quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Na Colina (Parte 1)

Os acontecimentos dos últimos dias têm tanto abalado minha compreensão do mundo, quanto me deixado sem disposição e perplexo. No entanto, eu sinto que tenho que organizar esses eventos na minha mente, e sou obrigado a estruturar as terríveis coisas que eu vi para que assim eu as entenda melhor, para que minha mente tenha talvez um descanso - uma necessidade de enumerar tudo que aconteceu.

Foi totalmente por acaso que conheci John R---. Era primavera, e os primeiros açafrões estavam saindo bem contra os últimos resquícios de gelo que o inverno havia produzido. Eu estava em pesquisa para um artigo que estava escrevendo para uma publicação que era, digamos assim, mais do que respeitável, quando me vi à mercê durante a noite em uma pequena aldeia das montanhas.

Todo o calvário tinha sido frustrante e no mínimo cansativo. Supostamente, eu deveria estar de volta a Glasgow naquela mesma noite para digitar minhas anotações e espantar a neblina que vinha acompanhando minhas tentativas de escrita. Estar, em uma pequena vila com apenas uma rua e um pub (que também era uma pousada), o qual parecia não ter sido redecorado desde a idade das trevas, não era minha ideia de conforto caseiro; especialmente depois de algumas semanas de viagem constante, entrevistas intermináveis, e mais de uma noite sem descanso em uma cama suja ou café da manhã.

Havia acontecido um pequeno afundamento na estrada de uma cidade sobre a qual tinha feito impossível que o ônibus continuasse viajando e, mais importante para mim, me levar à segurança. Após vários telefonemas tentando outros meios de continuar a viajar, pareceu que eu não ia a nenhum lugar até de manhã cedo. O sonolento pub/pousada tinha sido carinhosamente intitulado de O lorde de Dungorth - parecendo que poderia desabar em cima de mim a qualquer momento, para finalizar ela cheia de vigas de madeira deformada e uma clientela que pareciam tão quebradiças quanto - teria de ser minha casa durante a noite.

Depois de falar com o dono, um homem alto pontiagudo na casa dos cinquenta, fui gentilmente cedido um pequeno quarto no andar de cima que claramente não tinha sido usado em - ou limpo - fazia um bom tempo. Mesmo assim, as pessoas eram até legais e depois de um jantar básico mas agradável de comida local, eu me sentei confortavelmente em uma poltrona antiga que ficava perto do bar, tomando a decisão de matar o tédio com alguns litros da cerveja local e uma garrafa de vinho. As chamas dançavam logo a minha frente e quando o efeito entorpecente do álcool começou a fazer efeito, eu estava até contente - quase feliz de estar em um ambiente tão rústico. A vila poderia até ser meio triste, mas contra os ventos frios lá fora e um céu escurecendo, a pousada podia ser considerada charmosa.

Eu não tenho certeza o quanto de tempo eu estava sentado ali, hipnotizado pelo calor da lareira e algumas taças de vinho tinto, mas tornou-se evidente que eu estava acompanhado de outro hóspede da pousada. Ele se sentou perto de mim em uma poltrona larga e desgasta do outro lado da lareira, e ficou lá olhando para as chamas tremeluzentes.

Ele parecia curiosamente em disposição. Exteriormente ele parecia ser relativamente jovem - provavelmente em seus trinta e poucos anos - mas sua persona era inundada de uma fragilidade que normalmente não se esperava ver em um homem de sua idade. Seu rosto brilhava à luz do fogo, carregando com ela uma preocupação e linhas quem traíram uma agitação interna; seus olhos desfocados e suas mãos tremendo lentamente enquanto as aquecia no calor da lareira.

'Posso te ajudar?' Eu ouvi as palavras, mas não as registrei até que elas fosses repetidas.

'Desculpe-me, posso te ajudar?' O homem se dirigiu a mim de forma afiada, e fiquei surpreso ao perceber que estava olhando para ele por alguns minutos.

'Não, não é isso,' Eu respondi me desculpando. 'Eu... eu achei ter te reconhecido.'

Quando ele se virou para mim ele mostrou em sua expressão um olhar de descrença na minha mentira óbvia, mas felizmente, não sem um pequeno vestígio de bom humor.

'Desculpa se fui um pouco grosso com você,' ele disse. 'É só que eu estou cansado das pessoas ficarem me encarando por aqui.' Ele ergueu sua voz tentando fazer com que ela chegasse aos ouvidos dos gatos pingados que bebiam pub. Senti que os presentes tentavam evitar o seu olhar.

Partimos então para uma hora de conversa fiada. Seu nome era John R---- e ele era um agente de aquisição de terras de Londres. Ele alegou estar avaliando um lugar próximo, que um fazendeiro local estava disposto a vender para os promotores imobiliários, mas imediatamente senti que ele não estava à vontade para falar de seu trabalho. Na verdade, ele rapidamente mudou o foco da conversa inteiramente para mim; meu trabalho, vida, família, qualquer coisa. Era como se ele precisasse continuar falando comigo para manter a mente dele distraída para esconder sua ansiedade. Toda vez que eu tentava perguntar algo sobre ele ou sua vida, ele me dava uma resposta de uma ou duas palavras, ou ignorava e fazia sua própria pergunta.

Finalmente a conversa tomou seu curso, e por um momento nó sentamos em silêncio; os únicos sons vindos de alguns locais que passavam pelo pub e o tintilar ocasional de copos vazios enquanto sendo lavados pelo proprietário.

O pub agora estava visivelmente mais escuro, com a pouca luz fornecido por algumas pequenas lâmpadas de teto e o fogo que continuou a crepitar e tremular a noite toda. Me virei em direção a uma janela que dava pra fora da pousada, sem ver nada além de escuridão. Em seguida, as palavras simplesmente saíram da minha boca, sem eu perceber ou ter tempo de impedi-las. "Por que as pessoas te observam, John?"

Houve uma longa pausa enquanto eu olhava para ele esperando por uma resposta, seus olhos fixos no chão, mas seu rosto estampado com preocupação. Eu não esperava uma resposta profunda, dado o jeito da nossa conversa anterior, então continuei a tomar meu vinho quando de repente ele respondeu eu um tom sombrio: "Todos eles sabem, mas não tem coragem de falar a respeito." Se virando em direção ao poucos bebedores ainda no pub ele gritou "Eles todos estão com medo!".

A resposta do proprietário e seus consumidores foi apenas o silêncio. Eles pareciam ignorar inteiramente a acusação de John, com apenas uma breve hesitação de movimento ou conversa provava que eles realmente tinham ouvido a explosão momentânea. Eu não esperava uma resposta tão volátil, mas havia desespero naquele grito; ódio e frustração. Então, olhando diretamente para mim de um jeito que só posso descrever como uma mistura de medo e desilusão, ele abriu a boca como se fosse falar de novo, antes de hesitar mais uma vez. Eu senti que o homem, no fundo, queria livrar-se de um fardo, como se um pedaço tóxico de informação estava chateado sua alma.

Como escritor, minha criatividade foi cativada pela possibilidade de um conto fascinante, talvez uma que eu pudesse usar como base em um artigo ou história futura. Prevendo que agora só precisava de um empurrão para ganhar sua confiança, me inclinei e sussurrei "O que houve?" cheio de sentimento conflitante. Eu estava sentindo que estava perto de tornar-me a par de alguma coisa importante, mas pela sua tremedeira e seu comportamento ansioso, eu temia o que aquilo podia ser.

Um instante passou, e era como se todo o salão tivesse caído sob a sombra de um silêncio evidente, aqueles por perto ouvindo de seus cantos tenebrosos e não convidativos. Então ele falou "Se você quiser ser gentil e compartilhar seu vinho comigo, eu ficaria feliz em lhe dizer", disse ele em voz baixa.

Ele não precisou dizer duas vezes. Me levantei da minha cadeira e pedi no bar uma segunda garrafa e mais uma taça para dividir com meu companheiro. Houve uma hesitação peculiar quando o proprietário pegava ambos na prateleira logo atrás, colocando-os em minha frente. Quando voltei ao meu lugar, eu sabia que os presentes estavam me observando. Senti em meus ossos que havia algo desconfortavelmente sufocante nos olhares; olhares acusatórios mergulhados em medo.

Eu enchi uma taça de vinho, do qual John bebeu em um gole só - uma visão que eu conhecia muito bem, como de um homem que naufragado em um tumor maligno que queima por dentro. Depois de encher mais uma vez, coloquei a garrafa no chão entre nós esperando ele contar sua história.

 Depois de olhar a bebida por um momento, ele levantou a cabeça e olhando fixamente para mim, e em seguida como se exorcizasse um fardo de sua alma, ele começou.

***

John inicialmente não intencionava passar mais do que alguns dias na vila. Mesmo depois de ter viajado o dia inteiro de Londres, e a noite trazendo com ela as mordidas do inverno escocês, ele pretendia começar o mais rápido possível - quanto mais rápido terminasse, o mais rápido estaria em casa. 

Trabalhando para uma grande empresa de aquisição de propriedades, era seu trabalho facilitar aos clientes ricos a busca de um terreno para construir. O indivíduo o qual ele representava estava especialmente interessado em comprar uma terra com bela vista para o campo, onde desejava construir uma enorme casa de campo para sua família. O local em questão tinha sido recentemente colocado à venda por um fazendeiro local que estava passando por maus bocados pela baixa da economia. Portanto, John foi contratado para avaliar a terra e negociar um bom preço, baseada nas recomendações feitas por um grupo de inspetores que tinham estado lá na semana anterior.

Após se instalar no O Lorde de Dungorth, ele dirigiu seu carro para a fazenda que se situava a apenas alguns quilômetros fora da vila. Toda a área consistia de vastos campos onde colheitas eram cultivadas e animais pastavam, alguns acres com florestas, e um rio  ou riacho borbulhante ocasional. A negociação simplesmente fluiu, o fazendeiro - um homem idoso chamado Dale - estava precisando de capital o mais rápido possível para sustentar de pé o resto de suas fazendas, enquanto o cliente estava entusiasmando com o potencial da compra e desejava concluir o negócio rapidamente.

Independente disso, John era cuidadoso em finalizar um acordo antes dele mesmo dar uma olhada na propriedade. Durante os anos, ele desenvolveu uma reputação de oferecer exatamente o que o cliente queria, sem nenhuma surpresa desagradável após a compra, como afundamentos de terra ou quaisquer outras dificuldades de planejamento. Apesar dele não gostar muito do trabalho de avaliação de terrenos, ele era bem qualificado para detectar qualquer coisa que pudesse causar um problema futuro, mesmo levando um tempo considerável com isso, ele esperava voltar para a cidade o mais tardar no dia seguinte, se tudo corresse bem.

O fazendeiro, Sr. Dale, concordou gentilmente em levá-lo de trator em um breve passeio pelas terras, e não foi sem um leve sentimento de remorso que John ouviu o senhor contar a história da região, o apego dele e sua família a ao local e por isso era tão importante para ele manter o lugar funcionando. Mas negócios são negócios e o dinheiro que Dale conseguiria com as duas terras em questão o dariam uma benção incontestável -  com sorte o suficiente para ajudá-lo a passar pela tempestade financeira.

A noite chegou rapidamente, e John ficou contente que a viagem desconfortável de trator não foi tão demorada. Pouco tempo depois Dale parou o veículo, apontando para dois campos ao lado que eram o que  estavam à venda. Pela meia hora seguinte John pisoteou com suas botas por lama e gramados, tirando fotos do local onde seu cliente estava pensando em construir, enquanto lia atentamente os registros da equipe de inspetores, comparando-as com suas próprias anotações.  Dale não queria acompanhá-lo nas pesquisas, então só ficou escorado em seu trator, observando tristemente.

Finalmente John tinha terminado, mas no mesmo instante seus olhos foram atraídos para uma colina a poucos quilômetros de distância, uma que dava vista para toda a área. Parecia estar inabitado, com alguns acres de floresta e gramado sendo suas únicas características distintivas. Apesar da distância, o morro parecia dominar o horizonte e, mesmo sem ter sido verbalizado, John sentia que este era especial ou único de algum modo. Ao voltar para o trator, ele apontou para lá, mas Dale parecia relutante sobre o assunto, respondendo gelidamente as perguntas ou apenas ficando em silêncio. Era o trabalho de John manter uma terra que achava que seus clientes poderiam se interessar, e com o que parecia ser uma bela visão para o campo, achou que seria interessante para um rico empresário apaixonado pelas terras escocesas.

Na curta viagem de volta, John se sentiu compelido a ficar olhando para a colina por cima do ombro e estava convencido que seus instintos profissionais diziam-no que devia investigar a respeito mais de perto. Depois da irritante resistência do fazendeiro Dale, ele se rendeu e quebrou o silencio falando brevemente sobre o assunto, com óbvio desdém por aquela terra incomum. Quando perguntado a respeito de quem pertencia, o fazendeiro zombou dizendo apenas "Ninguém é dono daquele lugar, e ninguém vai lá." Não disse mais muita coisa, mas antes de John entrar na pousada, o homem pousou a mão em seu ombro e o advertiu para deixar a colina em paz, que era perigosa e que esperava não ter que falar sobre aquilo nunca mais.  Enquanto Dale parecia sentir medo de apenas mencionar aquilo, a impressão predominante era que o velho estava dominado por uma tristeza profunda; uma que era melhor ser deixada sozinha.
Por mais fascinado que John tinha ficado com o aviso do fazendeiro, não era a primeira vez que batia de frente com supertições locais - algo que ele, com certeza, nunca tinha dado ouvidos, caso contrário, teria perdido tempo, alguns ótimos lotes de terra e propriedade ao longo dos anos. As histórias dos moradores sempre pareciam girar em volta de lugares mais antigos e remotos da Grã-Bretanha. No passado ele tinha ouvido longos contos sobre casas abandonadas que carregavam manchas de um ato criminoso, ou matas que não podiam ser desmatadas pelo medo do que vivam nelas, mas sem exceção nada desagradável acontecera. Não havia solidez perante os mitos, e enquanto adorava ouvir os relatos de assombrações e seres estranhos que rondavam os pântanos e campos abertos, ele tinha pouco tempo para isso em sua vida corrida e trabalho. Essas histórias eram uma distração divertida, mas além do entretenimento, eram de pouca serventia.

Voltando à pousada, ele estava cansado e com vontade de ir para a cama, na esperança de concluir o negócio no dia seguinte, mas foi ao bar tomar alguma bebida antes de se retirar para seu quarto. O senhorio parecia ser bastante amigável e estava contente por alguém ter ficado em sua pousada pois geralmente ela ficava vazia, mas seu comportamento amistoso mudou completamente com a menção da colina. Igualmente a Dale, o proprietário parecia relutante em dar qualquer informação detalhada sobre o assunto e providenciou uma advertência citando "terra ruim" como motivo suficiente para deixa-la pra lá.

Sussurros e um tumulto sutil começou a surgir dos cantos escuros do pub enquanto moradores pareciam perturbados com as perguntas de John. Ninguém se aproximou, mas ele estava atento do desconforto em volta. Seu comentário " Parece que a colina é assombrada" que deveria ter sido tomada como uma piada, provocou apenas o silêncio. A ausência de som o fez sentir mal recebido. Rapidamente, ele terminou sua bebida e enquanto ia andando para as escadas uma mulher jovem tocou-lhe o ombro e sussurrou em seu ouvido "Por favor, não vá para a colina, ninguém jamais volta".

O senhorio estava ao alcance de voz e rapidamente reprendeu a menina por apenas mencionar aquilo, em seguida virou-se de costas e enquanto limpava um copo de cerveja, disse enquanto gaguejava: "Durma bem, senhor. Espero que você consiga concluir o seu negócio amanhã e voltar o mais rapido possivel para Londres".

Para John soou mais como um aviso do que um simples boa noite.

No dia seguinte ele se levantou cedo e fez seu caminho ao primeiro andar e foi recebido novamente pelo senhorio, mas esse agora permanecia relativamente quieto, o que John achou estranho pois ele tinha passado uma imagem tagarela no dia anterior. Descartando o anfitrião apenas como uma pessoa que não era chegado em manhãs, John tomou seu café e fez seu caminho em direção a fazenda de Dale para terminar a compra dos terrenos.   

Enquanto ele dirigia pelas estradas calmas do campo, apreciando a paisagem que continuava impressionante mesmo em um dia nublado, a fazendo foi se mostrando ao longe, e o mesmo fez a colina logo atrás. Ele pensou que essa parecia mais predominante ou grandiosa do que o dia anterior, com sua estrutura torta se inclinando-se para a vila, mas rapidamente sacudiu esses pensamentos da cabeça, pensando neles como apenas um efeito colateral do comportamento supersticioso dos moradores locais. Mas mesmo assim, havia algo sobre aquele lugar.

***

Com apenas alguns deveres administrativos a serem cumpridos, John estava esperançoso que poderia concluir até o meio-dia e então fazer sua viagem de 7 ou 8 horas de volta à Londres, terminar alguns problemas inacabados antes de voltar para sua rotina habitual. Em uma mesa de seu apartamento estava uma garrafa de Uísque de malte de 30 anos, o qual ele iria tomar uma taça depois de concluir o importante negócio. Esta seria acompanhada por um ou dois cigarros - o único momento que realmente fumava, pois não confiava em si mesmo e não queria tornar isso um hábito - pediria algo pela tele-entrega e o outro dia seria folga do trabalho para fazer o que bem entendesse. Essas eram os momentos que ele mais gostava; a conclusão de um acordo e um descanso depois, e mais uma vez, ser enviado a um canto remoto das Ilhas Britânicas. 

Sentado dentro do chalé do Fazendeiro Dale, John aproveitava o aconchego do lugar e suas decorações antiquadas que o lembravam da casa da avó quando criança. Muitas partes do revestimento eram originais e ele tinha certeza que a casa tinha passado por incontáveis gerações. Dale parecia estar com um humor mais agradável do que no dia anterior, fazendo ao seu convidado uma xícara de chá e um sanduíche enquanto John preparava o resto da papelada.

Enquanto o velho fazendeiro perambulava por lá com uma chaleira e um par de xícaras nas mãos, John olhou através da janela mais próxima, notando que a casa em si dava em direção à colina-sem-nome, a poucos quilômetros de distância. Sem pensar, mencionou casualmente que aqueles na pousada pareciam cautelosos a respeito disso também.

Depois de alcançar o chá a John, Dale sentou no lado oposto da mesa da cozinha, mexendo seu chá, pensativo. Houve silêncio, semelhando ao da noite anterior e apesar do ambiente acolhedor, mais uma vez John se sentiu desconfortável. Então, eventualmente aquele sentimento inquietante deu lugar à irritação. Por que simplesmente ele não podia perguntar por que as pessoas tinham tanto medo daquilo? Eram apenas superstições, e era loucura pensar que seres humanos na idade moderna ainda se abalavam tão facilmente com simples histórias.

Depois de brincar com a idéia de permanecer calado, John finalmente quebrou o silêncio: “Sr. Dale, não quero ser rude, mas desde que cheguei à vila, as pessoas parecem estar agindo de forma estranha sobre aquela colina como se eu tivesse cometido um crime apenas por mencioná-la.”

“Talvez você tenha,” respondeu ele. “Talvez você não devesse ter mesmo mencionado-a, meu filho”. 

“Com todo o respeito, eu só queria saber quem era o dono, pois achei que poderia ser bom para a região, um desenvolvimento imobiliário emocionante”.

“Desenvolvimento imobiliário,” Dale zombou. “A única coisa que deveria ser feito com aquele solo é cobri-lo com sal”. 

“É apenas uma colina”.

“Apenas uma colina...” O velho fazendeiro parou por um momento, olhando para fora da janela em direção ao motivo que gerava desconforto na conversa.

“Sr. Dale”, John disse, desta vez mais suavemente “Eu já estive em lugares de belas paisagens por todo Reino Unido. Sei que algumas regiões têm histórias, recebem nomes ruins, ou parecem um pouco assustadoras, mas em meus anos de experiência, nunca cruzei com nenhuma que não fosse apenas superstições. Vou até prová-lo”.

“Provar o quê, rapaz?” disse Sr. Dale de repente, apreensivo.

"Eu gostaria de uma passeio antes de voltar para Londres. Acho que vou dar uma olhada."

Levantando-se abruptamente, o fazendeiro agora parecia mais ansioso do que com raiva. Seu lábio superior tremia e parecia que o homem havia se escondido do mundo exterior em uma pilha destrutiva de nervos, apenas esperando o momento de explodir.

"Você não pode ir lá!" Gritou.

"Por favor, Sr. Dale. Não tive a intenção de ofendê-lo." Os pensamentos de John agora voltaram-se para os terrenos que tinha em mãos, e sem nada assinado ainda, não queira arriscar-se com sua curiosidade. Como explicaria isso para seu cliente?

O senhor desabou de volta em sua cadeira com os olhos nublados, como se estivesse lutando em uma batalha já perdida contra terríveis memórias.

"Eu perdi meu filho para aquele lugar..." ele disse, arrastadamente.

"Ah, meu Deus, eu sinto muito, Sr. Dale. Por favor, aceite minhas desculpas, vamos esquecer tudo isso."

"Não, não é sua culpa." Do outro lado da mesa, o velho fazendeiro sorriu mesmo com um semblante triste. "Ninguém fala do meu garoto. Não sou autorizado também. Os moradores locais acham que apenas em falar dele ou dos outros, trará mais miséria para a vila.

Após uma vaga pausa, ele quebrou o silêncio dizendo "Ele era um bom rapaz. Nós não somos feitos pra enterrar os próprios filho, ah Deus..."

Enterrando seu rosto nas mãos, ele começou a soluçar incontrolavelmente. John não sabia o que dizer nem fazer. A única coisa que podia oferecer era um "Eu sinto muito. Tem... tem algo que eu possa fazer?"

Limpando as lágrimas, Dale recostou-se na cadeira, melancolicamente. Depois de alguns suspiros, se recompôs e, com a voz tremida de emoção, falou "Ninguém sabe quando começou, ninguém sabe o porquê."

"Começou o que?" John perguntou, sua compaixão agora dominado pela curiosidade.

"Eu Cresci nessa vila e mesmo quando era um menino as pessoas não faziam ideia. Claro, eles contavam velhas histórias sobre uma disputa que durou centenas de anos entre duas famílias poderosas." Dale se inclinou pra frente coçando sua barba grisalha antes de continuar. " Mas ninguém sabia seus nomes, pelo menos não estavam disposto a falar sobre a colina. As escrituras sobre aquela terra provavelmente estão em um cofre seguro, com o dono vivendo uma vida de alto padrão, desconhecendo o preço que todos nós estamos pagando."

"Certamente deve haver registro das propriedades?"

"Tenho certeza que há, rapaz, mas você não vai encontrar ninguém que queira saber disso aqui. Ao longo dos anos, forasteiros ignoravam os avisos dos locais e iam se aventurar por lá. Normalmente algumas crianças desafiando umas ao outras a ir. Mas eles nunca voltam." Dale se remexeu inconfortavelmente em sua cadeira enquanto as lagrimas voltavam a encher seus olhos. "Meu garoto... Ele não me ouviu. E assim como os outros, ele foi e nunca mais voltou."

"Certamente você foi atrás dele?" John perguntou em descrença.

"Sim, eu fui. Tentei ir até o topo, mas com o coração partido pelo sofrimento que minha mulher e meus outros filhos estavam, eles me obrigaram a voltar para o pé da colina. Eles sabiam que me levaria também."

"Então, seu filho poderia estar lá em cima, machucado, morrendo, e vocês não foram atrás dele por causa de uma supertição idiota?" A ideia de que mitos e mentiras poderia tem resultado na morte de um menino enraiveceu John, mesmo que tenha se envergonhado assim que suas palavras saíram de sua boca.  

De repente, Dale voou sobre a mesa e agarrou o convidado indesejado pelo colarinho, empurrando-o sobre um fogão velho. "Com quem você pensa que está falando?!" Dale gritou do fundo do âmago, com a voz tremendo. Para um senhor, ele ainda estava forte feito um touro.

Por um breve momento ele achou que o fazendeiro iria o espancar, mas então, tão rápido quanto antes, Dale o soltou e o deu as costas. "Quando você tem outras três crianças para alimentar, e uma esposa que ficaria de coração partido, você pensa em subir ao topo duas vezes. Além disso, alguns garotos da vila ajudaram a minha esposa a me segurar. Não porque se preocupavam comigo - bem, talvez, alguns sim - mas principalmente porque eles vivem em constante medo daquele lugar, do que tem lá em cima. De que talvez desça e venha nos fazer uma 'visita'."


Se endireitando na cadeira, o velho fazendeiro rabiscou sua assinatura nos papeis restantes e, em seguida, pediu a John para ir embora, o que ele fez depois de se desculpar mais algumas vezes. Na porta, os dois homens se despediriam educadamente, e como um simples acréscimo Dale falou "Há um velho ditado por aqui: 'Melhor deixar pra lá'. Você seria sábio o seguisse."

***

Apesar de ter ficado abalado pela reação volátil do velho fazendeiro às suas perguntas, ainda assim, John queria ir até a colina. Sabendo que os moradores tentariam dissuadi-lo ou mesmo contê-lo fisicamente, ele estava decidido de ir diretamente até lá assim que saísse da fazenda. Enquanto fazia seu caminho, pensou que algo bom poderia vir disso. Ele poderia quebrar o medo daquele lugar, mas era mais que aquilo, então sua teimosia o motivou. Queria provar que estava certo,  e se descobrisse um pedaço de terreno com potencial, melhor ainda.

Chegar lá era mais problemático do que ele havia previsto. Enquanto havia uma estradinha de terra que ia até o pé da colina, aparentemente havia sido bloqueada pelos moradores. Um arranjo de grandes placas de concreto, tijolos, velhos postes de madeira e outros materiais descartados ficavam barrando uma das extremidades fazendo com que a entrada de carro fosse impossível e a pé muito difícil.

Vendo o ponto físico e real que os moradores chegavam para evitar que alguém tivesse acesso à montanha, John sentiu um impulso crescer dentro de si, que devia subir até o topo e voltar para a vila para mostrar a eles quão ridículos estavam sendo. Depois de deixar seu carro em uma das entradas que haviam sido bloqueadas, ele escalou por cima da pilha de escombros, com algum esforço e cuidado para não se cortar com algum objeto, ele fez seu caminho ao longo da estrada. Por um momento considerou o que poderia encontrar nas encostas e a real possibilidade de achar os desagradáveis restos mortais de um visitante anterior; pensamentos que o fizeram questionar seriamente suas atuais ações.

A estrada era larga o suficiente apenas para um único carro e, obviamente, tinha sido deixada ao leu fazia algum tempo, cheia de buracos, lama e cascalho cobrindo a pista em algumas partes. Enquanto a colina ia surgindo ao longe, ele ficou impressionado pois esta era muito maior do que tinha estimado. De longe, tinha pensado que uma caminhada rápida o levaria até o topo, mas agora olhando ela se arquear para o longe, percebeu que iria demorar cerca de duas horas para chegar até o pico e isso se conseguisse encontrar uma trilha decente para se traçar. O relógio de pulso marcava que ainda era começo da tarde e ele acreditou que teria luz do dia para ir até topo e descer até seu carro em segurança.

Foi aí que ele começou a notar algumas peculiaridades únicas na paisagem. Ela ficava sozinha, com nenhuma outra colina ou montanha ao redor, como se tivesse sido deixada lá em isolamento, em quarentena da sua própria terra. Sua subida parecia mais torta do que parecia à distancia; assimétrica, ligeiramente inclinada para um lado de forma bizarra, sua superfície coberta de esporádicos pacotes de árvore, enquanto o capim alto e selvagem, um emaranhado de fios amarelos e mortos - ou estrangulados - pelos rebentos verdes que com sucesso cobriam a maior parte da área. O mais surpreendente era que havia uma trilha feita pela mão do homem que ia em direção ao topo, o qual ele ficou encantado em descobrir. Tinha sido privada do ataque da grama esguia que consumia todo o resto. Por um momento John pensou que era tudo uma farsa e era vítima de uma pegadinha, pois o caminho parecia bem desgasto como se fosse usado com frequência. Mas então um pensamento muito mais obscuro flertou com sua sensibilidade racional: Que a montanha estava se inclinando, atraindo os visitantes, acolhendo-os à um destino desconhecido. Ele rapidamente tirou isso da cabeça e continuou.

Um velho portão bloqueava o caminho. Era de madeira, mas obviamente tinha sido submetido fazia algum tempo aos estragos que o inverno escocês proporcionava, sendo que sua superfície tinha sido parcialmente devorada por musgo verde e mofo. Quando abriu, John cruzou a linha do limite e quando o portão se fechou atrás dele, um arrepio percorreu-lhe a espinha acompanhada por uma leve sensação de náusea.  Se fosse um homem supersticioso, ele teria dito que não era um bom lugar, que o ar ao seu redor parecia sujo... Mas ele não era facilmente afetado por tais pensamentos, então era mais fácil se enganar pensando ser algo que tinha comido ao invés de dar o braço a torcer e dizer que o morro que estava o deixando nervoso.  

Passeando pela trilha, ele tentou fazer no menor tempo possível. A ideia de ter de voltar durante a noite não era uma de ser apreciada, com o caminho inseguro e invisível e como o céu da tarde já estava um tanto mais escuro do que tinha estado ao meio-di. Marchou a subida com intenção, animado para ver a vista lá de cima. 

A inclinação aumentou ligeiramente, junto com natureza esporádica que o cercava. O capim alto tinha tomado tudo a não ser a trilha, e grupos ocasionais de árvores o ladeavam, e agora ele começava a entender porque os habitantes locais começaram a temer o lugar - os juncos de grama morta e hera rodeavam cada tronco sugerindo um propósito malévolo. Algumas árvores tinham caído, ficando em posições estranhas em ângulos acentuados, como se suas copas tivessem sido puxadas para a terra, com sua casca quebradas pelos dedos de grama que se agarrava a elas como um verdadeiro leviatã - mas enquanto a ideia era fantasiosa, de certa forma a encosta parecia errada, de um jeito não natural, e enquanto subia, um ar gélido começou a rastejar pelos seus braços. Ele já havia efetuado caminhas e subidas e em seu trabalho tinha que enfrentar regiões selvagens enquanto avaliava terrenos, mas isso parecia diferente. Era como se a terra afetasse o clima, e não o tempo, tornando-se cada vez mais difícil de ignorar a atmosfera opressiva da montanha.

Parando por um momento, ele esfregou os braços às pressas para aquecê-los, fazendo uma pausa para avaliar seu progresso. Ele ficou surpreso de quanto já havia subido. Faziam não mais que vinte minutos, mas olhando na direção de que tinha vindo, ele deveria estar na metade da subida da montanha. Mas como? Cada vez que ele tentava avaliar o tamanho da colina, parecia sempre confundir a conclusão anterior. Era como se o lugar fosse, de certa forma, deformado. John riu sozinho por não conseguir ter nenhuma noção da dimensão dos arredores. Nenhum pássaro, nenhum farfalhar de arbustos por causa de lebres, raposas ou até mesmo insetos Na verdade, toda a encosta parecia morta. Não, não morta, ele pensou, e sim nas garras da própria morte. No entanto, era inverno, então ele devia esperar a esterilidade do campo, mas o silêncio continuava a perturbá-lo.

Então outro fenômeno estranho chamou sua atenção. Uma contradição. Algo que contradizia sua própria memória, suas capacidade. O caminho atrás dele agora era diferente. Enquanto subia, John tinha ficado surpreendido de como o caminho não era tomado de mato alto, como todo o resto era. Isso o fez suspeitar que talvez fosse usado regularmente, mas agora olhando para baixo, parecia estar engolido pela natureza, talvez não completamente mas, obviamente, muito mais do que antes. O capim tinha tomado conta da trilha, enquanto arbustos e árvores se inclinavam perante, parecendo muito mais detonado do que ele inicialmente achou - mas o caminha a frente estava limpo.

Olhando para o resto do mundo lá em baixo, tudo parecia tão distante e de certa forma sintético. As cores não eram tão vividas, as campinas que povoavam os vales tinham perdido seus tons vibrantes, e o próprio céu que se filtrava em direção do chão de um jeito que John só podia descrever como "luz falsa".

Ele lutou à negar os sentimentos desagradáveis que estava experimentando, e enquanto continuava por um tempo, subindo, a náusea que tinha aparecido quando atravessou o portão, voltara. A sensação de frio que tinha envolto suas extremidades havia progredido como uma doença, penetrando suas entranhas e congelando-o até os ossos. John tinha dado o seu melhor para chegar até o topo, mas não era idiota. Ele sabia que não passava um mês sem uma notícia sobre um trilhador inexperiente ou alpinista se perdendo em uma montanha remota, e enquanto a colina parecia ser muito mais humilde do que essas, ele estava disposto a aceitar a derrota, até feliz por isso. Os arredores pareciam ameaçadores, e sua atual condição física foi o suficiente para dar retirada.

Embora não tivera alcançado o cume, John decidiu que, se ele ainda conseguisse voltar para a vila depois de estar na encosta,  seria suficiente para argumentar contra as superstições. Talvez ele voltasse no verão para avaliar a terra, considerando sua decisão mais como um adiantamento do que admissão de fracasso; entreter os moradores locais com a noção de que estiveram certo todo esse tempo não era algo que ele queria.

Teria de haver evidências da sua aventura, é claro. Tirando do seu bolso um celular com câmera, o qual ele usava para documentar seu trabalho, John começou a tremer com a volta da sensação gelada subindo por seus braços, provocando um desejo intenso de ser aquecido pela lareira da pousada. Com alguns cliques rápidos, fotografou ao redor da colina e depois, como uma piada, tirou uma foto de si mesmo forçando um sorriso e com árvores e capim alto de fundo.  

O que ele viu quando estava revendo as fotos tiradas fez seu corpo tremer em arrepio. As primeiras fotos da área saíram como esperado, mas a última tirada  mostrava algo entre os arbustos atrás dele - que parecia algum tipo de construção. A mente de John o mandava sair correndo dali, mas ele ficou fascinado com a ideia de uma construção escondida, afastada do mundo exterior por uma barreira natural de folhas, ramos e mitos.

***

Respirando fundo, ele se arrastou pela grama torcida, empurrando as folhas que ficavam penduradas das grandes árvores para o lado. Lá, sentada naquela colina que os moradores tinham medo de ir, estava o que parecia ser uma velha capela ou igreja. Uma torre se esticava em direção ao céu, com grandes janelas de vitral - as quais muitas estavam quebradas - pontilhando a construção cinza de pedra, lembrando de dias mais importantes e felizes. 

O coração de John acelerou apenas com a visão daquilo. Talvez por isso que o morro tinha sido manchado de superstições e mitos. Uma igreja velha e abandonada era motivo suficiente para criar histórias assombradas. Ainda assim, a igreja não bania os sentimentos de cautela de John. Enquanto passava por uma camada de folhas, grama e hera, não podia negar como se sentia nervoso. Suor começou a pingar de seu rosto, enquanto seu coração bombeava sangue em um ritmo instável e inquieto.

Deixar a colina ainda era a sua principal intenção, mas enquanto se aproximava do arco de pedra que abrigava a porta da igreja, ele supôs que os moradores ficariam mais abertos as suas explicações de o porque as pessoas temiam o lugar, se eles soubessem que ele existia lá dentro. Sem conhecer o interior da igreja, os conterrâneos poderiam mais uma vez criar histórias e mentiras sobre o que permanecia escondido. 

A porta era de um carvalho marrom escuro com riscos metálicos negros que adornavam a superfície, mas infelizmente parecia trancada. John deu alguns firmes e sólidos empurrões e então, surpreendentemente, com rangido de incontáveis anos se abriu um pouco, criando espaço apenas para deslizar para dentro. Espiando pela fresta, podia ver que o chão estava coberto de alvenaria que havia caído do teto. Uma grande quantidade de pedras estavam empilhadas atrás da porta, e o seu peso em conjunto mantinha a porta fechada. Apesar de terem cedido um pouco, elas proporcionavam resistência o suficiente para não abrir completamente.

Um ar mofado e frio saiu de dentro, com cheiro rançoso de pedras muito tempo abandonadas. Por um momento, John considerou o que deveria fazer. Uma construção deixada para apodrecer por décadas, se não séculos, poderia ser muito perigosa, mas o desejo de provar que tinha corajosamente visto tudo que podia ser visto  o queimava por dentro. Queria provar que não haviam fantasmas ou demônios ali, apenas fragmentos de uma história esquecida.

Pegando seu telefone, ele enfiou a mão através da fresta e tirou algumas fotos com flash. A luz iluminou o todo o interior, mostrando estar cheio de escombros que obviamente tinha caído do telhado, mas no fundo do salão parecia estar um tipo de altar. Do seu ponto de vista, parecia ser feito de pedra, descansando em um degrau elevado, vários metros acima. Acima disso, John ficou emocionado pela presença de uma inscrição esculpida na parede, mas infelizmente não conseguia decifrar o que estava escrito. Suspirou, pois sabia que se quisesse ler, teria de entrar. O medo de ficar machucado ou preso de algo que caísse do teto era primordial, mas sua curiosidade estava em pleno voo, seu entusiasmo beirando tanto o enjoo em seu estomago quanto o frio entorpecente nas suas extremidades.  

Depois de debater os riscos consigo mesmo, John decidiu que iria o mais silenciosamente e cuidadosamente possível para reduzir os riscos de um desmoronamento. Ele só precisava olhar. Respirando fundo, deu um jeito de se apertar na entrada, e com um pouco de esforço, foi para a escuridão lá de dentro. Usando uma pequena luz de trás do seu celular, ele estava melhor situado para inspecionar os arredores mais facilmente. O ar estava significativamente mais frio, raspando o fundo de sua garganta quando inalava-o, e embora já estivesse esperando que o interior fosse mais gelado do que o lado de fora por ser feito inteiramente de pedra, a igreja parecia mais catacumba do que qualquer lugar sagrado.

Pisando mais cuidadosamente que podia, tentando não mexer ou desalojar as grandes pilhas de escombros no chão, John fixou seus olhos treinados no teto alto, nervoso de que qualquer barulho poderia fazer com que a alvenaria caísse sobre sua cabeça. A extensão dos danos ficou mais clara, com a pouca luz que penetrava o lugar por entre umas rachaduras e buracos  abertos como feridas telhado; entretanto, o salão continuava obscuro. John achou isso curioso pois o interior, de certa forma, deveria ser mais visível. Era como se a luz fosse absorvida pelos cantos escuros do salão, mas imediatamente descartou esse pensamento pois precisava manter seus nervos sob controle - ambientes desconhecidos e isolados podem distrair até a mais racional das mentes.

Depois de escalar mais de duas pilhas de escombros, sendo cuidadoso e evitando várias partes afiadas de madeira quebrada, ele finalmente se encontrou na parte traseira da igreja. Lá ficava o altar - uma mesa esculpida em pedra alisada feitas por mãos muito habilidosas. Era fácil de imaginar o quão assustador um padre da idade das trevas parecia, posto lá em cima, falando contos de um ponto de vista ignorante, espumando pela boca sobre as condenações e forças demoníacas presas na alma dos inocentes.

Uma sensação de euforia e emoção encheu a mente de John - estar perto de algo tão cheio de história, mas ele considerava a possibilidade de que o altar tivesse sido extraído daquele mesmo morro, arrancado de um depósito de rochas no fundo da terra, nascido de processos mais antigos que a própria humanidade. Mas a emoção de uma descoberta tão antiga e rara extinguiu rapidamente esses devaneios. Ele estava tão enamorado pelo objeto, que quase deixou passar uma pequena porta aberta à direita do altar que parecia  liderar à um lance de escada para uma câmara subterrânea, possivelmente um cofre ou um tumba. Se arrepiando ao pensar o que poderia jazer lá, sabendo que, mesmo com seu nível de ceticismo, não haveriam aventuras lá por baixo. Superstição ou não, vagar por túneis em cima de uma construção decadente não era uma ideia inteligente.

Apontando a luz branca e estreita de seu celular para o fundo da sala, olhou desconfiado para uma escada empoeirada que levava até a plataforma do altar. Um arranjo natural que um padre ou pastor usufruiu para seus serviços a centenas de anos atrás, mas ele ainda relutava a pensar que essa era mesmo a função exercida ali. De novo, um mal-estar rastejou pelo seu ser enquanto imaginava um homem santo, de pé, acima de todos, gritando parábolas enigmáticas e catastrófica para um antigo público assustado e confuso.  

Fazendo seu caminho até a plataforma, sua atenção foi desviada do chão instável por estar ansioso para estudar mais de perto as inscrições na parede do fundo. Então, seu pé prendeu em uma pedra quebrada no último degrau. Tropeçando abruptamente para frente, o ombro de John bateu dolorosamente contra a beirada do altar de pedra, antes de conseguir amortecer a queda com seu braço no chão duro e frio da plataforma. O barulho de sua queda ecoou por toda a construção, com o som ricocheteando pelas paredes até o teto. Por um segundo, achou que tinha ouvido um barulho estranho vindo de outro lugar, perto dele. Algumas pequenas pedras caíram de cima, quebrando-se no chão,  como se estivessem avisando que coisas mais pesadas e mortais estavam por vir. O alívio correu pelo corpo de John. Feliz pelas pedras não terem caído em cima dele, e sim um pouco a frente, ele estava ficando um pouco inseguro de sua segurança.

Se levantou vagarosamente, segurando o ombro que agora estava machucado e dolorido, manteve seus olhos treinados no teto. Tirando o som do vento que  assobiava entre rachaduras e buracos nas paredes, o silêncio era onipotente. Nervoso de que quaisquer outros movimentos bruscos fariam o teto desabar em sua cabeça, John esperou vários minutos até achar que temporariamente estava a salvo dos detritos do teto. Então, mais devagar do que antes, se virou e avaliou o altar de perto. Iconografias religiosas estavam esculpidas dos lados, juntamente com símbolos estranhos e irregulares que não reconhecia. Era fácil de imaginar algum tipo de comunhão sendo exercida ali, com cada membro da congregação se aproximando sombriamente - descabelados e mal nutridos - recebendo a benção de um padre severo, que falava mais de ira do que sobre o amor.

John poderia admitir a qualquer um que não era o cara mais criativo ou imaginativo da terra, mas ali, naquele lugar esquecido do mundo, ele estava surpreso de quão vivido sua imaginação se tornara. Ele quase podia visualizar aqueles que um dia tinham rezado ali - rostos pálidos, protegidos contra o inverno severo, corpos murchos pelos alimentos inúteis e sem nutrientes da colheita, e ainda por cima com medo de algo extraordinário e indefinido que sufocavam todos e quaisquer pensamentos que tinham. Sim, aquela igreja era um lugar moribundo e pequeno, mas tornava fácil preencher a mente da população com fantasmas e espíritos. Mas claro, ele não tinha nenhuma maneira de saber se suas suposições estavam certas ou erradas.

Ele sacudiu a cabeça para expulsar aqueles pensamentos e riu baixinho para si mesmo por ter deixado se afetar tão facilmente pelo lugar, até que seus olhos fixaram-se na inscrição esculpida acima, na parede do fundo. Estendendo a mão, correu os dedos na profundidade e as bordas irregulares deixadas pela talhadeira do autor. Estava claro que a mensagem da parede fugia do cenário do lugar, escrita as pressas, com as letras todas desalinhadas, o que sugeria que tinham sido produto de alguém apressado - com intenção de ficar o menor tempo possível dentro da igreja. Dando um passo pra trás, a luz do celular iluminou as palavras que diziam:

"Aqueles que habitavam em Dungorth tomaram esta colina em 1472. Em 1481 foi devolvida, na esperança de que aqueles o qual perturbamos, perdoem nossas ofensas."

A Pata do Macaco

Lá fora, a noite estava fria e úmida, mas na pequena sala de visitas de Labumum Villa os postigos estavam abaixados e o fogo queimava na lareira. Pai e filho jogavam xadrez: o primeiro tinha idéias sobre o jogo que envolviam mudanças radicais, colocando o rei em perigo tão desnecessário que até provocava comentários da velha senhora de cabelos brancos, que tricotava serenamente perto do fogo. 

– Ouça o vento – disse o Sr. White, que, tendo visto tarde demais um erro fatal, queria evitar que o filho o visse.

– Estou escutando – disse o último, estudando o tabuleiro ao esticar a mão.

– Xeque.

– Eu duvido que ele venha hoje à noite – disse o pai, com a mão parada em cima do tabuleiro.

– Mate – replicou o filho.


– Essa é a desvantagem de se viver tão afastado – vociferou o Sr. White, com um a violência súbita e inesperada. – De todos os lugares desertos e lamacentos para se viver, este é o pior. O caminho é um atoleiro, e a estrada uma torrente. Não sei o que as pessoas têm na cabeça. Acho que, como só sobraram duas casas na estrada, elas acham que não faz mal.

– Não se preocupe, querido – disse a esposa em tom apaziguador. – Talvez você ganhe a próxima partida.

O Sr. White levantou os olhos bruscamente a tempo de perceber uma troca de olhares entre mãe e filho. As palavras morreram em seus lábios, e ele escondeu um sorriso de culpa atrás da barba fina e grisalha.

– Aí vem ele – disse Herbert White, quando o portão bateu ruidosamente e passos pesados se aproximaram da porta.

O velho levantou–se com uma pressa hospitaleira e, ao abrir a porta, foi ouvido cumprimentando o recém chegado. Este também o cumprimentou, e a Sra. White tossiu ligeiramente quando o marido entrou na sala, seguido por um homem alto e corpulento, com olhos pequenos e nariz vermelho.
– Sargento Morris – disse ele, apresentando–o.

O sargento apertou as mãos e, sentando–se no lugar que lhe ofereceram perto do fogo, observou satisfeito o anfitrião pegar uísque e copos, e colocar uma pequena chaleira de cobre no fogo.

Depois do terceiro copo, seus olhos ficaram mais brilhantes, e ele começou a falar, o pequeno círculo familiar olhando com interessante este visitante de lugares distantes, quando ele empertigou os ombros largos na cadeira e falou de cenários selvagens e feitos intrépidos: de guerras, pragas e povos estranhos.

– Vinte e um anos nessa vida – disse o Sr. White, olhando para a esposa e o filho. – Quando ele foi embora era um rapazinho no armazém. Agora olhem só para ele.

– Ele não parece ter sofrido muitos reveses – disse a Sra. White amavelmente.

– Eu gostaria de ir à Índia – disse o velho – só para conhecer, compreende?

– Você está bem melhor aqui – disse o sargento, sacudindo a cabeça. Pôs o copo vazio na mesa e, suspirando baixinho, sacudiu a cabeça novamente.

– Eu gostaria de ver aqueles velhos templos, os faquires e os nativos – disse o velho. – O que foi que você começou a me contar outro dia sobre uma pata de macaco ou algo assim Morris?

– Nada – disse o soldado rapidamente. – Não é nada de importante.

– Pata de macaco? – perguntou a Sra. White, curiosa.

– Bem, é só um pouco do que se poderia chamar de magia, talvez – disse o sargento com falso ar distraído.

Os três ouvintes debruçaram–se nas cadeiras interessados. O visitante levou o copo vazio à boca distraidamente e depois recolocou–o onde estava. O dono da casa tornou a enchê–lo.

– Aparentemente – disse o sargento, mexendo no bolso – é só uma patinha comum dissecada.

Tirou uma coisa do bolso e mostrou–a. A Sra. White recuou com uma careta, mas o filho , pegando–a, examinou–a com curiosidade.

– E o que há de especial nela? – perguntou o Sr. White ao pegá–la da mão do filho e, depois de examiná–la, colocá–la sobre a mesa.

– Foi encantada por um velho faquir – disse o sargento –, um homem muito santo. Ele queria provar que o destino regia a vida das pessoas, e que aqueles que interferissem nele seriam castigados. Fez um encantamento pelo qual três homens distintos poderiam fazer, cada um, três pedidos a ela.

A maneira dele ao dizer isso foi tão solene que os ouvintes perceberam que suas risadas estavam um pouco fora e propósito.

– Bem, por que não faz os seus três pedidos, senhor? – disse Herbert White astutamente.

O soldado olhou para ele como olham as pessoas de meia–idade para um jovem presunçoso.

– Eu fiz – disse ele calmamente, e seu rosto marcado empalideceu.

– E teve mesmo os três desejos satisfeitos? – perguntou a Sra. White.

– Tive – disse o sargento, e o copo bateu nos dentes fortes.

– E alguém mais fez os pedidos? – insistiu a senhora.

– O primeiro homem realizou os três desejos – foi a resposta. – Eu não sei quais foram os dois primeiros, mas o terceiro foi para morrer. Por isso é que consegui a pata.

Seu tom de voz era tão grave que o grupo ficou em silêncio.

– Se você conseguiu realizar os três desejos, ela não serve mais para você Morris – disse o velho finalmente. – Para que você guarda essa pata?

O soldado meneou a cabeça.

– Por capricho, suponho – disse lentamente. – Cheguei a pensar em vendê–la, mas acho que não o farei. Ela já causou muitas desgraças. Além disso, as pessoas não vão comprar. acham que é um conto de fadas, algumas delas; e as que acreditam querem tentar primeiro para pagar depois.

– Se você pudesse fazer mais três pedidos – disse o velho, olhando para ele atentamente –, você os faria?

– Eu não sei – disse o outro. – Eu não sei.

Pegou a pata e, balançando–a entre os dedos, de repente jogou–a no fogo.

White, com um ligeiro grito, abaixou–se e tirou–a de lá.

– É melhor deixar que ela se queime – disse o soldado solenemente.

– Se você não quer mais, Morris – disse o outro –, me dá.

– Não – disse o amigo obstinadamente. – Eu a joguei no fogo. Se você ficar com ela, não me culpe pelo que acontecer. Jogue isso no fogo outra vez, como um homem sensato.

O outro sacudiu a cabeça e examinou sua nova aquisição atentamente.

– Como você faz para pedir? – perguntou.

– Segure a pata na mão direita e faça o pedido em voz alta – disse o sargento –, mas eu o advirto sobre as conseqüências.

– Parece um conto das Mil e uma noites – disse a Sra. White, ao se levantar e começar a pôr o jantar na mesa. – Você não acha que deveria pedir quatro pares de mão para mim?

– Se quer fazer um pedido – disse ele asperamente –, peça algo sensato. O Sr. White colocou a pata no bolso novamente e, arrumando as cadeiras acenou para que o amigo fosse para a mesa. Durante o jantar o talismã foi parcialmente esquecido, e depois os três ficaram escutando, fascinados, um segundo capítulo das aventuras do soldado na Índia.

– Se a história sobre a pata de macaco não for mais verdadeira do que as que nos contou – disse Herbert, quando a porta se fechou atrás do convidado, que partiu a tempo de pegar o último trem–, nós não devemos dar muito crédito a ela.

– Você deu alguma coisa a ele por ela, papai? – perguntou a Sra. White, olhando para o marido atentamente.

– Pouca coisa – disse ele, corando ligeiramente. – Ele não queria aceitar, mas eu o fiz aceitar. E ele tornou a insistir que eu jogasse fora.

– É claro – disse Herbert, fingindo estar horrorizado. – Ora, nós vamos ser ricos, famosos e felizes. Peça para ser um imperador, papai, para começar, então você não vai ser mais dominado pela mulher.

Ele correu em volta da mesa, perseguido pela Sra. White aramada com uma capa de poltrona.

O Sr. White tirou a pata do bolso e olhou para ela dubiamente.

– Eu não sei o que pedir, é um fato – disse lentamente. – Eu acho que tenho tudo o que quero.

– Se você acabasse de pagar a casa ficaria bem feliz, não ficaria? – disse Herbert, com a mão no ombro dele. – Bem, peça 200 libras, então, isso dá.

O pai, sorrindo envergonhado pela própria ingenuidade, segurou o talismã, quando o filho, com uma cara solene, um tanto franzida por uma piscadela de olhos para a mãe, sentou–se no piano e tocou alguns acordes para fazer fundo.

– Eu desejo 200 libras – disse o velho distintamente.

Um rangido do piano seguiu–se às palavras, interrompido por um grito estridente do velho. A mulher e o filho correram até ele.

– Ela se mexeu – gritou ele, com um olhar de nojo para o objeto caído no chão. – Quando eu fiz o pedido, ela se contorceu na minha mão como uma cobra.

– Bem, eu não vejo o dinheiro – disse o filho ao pegá–la e colocá–la em cima da mesa – e aposto que nunca vou ver.

– Deve ter sido imaginação sua, papai – disse a esposa, olhando para ele ansiosamente.

Ele sacudiu a cabeça.

– Não faz mal, não aconteceu nada, mas a coisa me deu um susto assim mesmo.

Eles se sentaram perto do fogo novamente enquanto os dois homens acabavam de fumar cachimbos. Lá fora, o vento zunia mais do que nunca, e o velho teve um sobressalto com o barulho de uma porta batendo no andar de cima. Um silêncio estranho e opressivo abateu–se sobre todos os três, e perdurou até o velho casal se levantar e ir dormir.

– Eu espero que vocês encontrem o dinheiro dentro de um grande saco no meio da cama – disse Herbert, ao lhes desejar boa noite – e algo terrível agachado em cima do armário observando vocês guardarem seu dinheiro maldito.

Ficou sentado sozinho na escuridão, olhando para o fogo baixo e vendo caras nele. A última cara foi tão feia e tão simiesca que ele olhou para ela assombrado. A cara ficou tão vivida que, com uma risada inquieta, ele procurou um copo na mesa que tivesse um pouco de água para jogar no fogo. Sua mão pegou na pata de macaco, e com um ligeiro estremecimento ele limpou a mão no casaco e foi dormir.


II
Na claridade do sol de inverno, na manhã seguinte, quando este banhou a mesa do café, ele riu de seus temores. Havia um ar de naturalidade na sala que não existia na noite anterior, e a pequena pata suja estava jogada na mesa de canto com um descuido que não atribuía grande crença a suas virtudes.

– Eu creio que todos os velhos soldados são iguais – disse a Sra. White. – Essa idéia de dar ouvidos a tal tolice! Como é que se pode realizar desejos hoje em dia? E se fosse possível, como é que iam aparecer 200 libras, papai?

– caindo do céu, talvez – disse Herbert, com ar brincalhão.

– Morris disse que as coisas aconteciam com tanta naturalidade – disse o pai – que a gente podia até achar que era coincidência.

– Bem, não gaste o dinheiro antes de eu voltar – disse Herbert, ao se levantar da mesa. – Estou com medo de que você se torne um homem mesquinho e avarento, e vamos ter de renegá–lo.

A mãe riu e, acompanhando–o até a porta, viu–o descer a rua. Voltando à mesa do café, divertiu–se à custa da credulidade do marido. O que não a impediu de correr até a porta com a batida do carteiro, nem de se referir a sargentos da reserva com vício de beber, quando descobriu que o correio trouxera uma conta do alfaiate.

– Herbert vai dizer uma das suas gracinhas quando chegar em casa – disse ela, quando se sentaram para jantar.

– Com certeza – disse o Sr. White, servindo–se de cerveja –, mas, apesar de tudo, a coisa se mexeu na minha mão; eu posso jurar.

– Foi impressão – disse a senhora apaziguadoramente.

– Estou dizendo que se mexeu – replicou o outro. – Não há dúvida; eu tinha acabado... O que houve?

A mulher não respondeu. Estava observando os movimentos misteriosos de um homem do lado de fora, que, espiando com indecisão para a casa, parecia estar tentando tomar a decisão de entrar. Lembrando–se das 200 libras, ela reparou que o estranho estava bem–vestido e usava um chapéu de seda novo. 

Por três vezes ele parou no portão, e depois caminhou novamente. Da quarta vez ficou com a mão parada sobre ele, e depois com uma súbita resolução abriu–o e entrou. A Sra. White no mesmo momento desamarrou o avental rapidamente, colocando–o debaixo da almofada da cadeira. Convidou o estranho, que parecia deslocado, a entrar. Ele olhou para ela furtivamente, e ouviu preocupado, a senhora desculpar–se pela aparência da sala, e pelo casaco do marido, uma roupa que ele geralmente reservava para o jardim. Então ela esperou, com paciência, que ele falasse do que se tratava, mas, a princípio, ele ficou estranhamente calado.

– Eu... pediram–me para vir aqui – disse ele finalmente, e abaixando–se tirou um pedaço de algodão das calças. – Eu venho representando "Maw&Meggins".

A senhora sobressaltou–se.

– Aconteceu alguma coisa? – perguntou ela, ofegante – Acontecem alguma coisa a Herbert? O que é? O que é?

O marido interveio.

– Calma, calma, mamãe – disse ele rapidamente. – Sente–se e não tire conclusões precipitadas. O senhor certamente não trouxe más notícias, não é, senhor – e olhou para o outro ansiosamente.

– Eu lamento... – começou o visitante.

– Ele está ferido? – perguntou a mãe desesperada.

O visitante assentiu com a cabeça.

– Muito ferido – disse. – Mas não está sofrendo.

– Ah, graças a Deus! – disse a senhora, apertando as mãos. – Graças a Deus! Graças...

Parou de falar de repente quando o significado sinistro da afirmativa se abateu sobre ela, e ela viu a terrível confirmação de seus temores no rosto desviado do outro. Prendeu a respiração e, virando–se para o marido, menos perspicaz, pôs a mão trêmula sobre a dele. Seguiu–se um demorado silêncio.

– Ele foi apanhado pela máquina – repetiu o Sr. White, estonteado. – Ah! Sim.

Ficou sentado olhando para a janela e, tomando a mão da esposa entra as suas, apertou–a como tinha vontade de fazer nos velhos tempos de namoro há quase 40 anos.

– Ele era o único que nos restava – disse ele, voltando–se amavelmente para o visitante. – É difícil.

O outro tossiu e, levantando–se, caminhou lentamente até a janela.

– A firma me pediu para transmitir os nossos sinceros pêsames a vocês por sua grande perda – disse ele, sem olhar para trás. – Eu peço que compreendam que sou apenas um empregado da firma e estou apenas obedecendo ordens.

Não houve resposta; o rosto da senhora estava branco, os olhos parados e a respiração inaudível; no rosto do marido havia um olhar que o amigo sargento talvez tivesse na primeira batalha.

– Devo dizer que "Maw&Meggins" estão isentos de toda responsabilidade – continuou o outro. – Eles não têm nenhuma dívida com a família, mas, em consideração aos serviços de seu filho, desejam presenteá–los com uma certa soma como compensação.

O Sr. White largou a mão da esposa e, pondo–se de pé, olhou para o visitante horrorizado. Seus lábios secos pronunciaram as palavras:

– Quanto?

– Duzentas libras – foi a resposta.

Indiferente ao grito da esposa, o velho sorriu fracamente, estendeu as mãos como um homem cego e caiu, desfalecido, no chão.


III
No enorme cemitério novo, a alguns quilômetros de distância, os velhos enterraram seu morto e voltaram para casa mergulhada em sombras e silêncio. Tudo terminara tão rápido que a princípio nem se davam conta do que acontecera, e ficaram num estado de expectativa como se fosse acontecer mais alguma coisa – algo mais que aliviasse esse fardo, pesado demais para corações velhos.

Mas os dias se passaram, e a expectativa deu lugar à resignação – a resignação desesperançada dos velhos, às vezes chamada erradamente de apatia. Algumas vezes nem trocavam uma palavra, pois agora não tinham nada do que falar e os dias eram compridos e desanimados.

Foi por volta de uma semana depois que o velho, acordando subitamente de noite, estendeu o braço e viu–se sozinho. O quarto estava no escuro e o ruído de soluços baixinhos vinha da janela. Ele se levantou na cama e ficou ouvindo.

– Volte para a cama – disse ele ternamente. – Você vai ficar gelada.

– Está mais frio para ele – disse a senhora, e chorou novamente.

O som de seus soluços apagou–se nos ouvidos dele. A cama estava quente, e seus olhos pesados de sono. Ele cochilava a todo instante e acabou pegando no sono, quando um súbito grito histérico da esposa o despertou com um sobressalto.

– A pata! – gritou histericamente. – A pata de macaco!

Ele se levantou, alarmado.

– Onde? Onde está? O que houve?

Ela correu agitada até ele.

– Eu quero a pata – disse ela calmamente. – Você não a destruiu?

– Está na sala, em cima da prateleira – replicou ele atônito. – Por quê?

Ela chorou e riu ao mesmo tempo e, debruçando–se, beijou–o no rosto.

– Só tive essa idéia agora – disse ela histericamente. – Por que não pensei nisso antes? Por que você não pensou nisso antes?

– Pensar em quê? – perguntou ele.

– Nos outros dois desejos – replicou ela rapidamente. – Nós só fizemos um pedido.

– Não foi suficiente? – perguntou ele, irado.

– Não – gritou ela, triunfante; – ainda vamos fazer um.

Desça, apanhe a pata rapidamente, e deseje que o nosso filho viva novamente.

O homem sentou–se na cama e arrancou as cobertas de cima do corpo trêmulo.

– Meu bom Deus, você está louca! Gritou ele, horrorizado.

– Pegue aquela coisa – disse ela, ofegante –, pegue depressa, e faça o pedido... Ah, meu filho, meu filho!

O Marido riscou um fósforo e acendeu a vela.

– Volte para a cama – disse ele, incerto. – Você não sabe o que está dizendo.

– Nós conseguimos satisfazer o primeiro pedido – disse a senhora, febrilmente. – Por que não o segundo?

– Foi uma coincidência – gaguejou o velho.

– Vá buscar a pata e faça o pedido – gritou a esposa, tremendo de excitação.

O velho virou–se, olhou para ela, e sua voz tremeu.

– Ele já está morto há 10 dias e, além disso, ele... – eu não queria lhe dizer isso, mas... só consegui reconhecê–lo pela roupa. Se já estava tão horrível para você ver, imagine agora?

– Traga–o de volta – gritou a senhora, e o arrastou para a porta. – Você acha que tenho medo do filho que criei?

Ele desceu na escuridão, foi tateando até a sala e depois até a lareira. O talismã estava no lugar, e um medo horrível de que o desejo ainda não expresso pudesse trazer o filho mutilado apossou–se dele, e ficou sem ar ao perceber que perdera a direção da porta. Com a testa fria de suor, ele deu volta na mesa, tateando, e foi–se amparando na parede até se achar no corredor com a coisa nociva na mão.

Até o rosto da esposa parecia mudado quando ele entrou no quarto. Estava branco e ansioso, e para seu temor parecia ter um olhar estranho. Ele sentiu medo dela.

– Peça! – gritou ela, com voz forte.

– Isso é loucura – disse ele, com voz trêmula.

– Peça! – repetiu a esposa.

Ele levantou a mão.

– Eu desejo que meu filho viva novamente.

O talismã caiu no chão, e ele olhou para a coisa com medo.

Então afundou numa cadeira, trêmulo, quando a esposa, com os olhos ardentes, foi até a janela e levantou a persiana.

Ficou sentado até ficar arrepiado de frio, olhando ocasionalmente para a figura da velha senhora espiando pela janela.

O cotoco de vela, que queimara até a beirada do castiçal de porcelana, jogava sombras sobre o teto e as paredes, até que, com um bruxulear maior do que os outros, se apagou. O velho, com uma imensa sensação de alívio pelo fracasso do talismã, voltou para a cama, e um ou dois minutos depois a senhora veio silenciosamente para o seu lado.

Nenhum dos dois disse nada, mas permaneceram deitados em silêncio, ouvindo o tique–taque do relógio. Um degrau rangeu, e um rato correu guinchando através do muro. A escuridão era opressiva e, depois de ficar deitado por algum tempo, criando coragem, ele pegou a caixa de fósforos e, acendendo um, foi até embaixo para pegar uma vela.

Nos pés da escada o fósforo se apagou, e ele parou para riscar outro; no mesmo momento ouviu–se uma batida na porta da frente, tão baixa e furtiva que quase não se fazia ouvir.

Os fósforos caíram–lhe da mão e espalharam–se no corredor. Ele permaneceu imóvel, com a respiração presa até a batida se repetir. Então virou–se e fugiu rapidamente para o quarto, fechando a porta atrás de si.

Uma terceira batida ressoou pela casa.

– O que é isso? – gritou a senhora, levantando–se.

– Um rato – disse o velho com voz trêmula –, um rato.

Ele passou por mim na escada.

A esposa sentou–se na cama, escutando. Uma batida alta ressoou pela casa.

– É Herbert! – gritou. – É Herbert!

Ela correu até a porta, mas o marido ficou na frente dela e, pegando–a pelo braço, segurou–a com força.

– O que você vai fazer? – sussurrou ele com voz rouca.

– É meu filho; é Herbert! – gritou ela, debatendo–se mecanicamente. – Eu esqueci que ele estava a 10 quilômetros daqui. Por que está me segurando? Me solte. Eu tenho de abrir a porta.

– Pelo amor de Deus não deixe entrar – gritou o velho tremendo.

– Você está com medo do próprio filho – gritou ela, debatendo–se. – Me solte. Eu já vou, Herbert; eu já vou.

Ouviu–se mais uma batida, e mais outra. A senhora com um arrancão súbito soltou–se e saiu correndo do quarto. O marido seguiu–a até a escada e chamou–a enquanto ela corria para baixo. Ele ouviu a corrente chocalhar e a tranca do chão ser puxada lenta e firmemente do lugar. Então a voz da senhora soou, nervosa e ofegante.

– A tranca – gritou ela alto. – Desça que eu não consigo puxar a tranca.

Mas o marido estava de joelhos no chão, procurando a pata desesperadamente. Se pelo menos conseguisse encontrá–la antes que a coisa entrasse. Uma série de batidas reverberou pela casa, e ele ouviu o arrastar de uma cadeira quando a esposa a colocou no corredor encostada na porta. Ouviu o ranger da tranca quando esta se destravou lentamente, e no mesmo momento encontrou a pata de macaco, e desesperadamente fez o terceiro e último pedido.

As batidas pararam subitamente, embora ainda ecoassem na casa. Ele ouviu a cadeira ser arrastada de volta, e a porta se abrir. Um vento frio subiu pela escada, e um gemido alto e demorado de decepção e tristeza da esposa lhe deu coragem para correr até ela e depois até o portão. O lampião da rua que tremulava do outro lado brilhava numa estrada silenciosa e deserta.
W. W. Jacobs

Fonte: lercontosdeterror.blogspot.com