado à noite.
— Que se fodam! — disse em voz alta.
Deveria ir até o maquinista para se informar? Que pergunta mais idiota! Onde estamos? Naquela hora da noite, certamente ia ouvir uma porção de desaforos como resposta.
Então o trem começou a diminuir a marcha.
Uma estação. Sim, uma estação. O trem saiu do túnel para a luz encardida na estação da Rua 4 Oeste. Não tinha perdido parada alguma. Mas então, para onde tinha ido o garoto? Teria ignorado o aviso, proibindo passar de um carro para o outro quando o trem estivesse em movimento, ou estava na cabine do maquinista, lá na frente?
Provavelmente entre as pernas do maquinista ainda, pensou Kaufman com um sorriso de desprezo. Não seria a primeira vez. Aquele era o Palácio das Delícias, afinal, e todos tinham direito a um pouco de amor no escuro. Kaufman deu de ombros. Por que se importar com o paradeiro do garoto?
As portas se fecharam. Ninguém tinha embarcado. Saíram da estação, as luzes diminuindo de intensidade com o aumento de energia usada pelo motor para recuperar a marcha. Kaufman sentiu outra vez vontade de dormir, mas o medo de se perder injetou-lhe adrenalina no organismo, e seus braços e pernas formigaram com energia nervosa.
Seus sentidos estavam aguçados.
Sobre o barulho metálico e surdo das rodas nos trilhos, ouviu o som deroupa sendo rasgada, que vinha do segundo carro. Alguém estaria tirando a camisa apressadamente?
Levantou-se, segurando uma das alças de couro para se equilibrar. A janela entre os carros estava fechada pela persiana, mas Kaufman olhou para ela, franzindo a testa, como se pudesse adquirir visão raio-X de um momento para outro. O carro balançava e balançava. A toda velocidade outra vez.
Outra vez o barulho de roupa rasgada. Seria algum estupro?
Levado por um leve impulso de bisbilhotice caminhou no carro balouçante para a porta, esperando encontrar uma fresta na persiana. Com os olhos fixos nelas, não notou que chapinhava em sangue. Até que... escorregou. Olhou para baixo. Seu estômago viu o sangue antes que o cérebro registrasse alguma coisa, e o presunto com pão de centeio subiu, prendendo-se na sua garganta. Sangue. Respirou várias vezes o ar viciado e desviou
a vista — de volta para a janela.
Sua mente dizia: sangue. Nada podia afastar a palavra da sua cabeça. Estava a uns dois metros da porta, agora. Precisava ver. Havia sangue nos seus sapatos, e uma trilha fina que ia até o outro carro, mas Kaufman precisava olhar. Era imperativo.
Mais dois passos na direção da porta e então examinou a persiana, procurando uma fresta; um fio puxado no pano seria suficiente. Achou um orifício minúsculo. Grudou o olho nele. Seu cérebro recusou-se a aceitar o que os olhos viam do outro lado da porta. Rejeitou o espetáculo como absurdo, como um sonho. A razão dizia que não podia ser real, mas seus servos sabiam que era. Ficou rígido de terror. Os olhos fixos não se podiam afastar da cena horrível no outro lado da cortina. Ficou ali parado na porta enquanto o trem continuava a viagem barulhenta, todo o seu sangue fugindo para as extremidades, e o cérebro atordoado por falta de oxigênio.
Pontos brilhantes espoucaram na frente dos seus olhos, obliterando a atrocidade. Então ele desmaiou. Estava inconsciente quando o trem chegou â Rua Jay. Não ouviu o aviso do maquinista para que todos os passageiros que iam continuar viagem mudassem de trem. Se tivesse ouvido, sem dúvida questionaria o motivo. Nenhum trem desembarcava todos os passageiros na Rua Jay; a linha ia até a Avenida Mott, via Aqueduto do Hipódromo, passando pelo Aeroporto John F. Kennedy. Teria perguntado que tipo de trem era aquele. Exceto pelo fato de já saber.
A verdade estava dependurada no outro carro. Sorria satisfeita para si própria, protegida por um avental ensanguentado de cota de malha.
Aquele era o Trem de Carne da Meia-noite.
Não se pode calcular o tempo num desmaio total. Segundos ou horas podiam ter passado antes que Kaufman abrisse os olhos de novo e sua mente se concentrasse naquela terrível situação. Viu-se deitado sob um dos bancos, encostado numa das paredes vibrantes do carro. Até então a sorte estava com ele, pensou; de algum modo, o balanço do carro havia levado seu corpo inconsciente para o esconderijo.
Pensou no horror no Carro Dois, e engoliu o vômito. Estava sozinho. Onde quer que estivesse o guarda (talvez assassinado), não tinha como chamar por socorro. E o maquinista? Estaria morto também nos controles? Estaria o trem naquele momento lançando-se para dentro de um túnel desconhecido, um túnel sem qualquer estação que o pudesse identificar, a caminho da destruição?
E se não houvesse alguma colisão para matá-lo, havia o Açougueiro, ainda retalhando, separado de Kaufman apenas por uma porta. Para qualquer lado que se voltasse, o nome na porta era Morte.
O barulho era ensurdecedor, especialmente ali, deitado no chão. Os dentes de Kaufman batiam sem cessar, e seu rosto estava amortecido pela vibração; até seu crânio doía. Gradualmente sentiu que as forças voltavam aos membros exaustos. Com cuidado esticou os dedos e fechou-os, para provocar o refluxo do sangue. Com a volta da sensação, voltou também a náusea. Continuava a ver a nojenta brutalidade no outro carro. Tinha visto fotografias de vítimas de crimes antes, é claro, mas aquele não era um crime comum. Estava no mesmo trem que o Açougueiro do Metrô, o monstro que dependurava as vítimas pelos pés nas alças de couro, sem pêlos e nuas.
Dentro de quanto tempo o assassino iria atravessar aquela porta e exigir também o corpo de Kaufman? Tinha certeza de que, se o Açougueiro não acabasse com ele, a terrível expectativa se encarregaria disso.
Ouviu movimentos do outro lado da porta...
Às onze horas, uma hora além do que havia prometido a si mesmo, Kaufman ainda não havia terminado. Mas a irritação e o tédio dificultavam o trabalho, e os números se embaralhavam na frente dos seus olhos. As onze e dez entregou os pontos e admitiu a derrota. Esfregou os olhos ardentes com as palmas das mãos até enxergar um verdadeiro calidoscópio sob as pálpebras fechadas.
— Que se fodam! — disse.
Nunca dizia palavrões na frente de outras pessoas. Mas uma vez ou outra dizer “que se fodam” era um grande consolo. Saiu do escritório com o sobretudo úmido no braço e foi para o elevador. Sentia as pernas e os braços dormentes e mal podia manter os olhos abertos.
Lá fora estava mais frio do que esperava, e o ar da noite expulsou em parte sua letargia. Caminhou para o metrô da Rua 34. Tomaria um expresso até Park Rockaway e estaria em casa dentro de uma hora. Nem Kaufman nem Mahogany sabiam, mas na esquina da Rua 96 com a Broadway a polícia acabava de prender o que julgava ser O Assassino do Metrô, depois de cercá-lo num dos trens que iam para a cidade. Era um homem pequeno, de origem européia, que empunhava um martelo e uma serra e encurralara uma jovem no segundo carro, ameaçando cortá-la pelo meio em nome de Jeová. Se era ou não capaz de cumprir a ameaça, ninguém sabia. Mas, em verdade, nem teve chance de provar. Enquanto o resto dos passageiros (incluindo dois fuzileiros navais) observava, a vítima em potencial deu-lhe um pontapé certeiro nos testículos. Ele deixou cair o martelo. Ela o apanhou e quebrou-lhe o maxilar inferior e o osso da face antes que os fuzileiros pudessem intervir.
Quando o trem parou na Rua 96, os policiais estavam à espera para efetuar a prisão do Açougueiro do Metrô. Entraram correndo no carro, gritando como almas penadas e morrendo de medo. O Açougueiro estava deitado num canto, com o rosto em mísero estado. Eles o levaram triunfantes. A mulher, depois de ser interrogada, foi para casa com os fuzileiros. Uma confusão que lhe viria a ser muito útil, embora Mahogany dela não tivesse a menor notícia ainda. A polícia levou boa parte da noite para determinar a identidade do prisioneiro, especialmente porque ele mal podia falar, com o maxilar quebrado. Só às três e meia da manhã um certo Capitão Davis, que entrou de serviço naquela hora, reconheceu o homem como um vendedor de flores aposentado do Bronx, chamado Hank Vasarely.
Aparentemente Hank fora preso muitas vezes por comportamento ameaçador e exposição indecente, tudo em nome de Jeová. As aparências enganam; Hank era tão perigoso quanto o coelhinho da Páscoa. Não era O Açougueiro do Metrô. Mas quando os policiais chegaram a essa conclusão Mahogany já estava fazendo seu trabalho há muito tempo.
******
Eram onze e quinze quando Kaufman entrou no expresso para a Avenida Mott. Havia mais dois passageiros no carro. Uma mulher negra de meia-idade, vestindo um púrpura, e um adolescente pálido e cheio de acne, que olhava fixamente para os grafitti do teto, onde havia um que dizia “Beije meu traseiro”.
Kaufman estava no primeiro carro. Tinha uma viagem de trinta e cinco minutos pela frente. Fechou os olhos, embalado pelo balanço ritmado do trem. Era uma viagem tediosa, e ele estava cansado. Não viu quando as luzes se apagaram no segundo carro. Não viu o rosto de Mahogany, no vidro entre os dois carros, a procura de mais carne.
Na Rua 14 a mulher negra desceu. Ninguém embarcou. Kaufman abriu os olhos brevemente, olhou para a plataforma vazia da Rua 14 e os fechou de novo. As portas se fecharam com um zumbido... Ele pairava naquele morno lugar entre a vigília e o sono com o adejar de sonhos nascentes envolvendo-o. Uma sensação agradável. O trem andou outra vez, chacoalhando nos túneis. Talvez no fundo da mente adormecida Kaufman tenha registrado o fato de que as portas entre o primeiro e o segundo carro haviam sido abertas. Talvez tenha sentido o cheiro da rajada repentina do ar do túnel, registrando também o barulho mais acentuado das rodas do trem. Mas ignorou tudo isso.
Talvez tivesse até mesmo ouvido o ruído da luta quando Mahogany dominou o jovem de olhar perdido. Mas o som era distante, e a promessa do sono, tentadora. Kaufman dormiu de novo.
Por alguma razão sonhou com a cozinha da mãe. Ela estava picando nabos e sorrindo docemente. No sonho Kaufman era muito pequeno e olhava para o rosto radiante enquanto ela trabalhava. Corta. Corta. Corta. Abriu os olhos bruscamente. Sua mãe desapareceu. O carro estava vazio.
O jovem havia desaparecido. Durante quanto tempo tinha dormido? Não se lembrava de o trem ter parado na Rua 4. Levantou-se, sonolento ainda, e quase caiu com um balanço mais violento do carro. Parecia ter aumentado muito a velocidade. Talvez o maquinista tivesse pressa de chegar em casa, de ir para a cama abraçado à mulher. Estavam voando, na verdade. E era apavorante. Kaufman viu uma persiana baixada sobre o vidro entre os dois carros, que não tinha notado antes. Ficou um pouco preocupado. Será que havia dormido demais, e o guarda não o vira no carro? Talvez tivessem passado por Park Rockaway, e o trem corresse agora para onde quer que fosse guardado à noite.
— Que se fodam! — disse em voz alta.
Deveria ir até o maquinista para se informar? Que pergunta mais idiota! Onde estamos? Naquela hora da noite, certamente ia ouvir uma porção de desaforos como resposta.
Então o trem começou a diminuir a marcha.
Uma estação. Sim, uma estação. O trem saiu do túnel para a luz encardida na estação da Rua 4 Oeste. Não tinha perdido parada alguma. Mas então, para onde tinha ido o garoto? Teria ignorado o aviso, proibindo passar de um carro para o outro quando o trem estivesse em movimento, ou estava na cabine do maquinista, lá na frente?
Provavelmente entre as pernas do maquinista ainda, pensou Kaufman com um sorriso de desprezo. Não seria a primeira vez. Aquele era o Palácio das Delícias, afinal, e todos tinham direito a um pouco de amor no escuro. Kaufman deu de ombros. Por que se importar com o paradeiro do garoto?
As portas se fecharam. Ninguém tinha embarcado. Saíram da estação, as luzes diminuindo de intensidade com o aumento de energia usada pelo motor para recuperar a marcha. Kaufman sentiu outra vez vontade de dormir, mas o medo de se perder injetou-lhe adrenalina no organismo, e seus braços e pernas formigaram com energia nervosa.
Seus sentidos estavam aguçados.
Sobre o barulho metálico e surdo das rodas nos trilhos, ouviu o som deroupa sendo rasgada, que vinha do segundo carro. Alguém estaria tirando a camisa apressadamente?
Levantou-se, segurando uma das alças de couro para se equilibrar. A janela entre os carros estava fechada pela persiana, mas Kaufman olhou para ela, franzindo a testa, como se pudesse adquirir visão raio-X de um momento para outro. O carro balançava e balançava. A toda velocidade outra vez.
Outra vez o barulho de roupa rasgada. Seria algum estupro?
Levado por um leve impulso de bisbilhotice caminhou no carro balouçante para a porta, esperando encontrar uma fresta na persiana. Com os olhos fixos nelas, não notou que chapinhava em sangue. Até que... escorregou. Olhou para baixo. Seu estômago viu o sangue antes que o cérebro registrasse alguma coisa, e o presunto com pão de centeio subiu, prendendo-se na sua garganta. Sangue. Respirou várias vezes o ar viciado e desviou
a vista — de volta para a janela.
Sua mente dizia: sangue. Nada podia afastar a palavra da sua cabeça. Estava a uns dois metros da porta, agora. Precisava ver. Havia sangue nos seus sapatos, e uma trilha fina que ia até o outro carro, mas Kaufman precisava olhar. Era imperativo.
Mais dois passos na direção da porta e então examinou a persiana, procurando uma fresta; um fio puxado no pano seria suficiente. Achou um orifício minúsculo. Grudou o olho nele. Seu cérebro recusou-se a aceitar o que os olhos viam do outro lado da porta. Rejeitou o espetáculo como absurdo, como um sonho. A razão dizia que não podia ser real, mas seus servos sabiam que era. Ficou rígido de terror. Os olhos fixos não se podiam afastar da cena horrível no outro lado da cortina. Ficou ali parado na porta enquanto o trem continuava a viagem barulhenta, todo o seu sangue fugindo para as extremidades, e o cérebro atordoado por falta de oxigênio.
Pontos brilhantes espoucaram na frente dos seus olhos, obliterando a atrocidade. Então ele desmaiou. Estava inconsciente quando o trem chegou â Rua Jay. Não ouviu o aviso do maquinista para que todos os passageiros que iam continuar viagem mudassem de trem. Se tivesse ouvido, sem dúvida questionaria o motivo. Nenhum trem desembarcava todos os passageiros na Rua Jay; a linha ia até a Avenida Mott, via Aqueduto do Hipódromo, passando pelo Aeroporto John F. Kennedy. Teria perguntado que tipo de trem era aquele. Exceto pelo fato de já saber.
A verdade estava dependurada no outro carro. Sorria satisfeita para si própria, protegida por um avental ensanguentado de cota de malha.
Aquele era o Trem de Carne da Meia-noite.
Não se pode calcular o tempo num desmaio total. Segundos ou horas podiam ter passado antes que Kaufman abrisse os olhos de novo e sua mente se concentrasse naquela terrível situação. Viu-se deitado sob um dos bancos, encostado numa das paredes vibrantes do carro. Até então a sorte estava com ele, pensou; de algum modo, o balanço do carro havia levado seu corpo inconsciente para o esconderijo.
Pensou no horror no Carro Dois, e engoliu o vômito. Estava sozinho. Onde quer que estivesse o guarda (talvez assassinado), não tinha como chamar por socorro. E o maquinista? Estaria morto também nos controles? Estaria o trem naquele momento lançando-se para dentro de um túnel desconhecido, um túnel sem qualquer estação que o pudesse identificar, a caminho da destruição?
E se não houvesse alguma colisão para matá-lo, havia o Açougueiro, ainda retalhando, separado de Kaufman apenas por uma porta. Para qualquer lado que se voltasse, o nome na porta era Morte.
O barulho era ensurdecedor, especialmente ali, deitado no chão. Os dentes de Kaufman batiam sem cessar, e seu rosto estava amortecido pela vibração; até seu crânio doía. Gradualmente sentiu que as forças voltavam aos membros exaustos. Com cuidado esticou os dedos e fechou-os, para provocar o refluxo do sangue. Com a volta da sensação, voltou também a náusea. Continuava a ver a nojenta brutalidade no outro carro. Tinha visto fotografias de vítimas de crimes antes, é claro, mas aquele não era um crime comum. Estava no mesmo trem que o Açougueiro do Metrô, o monstro que dependurava as vítimas pelos pés nas alças de couro, sem pêlos e nuas.
Dentro de quanto tempo o assassino iria atravessar aquela porta e exigir também o corpo de Kaufman? Tinha certeza de que, se o Açougueiro não acabasse com ele, a terrível expectativa se encarregaria disso.
Ouviu movimentos do outro lado da porta...