quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Espuma Noturna - Stephen King 

Depois que o cara estava morto e o cheiro de sua carne queimada sumiu no ar, todos nós voltamos à praia. Corey levou o rádio, um daqueles bagulhos do tamanho de uma maleta, todo transistorizado, que levava umas quarenta pilhas e também gravava e tocava fitas. Corey tinha muita grana antes de A6, mas essas coisas já não importavam.
Até mesmo o seu enorme rádio/gravador não passava de um bonito pedaço de sucata.
Só restavam no ar duas estações que conseguíamos captar. Uma era a WKDM de Portsmouth ― um disc jockey do interior que se tornara maníaco religioso. Tocava um disco de Perry Como, fazia uma prece, chorava, tocava um disco de Johnny Ray, lia os Salmos (completo com a pronúncia arcaica dos nomes de origem judaica, exatamente como James Dean no filme East of Eden), e depois chorava ainda mais. Coisas do bom tempo, assim. Um dia, ele cantou "Bringing in the Sheaves" numa voz engasgada e envelhecida, que provocou risos histéricos em Needles e em mim.
A estação de Massachusetts era melhor, mas só conseguíamos pegá-la à noite. Era um bando de garotos. Creio que se apoderaram das instalações transmissoras da WRKO ou da WBZ depois que todos se foram ou morreram. Só irradiavam prefixos com trocadilhos, como WDOPE ou KUNT ou WA6 ou coisa parecida. Realmente engraçado, sabe ― a gente morria de rir. Era essa a estação que escutávamos no caminho de volta à praia. Eu ia de mãos dadas com Susie, Kelly e Joan estavam à nossa frente e Needles já ultrapassara o topo da Ponta e sumira de vista. Corey vinha à retaguarda, balançando o rádio ao ritmo dos Rolling Stones, oue cantavam "Angie".
― Você me ama? ― perguntou Susie. ― Isso é tudo que quero saber: você me ama?
Susie precisava de constante reafirmação. Eu era seu ursinho de brinquedo.
― Não ― respondi.
Ela estava engordando e, se vivesse o suficiente ― o que não era provável ―, ia ficar realmente flácida. Já estava com os lábios carnudos demais.
― Você é podre ― disse ela, levando uma mão ao rosto. O verniz de suas unhas brilhou palidamente à meia-luz que surgira no horizonte cerca de uma hora antes.
― Vai chorar outra vez?
― Cale a boca!
Parecia mesmo que ela ia chorar novamente.
Chegamos em cima da ponta e eu parei. Sempre tenho que parar ali. Antes de A6, a praia era pública. Turistas, farofeiros, garotinhos de nariz escorrendo e balofas avós com braços avermelhados pelo sol. Papel de balas e pauzinhos de pirulitos na areia, todas as pessoas bonitas bolinando-se em suas toalhas de praia, mescladas com o cheiro de gás de escapamento que vinha do estacionamento, das algas marinhas e do óleo de bronzear.
Agora, porém, toda a sujeira e porcaria se fora. O oceano devorara tudo com a mesma naturalidade com que a gente come um punhado de bolachas. Não havia pessoas para voltar e sujar tudo outra vez. Só nós e não éramos em número suficiente para fazer tanta sujeira. Além disso, creio que amávamos aquela praia ― não havíamos acabado de oferecer-lhe uma espécie de sacrifício? Mesmo Susie, a putinha Susie, com sua bunda gorda e suas jeans de boca larga.
A areia era branca e formava dunas, marcada apenas pela linha da maré alta ― algas marinhas e pedaços de madeira carcomida pelo mar. O luar delineava sombras negras em forma de lua crescente e dobras por toda parte. A abandonada torre do salva-vidas erguia-se, branca e esquelética, a cerca de cinqüenta metros dos vestiários, apontando para o céu como um dedo descarnado.
E a espuma, a espuma noturna, lançando grandes nuvens de borrifos, quebrando-se contra as pedras em intermináveis ataques, até onde nossa vista podia alcançar. Talvez aquela água estivesse a meio caminho da Inglaterra na noite anterior.
― "Angie" com os Stones ― anunciou a voz no rádio de Corey. Tenho certeza de que vocês curtiram essa, uma explosão do passado que é um gás dourado, diretamente do cemitério de discos, uma faixa legal. Sou Bob. Era noite de Fred, mas Fred está gripado. Está todo inchado.
Susie soltou uma risadinha, então, com as primeiras lágrimas ainda nas pestanas.
Comecei a caminhar depressa para a praia, a fim de mantê-la calada.
― Esperem! ― berrou Corey. ― Bemie? Ei, Bemie, espere aí!
O cara no rádio estava lendo uma poesia pornográfica e uma garota, ao fundo, perguntava onde ele tinha deixado a cerveja. Ele respondeu alguma coisa, mas, a essa altura, já estávamos na praia. Olhei para trás a fim de verificar o progresso de Corey.
Ele descia sentado, escorregando sobre o traseiro como sempre, parecendo tão ridículo que até senti um pouco de pena dele.
― Quer correr comigo? ― perguntei a Susie.
― Por quê?
Dei-lhe uma palmada na bunda e ela soltou um gritinho.
― Só porque é gostoso correr.
Corremos. Ela ficou para trás, resfolegando como uma égua e pedindo-me que diminuísse o passo, mas tirei-a da cabeça. O vento corria em minhas orelhas e soprava-me os cabelos da testa. Pude sentir o sal no ar, forte e pungente. As ondas se quebravam com estrondo, parecendo espuma de vidro negro. Descalcei as sandálias de borracha e corri descalço pela areia, não me importando com as ocasionais pontadas das conchas agudas. O sangue rugia em minhas veias.
Então, lá estava o abrigo, com Needles lá dentro e Kelly e Joan de pé ao lado, de mãos dadas, olhando para o mar. Rolei para a frente, sentindo a areia descer pelas costas da camisa, e esbarrei nas pemas de Kelly. Ele caiu em cima de mim, esfregando-me o rosto na areia enquanto Joan ria.
Levantamo-nos e sorrimos um para o outro. Susie desistira de correr e caminhava devagar em nossa direção. Corey já estava quase junto dela.
― Bela fogueira ― comentou Kelly.
― Acha que ele veio mesmo desde Nova York, como disse? indagou Joan.
― Não sei.
De qualquer forma, não fazia diferença. Ele estava ao volante de um enorme Lincoln quando o encontramos, semi-inconsciente e delirante. A cabeça inchara até o tamanho de uma bola de futebol e o pescoço parecia uma lingüiça. Tinha Captain Trips e não iria muito longe. Portanto, nós o levamos até a Ponta que domina a praia e o queimamos.
Ele disse que se chamava Alvin Sackheim. Não parava de chamar pela avó. Pensou que Susie era a sua avó. Ela achou graça, só Deus sabe por quê. Susie acha graça nas coisas mais estranhas.
Queimar o homem foi idéia de Corey, embora tivesse começado como uma brincadeira.
Ele lera todos aqueles livros a respeito de bruxaria e magia negra na universidade e se manteve sorrindo maldosamente para nós no escuro, junto ao Lincoln de Alvin.
Sackheim, dizendo-nos que se oferecêssemos um sacrifício aos deuses das sombras talvez os espíritos continuassem a proteger-nos contra A6.
Claro que nenhum de nós acreditou naquela conversa fiada, mas começamos a falar cada vez mais sério. Era uma coisa nova a fazer e, finalmente, fomos em frente e fizemos. Amarramos o cara ao aparelho de observação no topo da Ponta ― a gente coloca uma moeda no aparelho e, num dia claro, consegue enxergar toda a distância até o Farol Portland. Amarramos o cara com nossos cintos e depois fomos procurar mato seco e madeira trazida pela maré, como crianças entretidas num novo tipo de brincadeira de esconder. E durante todo o tempo, Alvin Sackheim se limitou a ficar escorado ali, balbuciando para a avó. Os olhos de Susie ficaram muito brilhantes e ela começou a respirar depressa. Estava realmente excitada. Descemos para a ravina no outro lado da ponta de pedra e Susie se encostou em mim, beijando-me. Usava batom demais e foi como beijar um prato engordurado.
Empurrei-a para longe de mim e foi aí que ela começou a se mostrar emburrada.
Tomamos a subir, todos nós, e empilhamos os gravetos e galhos secos até a cintura de Alvin Sackheim. Needles acendeu a pira e ela ardeu depressa. No final, logo antes de seus cabelos pegarem fogo, o cara começou a gritar. O cheiro era parecido como porco agridoce à moda chinesa.
― Tem um cigarro, Bemie? ― perguntou Needles.
― Tem cerca de cinqüenta pacotes de cigarros atrás de você.
Ele sorriu, dando um tapa num mosquito que lhe picava o braço.
― Não quero me mexer.
Dei-lhe um cigarro e sentei-me. Susie e eu encontramos Needles em Portland. Ele estava sentado no meio-fio em frente ao Teatro Estadual, tocando músicas de Leadbelly numa grande e antiga guitarra Gibson que roubara em algum lugar. O som ecoava pela Congress Street como se ele estivesse tocando numa sala de concertos.
Susie parou diante de nós, ainda sem fôlego.
― Você é podre, Bernie.
― Ora, vamos, Sue. Vire o disco. Esse lado já encheu o saco.
― Bastardo. Estúpido. Insensível filho da puta. Nojento!
― Vá embora ou te fecho um olho com um murro, Susie ― repliquei. ― Quer ver?
Ela começou a chorar outra vez. Era mesmo boa nisso. Corey se aproximou e tentou abraçá-la. Ela lhe deu uma cotovelada na virilha e ele cuspiu na cara dela.
― Eu mato você!
Susie avançou para ele, gritando e chorando, movimentando as mãos como hélices.
Corey recuou, quase caiu e, depois, virou as costas e fugiu. Susie o perseguiu, gritando obscenidades histéricas. Needles jogou a cabeça para trás e riu. O som do rádio de Corey chegava até nós levemente, quase abafado pelo barulho da rebentação.
Kelly e Joan tinham-se afastado. Pude vê-los à beira do mar, caminhando enlaçados pela cintura. Pareciam um cartaz na vitrine de uma agência de viagens: Voe para a linda St. Lorca. Tudo bem. Tinham um relacionamento legal.
― Bernie?
― O que é?
Fiquei sentado, fumando e pensando em Needles levantando a tampa de seu isqueiro Zippo, rolando a roda para fazer centelhas com aço e pedra, como um homem das cavernas.
― Peguei ― disse Needles.
― É mesmo? ― respondi. ― Tem certeza.
― Claro que tenho. Sinto dores na cabeça e no estômago. Mijar dói.
― Talvez seja apenas a gripe Hong Kong. Susie teve Hong Kong. Pediu uma Bíblia.
Ri. Isso acontecera quando ainda estávamos na universidade, cerca de uma semana antes de fecharem definitivamente, um mês antes de começarem a transportar cadáveres em caminhões basculantes e enterrá-los em covas comuns com tratores.
― Veja.
Ele acendeu um fósforo e iluminou o ângulo inferior do maxilar. Pude ver as primeiras manchas triangulares, a primeira inchação. Era mesmo A6.
― Está certo.
― Não me sinto tão mal ― disse ele. ― Isto é, mentalmente. Mas você não. Pensa muito no assunto. Posso perceber.
― Nada disso ― repliquei. Mentira.
― Claro que pensa. Como aquele cara esta noite. Você também está pensando nisso.
Raciocinando melhor, acho que lhe fizemos um favor. Não acredito que ele percebesse o que estava acontecendo.
― Ele percebeu.
Neddles sacudiu os ombros e rolou para o lado.
― Não faz diferença.
Fumamos e observamos a espuma vir e voltar sobre a areia. Needles pegara a Captain Trips. Isso tornava tudo real outra vez. Já estávamos no final de agosto e dentro de duas semanas o primeiro frio do outono começaria a chegar. Hora de mudarmos para outro lugar. Inverno. Mortos na época do Natal, talvez, todos nós. Na sala de visitas de alguém, com o rádio/gravador de Corey sobre uma estante cheia de livros Condensados do Reader's Digest e o fraco sol de inverno lançando sobre o tapete desenhos sem significação através das vidraças.
A visão foi bastante clara para me provocar um estremecimento. Ninguém devia pensar em inverno no mês de agosto. É como alguém andar em cima de nossa sepultura.
Needles riu.
― Está vendo? Você pensa no assunto.
O que podia eu responder? Levantei-me:
― Vou procurar Susie.
― Talvez sejamos as últimas pessoas no mundo, Bernie. Já pensou nisso?
Ao pálido luar, ele já parecia meio morto, com profundas olheiras e os dedos pálidos e imóveis como lápis.
Desci até o mar e olhei para o horizonte. Nada havia para ver senão os inquietos e movimentados topos das ondas, encimados por delicados penachos de respingos de espuma. O trovão da rebentação era tremendo ali à beira da água, maior que o mundo.
Era como estar no interior de uma tempestade elétrica. Fechei os olhos e balancei-me nos pés descalços. A areia era fria, úmida e compacta. E se fôssemos as últimas pessoas no mundo ― e daí? Aquilo continuaria enquanto existisse uma lua para provocar as marés.
Susie e Corey estavam na praia. Susie cavalgava-o como se ele fosse um potro selvagem, batendo-lhe a cabeça na espumante torrente de água. Corey espadanava, batendo os braços. Estavam ambos encharcados. Aproximei-me e derrubei Susie com o pé. Corey ficou de quatro, bufando e resfolegando.
― Eu odeio você! ― gritou ela.
Sua boca era um escuro crescente que parecia sorrir. Parecia a entrada de um parque de diversões. Quando eu era criança, minha mãe costumava levar-nos ao Parque Estadual Harrison e lá existia uma casa de loucuras, cuja fachada era uma enorme cara de palhaço. A gente entrava pela boca sorridente.
― Vamos, Susie. Levante-se, Lulu.
Estendi a mão. Susie a agarrou com certa hesitação e se pôs de pé. Tinha a blusa e a pele sujas de areia úmida.
― Não precisava empurrar, Bemie. Você nunca...
Ela não era como uma vitrola de bar; não era Preciso inserir uma ficha e ela nunca se desligava.
Subimos pela praia em direção à concessão principal. O homem que gerenciara o local tinha um pequeno apartamento no sobrado. Havia uma cama. Susie não merecia realmente uma cama, mas Needles tinha razão a respeito de uma coisa: não fazia diferença. Ninguém mais prestava atenção à contagem do jogo.
A escada ficava ao lado do prédio, mas parei por um instante para olhar pela vitrine quebrada as mercadorias empoeiradas que ninguém se dera o trabalho de saquear: pilhas de suéteres (estampadas no peito com as palavras "Anson Beach" e um desenho de céu e mar), pulseiras brilhantes que deixariam a pele do pulso verde de azinhavre com apenas um dia de uso, cintilantes brincos ordinários, bolas de praia, cartões postais obscenos, madonas de cerâmica mal pintada, vômito plástico (Tão reais! Experimente em sua esposa!), fogos de festa da Independência para um Quatro de Julho que jamais chegara, toalhas de praia com uma voluptuosa garota de biquíni cercada pelos nomes de uma centena de balneários famosos, flâmulas (Lembranças de Anson Beach and Park), balões de gás, roupa de banho. Na frente, um bar com um grande !etreiro que dizia:
EXPERIMENTE NOSSA TORTA ESPECIAL DE MARISCOS.
Eu costumava vir freqüentemente a Anson Beach quando ainda estava no ginásio. Isso foi sete anos antes da A6 e eu namorava uma garota chamada Maureen. Uma pequena alta, que tinha um maiô quadriculado cor-de-rosa. Eu costumava dizer que parecia tecido de toalha de mesa. Tínhamos passado pela calçada de madeira em frente àquela concessão. Nunca experimentamos a torta especial de mariscos.
― O que está olhando?
― Nada. Venha comigo.
Tive pesadelos horríveis com Alvin Sackheim, que me provocaram suor. Ele estava colocado ao volante de seu brilhante Lincoln amarelo, falando na avó. Não passava de uma caveira inchada e negra, com um esqueleto chamuscado. Cheirava a carne queimada. Falava interminavelmente e, depois de algum tempo, não consegui entender uma só palavra. Acordei respirando com dificuldade.
Susie estava deitada de través em minhas coxas, pálida e inchada. Meu relógio marcava três e cinqüenta, mas estava parado. Lá fora ainda estava escuro. A rebentação continuava a produzir estrondo. Parecia mais forte. Maré alta. Devia ser 4:15. Logo amanheceria. Levantei-me da cama e fui à porta aberta. A brisa do mar era agradável em meu corpo quente. A despeito de tudo, eu não queria morrer.
Fui ao canto e peguei uma cerveja. Havia três ou quatro caixas de latas de cerveja empilhadas contra a parede. Estava morna, pois não havia eletricidade. Contudo, não me importo com cerveja morna, ao contrário da maioria das pessoas. Apenas faz um pouco mais de espuma. Cerveja é cerveja. Voltei ao patamar, sentei-me e puxei o anel para abrir a lata.
Então, ali estávamos, com toda a raça humana exterminada, não por bombas atômicas, ou guerra biológica, ou poluição, ou qualquer coisa tão grandiosa Apenas pela gripe. Eu gostaria de fincar uma enorme placa... onde? Na planície salgada de Bonneville, talvez.
O Quadrado de Bronze. Cinco quilômetros de lado. E, com grandes letras em relevo, ele diria aos eventuais visitantes vindos do espaço: APENAS A GRIPE.
Joguei a lata de cerveja por cima do corrimão. Ela caiu com um ruído metálico oco na calçada de cimento que rodeava o prédio. O abrigo era um triângulo escuro na areia.
Tentei adivinhar se Needles estava acordado. Tentei adivinhar se eu estava.
― Bernie?
Ela estava de pé à porta, usando uma de minhas camisas. Detesto isso. Ela sua como uma porca.
― Você já não gosta muito de mim, não é mesmo, Bernie?
Não respondi. Havia ocasiões em que eu ainda era capaz de sentir pena de tudo. Ela não me merecia mais do que eu a merecia.
― Posso me sentar com você?
― Duvido que haja largura bastante para nós dois.
Ela emitiu um soluço engasgado e começou a voltar para o interior do apartamento.
― Needles pegou A6 ― declarei.
Ela parou e olhou para mim, as feições imóveis.
― Não brinque, Bernie.
Acendi um cigarro.
― É impossível, ele já teve...
― Sim, ele teve A2. Gripe Hong Kong. Exatamente como você, eu, Corey, Kelly e Joan.
― Mas isso significaria que ele não está...
― Imunizado.
― Sim. Então, nós também podemos pegar.
― Talvez ele tenha mentido quando disse que já teve A2, para que o aceitássemos naquela ocasião ― comentei.
O alívio se espraiou em seu rosto.
― Claro, é isso aí. Se fosse eu, também mentiria. Ninguém gosta de ficar só, não é mesmo?
Ela hesitou:
― Vai voltar para a cama?
― Agora, não.
Ela entrou. Eu não precisava dizer a ela que a A2 não era garantia contra A6. Ela já sabia. Apenas bloqueara a idéia. Fiquei sentado, observando a espuma. Estava forte para valer. Anos atrás, Anson Beach fora o único local decente para se fazer surf em todo o Estado. A Ponta era uma corcova negra e saliente, silhuetada contra o céu. Tive a impressão de conseguir enxergar a torre do posto de observação, mas, provavelmente, não passava de imaginação. Às vezes Kelly levava Joan para o topo da Ponta. Não creio que estivessem ali esta noite.
Coloquei o rosto nas mãos e apertei-o, sentindo a pele, sua granulação e textura. Tudo se estreitava tão depressa e era tão ruim ― não tinha qualquer dignidade.
As ondas chegando, chegando, chegando. Infinitas. Limpas e profundas. Tínhamos vindo aqui no verão, Maureen e eu, no verão antes de entrarmos para a universidade, antes que a realidade e a A6 viessem do Sudeste Asiático e cobrissem o mundo como uma mortalha; julho comemos pizza e escutamos o rádio de Maureen, eu lhe passara óleo nas costas e ela nas minhas, o ar estava quente, a areia brilhante, o mar como um vidro em chamas.

fonte: http://noitesinistra.blogspot.com.br/2013/06/conto-de-terror-espuma-noturna-stephen.html#.WDVkUeArKUk